A liberdade virá pelo Poder Popular!
De Tereza de Benguela a Laudelina de Campos Melo, a liberdade virá pelo Poder Popular!
Logo que o mundo foi criado,
Todos os orixás vieram para a Terra
E começaram a tomar decisões e dividir encargos entre eles,
Em conciliábulos nos quais somente os homens podiam participar.
Oxum não se conformava com essa situação.
Ressentida pela exclusão, ela vingou-se dos orixás masculinos.
Condenou todas as mulheres à esterilidade,
De sorte que qualquer iniciativa masculina
No sentido da fertilidade era fadada ao fracasso.
Por isso, os homens foram consultar Olodumare.
Estavam muito alarmados e não sabiam o que fazer
Sem filhos para criar nem herdeiros para quem deixar suas posses,
Sem novos braços para criar novas riquezas e fazer as guerras
E sem descendentes para não deixar morrer suas memórias.
Olodumare soube, então, que Oxum fora excluída das reuniões.
Ele aconselhou os orixás a convidá-la, e às outras mulheres,
Pois sem Oxum e seu poder sobre a fecundidade
Nada poderia ir adiante.
Os orixás seguiram os sábios conselhos de Olodumare
E assim suas iniciativas voltaram a ter sucesso.
As mulheres tornaram a gerar filhos
E a vida na Terra prosperou.
(PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás/ Reginaldo Prandi; ilustrações de Pedro Rafael. – São Paulo, Companhia das Letras, 2001.)
Neste ano, comemoramos os 120 anos de nascimento da militante do Partido Comunista Brasileiro Laudelina de Campos Mello. Laudelina fundou a primeira associação de trabalhadores domésticos do Brasil, em Santos, na década de 1930. Ao longo de sua vida, Laudelina lutou para que as trabalhadoras domésticas tivessem direitos e garantias trabalhistas. Em 1943 Laudelina assistiu a Consolidação das Leis Trabalhistas se omitir sobre direitos e garantias para as trabalhadoras domésticas. Apenas em 1972, graças a luta coletiva liderada por Laudelina, foi editada a Lei nº 5.859, primeira legislação brasileira a amparar o acesso a direitos trabalhistas para trabalhadoras domésticas. Em 1988, depois de décadas de perseguições e fechamentos, com a promulgação da Constituição Federal, a associação de trabalhadoras domésticas criada por Laudelina pôde se transformar em Sindicato.
Somente 22 anos após a morte de Laudelina, após uma vida inteira de lutas, e somente após 125 anos da abolição formal da escravidão, em 2013, através da PEC das Domésticas, as garantias trabalhistas foram reconhecidas a essas trabalhadoras, que passaram a ter direito à jornada de trabalho de 44 horas semanais, com limite de oito horas diárias, o recebimento de hora-extra e a possibilidade de que houvesse a fiscalização das relações de trabalho doméstico pela Inspeção do Trabalho.
Não obstante, a discriminação legislativa ainda permanece e, diferente das outras categorias, o trabalho exercido até dois dias por semana pelas domésticas não exige registro do contrato de trabalho, o que condena milhões dessas trabalhadoras à informalidade. De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), de 2022, 75 % das trabalhadoras domésticas estão na informalidade.
Laudelina afirmava que a condição de miserabilidade e ausência de direitos em que se encontravam as trabalhadoras domésticas era um resíduo da escravidão. Dados da Organização Mundial do Trabalho revelam que o Brasil tem a maior população de trabalhadoras domésticas do mundo. 67,5 % delas são mulheres negras, conforme o PNAD de 2022. 40 % dessas mulheres estão em situação de pobreza, vivendo com meio salário-mínimo. No setor de cuidados, segundo a Secretaria Nacional da Política de Cuidados e Família, mulheres negras são 45 % do total de trabalhadores. Outro resíduo da escravidão que assola mulheres negras: 80 % dos trabalhadores domésticos resgatados em casos de trabalho análogo à escravidão de 2017 a 2023 eram mulheres negras. “Ela era como se fosse da família”, eles dizem, sem explicar que era como se fosse propriedade da família.
Dentro de casa, mais trabalho de cuidado e não remunerado. As mulheres negras são as maiores responsáveis pela imensa carga de atividades cotidianas de gestão, sustentação e reprodução da vida, como a preparação de alimentos, a manutenção da limpeza e organização dos domicílios e os cuidados com crianças e idosos. Segundo os dados da Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios Contínua (PNAD-C) do IBGE, em 2019, ao final de um ano, as mulheres negras dedicavam 68 horas a mais aos trabalhos de cuidado não remunerados que as mulheres brancas. Isso significa uma carga de uma semana e meia de trabalho a mais exercida pelas mulheres negras.
O trabalho de cuidado e doméstico não-remunerados suprem carências de serviços públicos e infraestrutura. E, também por isso, é evidente que as políticas de austeridade fiscal afetam mais essa população. A adoção do modelo de cuidado baseado na família, acaba por dificultar a aposentadoria, impossibilitar o acesso a garantias trabalhistas e constitui uma barreira para a emancipação das mulheres negras.
Some-se a essa carga que 62 % das famílias brasileiras chefiadas por mães-solo têm uma mulher negra como principal provedora, segundo levantamento do Dieese baseado nos dados da PNAD Contínua. De acordo com o mesmo levantamento, 63 % dos lares chefiados por mulheres negras vivem na extrema pobreza.
A falta de amparo e a miséria expõe as mulheres negras a violência doméstica. Dados da pesquisa “Visível e invisível” de 2022, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública junto ao Instituto Datafolha, demonstram que 65,6 % das mulheres que sofreram violência doméstica naquele período eram negras, o que corresponde a 12 milhões de mulheres negras. De acordo com a pesquisa, as mulheres negras também enfrentam as formas mais graves de violência de gênero. Dados da Anistia Internacional demonstram que as mulheres negras representam 62 % das vítimas de feminicídio no Brasil.
O Brasil registra um estupro a cada 6 minutos e as maiores vítimas são meninas negras de até 13 anos. Conforme o 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado no último dia 18, as vítimas dessa violência, que em 61,7 % dos casos acontece dentro dos próprios lares, correspondem a 88,2 % do sexo feminino; 61,6 % têm até 13 anos; 52,2 % são negras; e 76 % são vulneráveis. Esses dados só reforçam a necessidade da garantia do acesso ao aborto como medida de saúde pública para as mulheres e meninas negras.
A barbárie descrita até aqui leva as mulheres negras à exaustão, ao adoecimento físico e mental. De acordo com o Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto (Elsa-Brasil), 40 % das mulheres negras convivem com ansiedade e depressão e 10 % das mulheres negras convivem com seis ou mais doenças crônicas. O luto também é um fator para que mulheres mães negras sejam afetadas pelas doenças mentais e psicossomáticas, uma vez que crianças negras têm 39 % mais chances de morrer antes dos 5 anos por doenças evitáveis e 3,6 vezes mais chances de morrerem por arma de fogo.
A demanda das mulheres negras é a demanda da classe trabalhadora na medida em que, junto às mulheres indígenas, de acordo com os dados da fome, da miséria e do subemprego, essa é a parcela mais afetada pelas mazelas do capitalismo. Diante disso, o liberalismo propõe como solução que disputemos um assento à mesa daqueles que lucram e dependem de nossa exploração, numa representatividade esvaziada de conteúdo, que soterra e compete com as formas históricas da luta comunitária e radical de mulheres negras como Tereza de Benguela e Laudelina de Campos Mello.
Para além do bordão, a verdade é que para os liberais a representatividade não importa. Isso ficou bastante evidente com a expressiva votação na Câmara dos Deputados pela aprovação da PEC da Anistia (PEC 9/2023), que perdoa os partidos políticos que não cumpriram as cotas de gênero e raça nas eleições anteriores. Outros exemplos da fragilidade do discurso da representatividade liberal são os celebrados Ministério da Igualdade Racial, com uma mulher negra à sua frente, no qual temas relevantes para a população negra como segurança pública, soberania alimentar e orçamento público ficaram fora de seu âmbito de decisão; e o Ministério dos Povos Indígenas, com uma mulher indígena a sua frente, que não tem poderes para fazer frente à disposição do governo em favorecer agronegócio, nem força o suficiente para acabar com a mora na demarcação de terras indígenas.
Também precisamos estar atentos ao caráter meritocrata da representatividade, que premia, entre todas, “aquelas que chegaram lá” em detrimento de todos os obstáculos descritos acima. Se desejamos a expressividade das mulheres negras dentro de nossas organizações, é preciso compreender como as mulheres negras são afastadas da política pela barreira quase intransponível do trabalho doméstico, de cuidado, reprodutivo e emocional. É preciso que as organizações anticapitalistas assumam o compromisso de lutar para que as mulheres negras tenham condições materiais de se organizar e participar da construção do Poder Popular, sem que isso lhe imponha graus de sacrifícios mais elevados do que os dos demais militantes. É urgente que lutemos pela emancipação do trabalho doméstico não remunerado; pela valorização salarial e por garantias trabalhistas para as trabalhadoras do cuidado; por jornada de trabalho de 30 horas; por creches suficientes e totalmente públicas; por restaurantes populares; por moradia digna e gratuita; por emprego formal; pelos serviços públicos; por serviço de saúde mental público, laico e antirracista; por aborto seguro e legal; e pelo fim do genocídio e do encarceramento da população negra!
Coletivo Negro Minervino de Oliveira – CNMO SP
Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro – CFCAM SP
União da Juventude Comunista – UJC SP