A perspectiva da luta antirracista no Brasil
Governo Lula III, Novo Arcabouço Fiscal e a perspectiva da luta antirracista no Brasil
Por Marcus Schaefer, militante e Secretário Político do CNMO em São Paulo-Capital
O presente texto tem como objetivo contribuir para o debate acerca do atual cenário político econômico brasileiro no governo Lula III e o seu Novo Arcabouço Fiscal (NAF), assim como, em qual situação a luta antirracista se encontra na atual conjuntura, tendo a categoria “raça” como uma das expressões das lutas de classes e como elemento central na formação social brasileira. Aqui, entendemos que o racismo é determinante e determinado nas relações sociais capitalistas ganhando contornos particulares numa economia dependente e periférica, como neste caso, o Brasil – cumprindo um papel específico na produção global de mercadorias e na divisão internacional do trabalho de forma subordinada ao capital internacional e imperialista. Noutras palavras, tratamos aqui o racismo como uma categoria sócio histórica que vêm se desenvolvendo sob novas formas e dinâmicas nas sociedades contemporâneas. Fenômeno esse, tendo germinado e estando presente ao longo de todo o desenvolvimento capitalista – desde sua fase pré- capitalista / mercantilista / colonial até a sua fase madura / capitalista / pós- revolução industrial / revolução francesa. O racismo se torna intrínseco e imprescindível no capitalismo sendo determinado e determinante em suas leis gerais e tendenciais contribuindo para o seu processo de acumulação de capital em todas as suas fases, estágios e expansão, por meio do seu reordenamento produtivo, estatal, social e político cultural. Do colonialismo ao neocolonialismo / imperialismo, do trabalho escravo ao trabalho assalariado, o racismo cumpre uma função social assegurando a um determinado grupo, a uma classe dominante, a manutenção dos seus privilégios econômicos, políticos, culturais e sociais, tendo no seu epicentro “a propriedade privada dos meios de produção”.
Partindo de tal formulação teórica metodológica, ensejamos a mesma linha de pensamento de Malcom X: “Não existe capitalismo sem racismo”. Não nos iludamos em hipótese alguma em relação à democracia liberal burguesa, suas instituições e a sua economia de mercado, pois não há qualquer possibilidade de humanização da sociedade capitalista, diante das suas contradições derivadas das suas leis gerais e tendenciais ancoradas na “propriedade privada dos meios de produção e acumulação de capital”. Resultando em desníveis (crescimento / desenvolvimento desigual entre nações), disfunções e crises cíclicas, sistêmicas agravando e acentuando as desigualdades, a exploração e às diversas formas de opressão, minando e colocando em cheque qualquer possibilidade de democracia. Faz-se necessário apreender o conceito de Racismo Estrutural em suas dimensões objetivas e subjetivas, na sua totalidade e historicidade, conjugando os seus traços universais e particulares, não apenas num aspecto estético, essencialmente cultural e representativo. O racismo só poderá ser erradicado com a emancipação humana. Para tal, temos uma necessidade histórica de superarmos a sociedade capitalista, não obstante, enquanto trabalhadores, sobretudo negros (as) / indígenas latinos americanos (as), apontarmos o problema em sua raiz, embora importante e relevante, ainda é insuficiente. É necessário construirmos possibilidades, caminhos para exercemos na prática essa tarefa necessária, árdua e histórica.
Governo Lula III e o Novo Arcabouço Fiscal
Neste breve tópico daremos ênfase aos aspectos conjunturais do governo Lula III e ao NAF (Novo Arcabouço Fiscal), sendo assim, em diversos pontos e/ou aspectos que serão abordados não caberá aqui, nesse momento, tal aprofundamento. O objetivo será apreendermos o NAF enquanto política econômica do atual governo e seus impactos sociais, tendo como elemento central a população negra.
Há diversas contradições do atual governo Lula III que vão num sentido contrário daquilo que o próprio presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, defendeu ferozmente em sua campanha eleitoral (2022). O atual governo se encontra numa conjuntura diferente de outrora, nos governos Lula I e II, isso é inegável. No plano internacional, temos o acirramento das lutas de classes, diante de uma crise sistêmica prolongada do capitalismo a nível global e o crescimento vertiginoso do neofascismo e do neonazismo, mas também acompanhado de um novo redirecionamento geopolítico e geoeconômico puxado pelo bloco Sino-Russo, enfraquecendo paulatinamente a hegemonia imperialista estadunidense e visando estabelecer uma nova ordem mundial multipolar. No plano nacional, temos um Congresso conservador, pró-mercado e com traços fascistas, o Brasil ainda vive crises agudas de uma economia dependente e periférica subordinada ao capital internacional e imperialista. Em seu longo processo de desindustrialização, desigualdades acentuadas, precarização das relações de trabalho com arrocho salarial, jornadas extenuantes de trabalho, aumento da informalidade, subempregos, desemprego, alto custo de vida, deterioração das políticas sociais e tendo acentuado ainda mais todas essas mazelas desde o golpe (2016), sobretudo no governo de Temer e Bolsonaro com as contrarreformas trabalhista e previdenciária. Para a população negra temos ainda um Estado cada vez mais belicista, agressivo, causando um enorme genocídio, sobretudo aos jovens urbanos e periféricos. No campo, o braço armado do Estado encontra-se aliado aos jagunços, capatazes e capitães do mato dos latifundiários ligados ao agro e a mineradoras, submetendo a população quilombola, pequenos agricultores, ribeirinhos e indígenas ao genocídio.
Toda essa questão ainda vem acompanhada de um crescimento vertiginoso das milícias (grupos paramilitares) na política e ocupando cargos parlamentares. Tanto no plano nacional quanto internacional as democracias liberais burguesas entram em choque, suas contradições ficam ainda mais evidentes, sobretudo com as ações do capital para manter o seu processo acumulativo a fim de aumentar a sua taxa de lucro, minando as democracias e levando a população ao descrédito perante as suas instituições de forma simultânea. As narrativas antissistêmicas ganham destaque, porém, amplamente cooptadas pelas forças neofascistas e neonazistas. No Brasil, as instituições são atacadas constantemente pela orla neofascista. Importante ressaltar, que após governos progressistas / reformistas nas primeiras décadas do século XXI, no Brasil e na América Latina, a tal Terra Prometida foi negada para a grande maioria da população. No Brasil, houve uma governança por meio de uma frente ampla conciliatória reunindo setores da esquerda à direita, resultando em um preço a ser pago e quem de fato pagou foi o povo! Inclusive, essa governança foi um dos fatores que possibilitou o crescimento do neofascismo e do neonazismo. Agora, de fato, o cenário é outro para o atual governo Lula III.
A política econômica do NAF tendo mister Haddad (Chicago Boy) e a sua escudeira Tebet como os principais articuladores e representantes dessa política de austeridade fiscal, que intensifica ainda mais a morte aos pobres, sobretudo recaindo com um peso maior sobre os corpos já marginalizados, excluídos e pauperizados historicamente; a população negra. Aqui, cabem alguns versos do rapper Criolo: “novas embalagens para antigos interesses, o anzol da direita fez a esquerda virar peixe” (Esquiva da Esgrima – álbum Convoque seu Buda Criolo). Essa política econômica comete o maior estelionato eleitoral do atual governo Lula III: “colocar o pobre no orçamento”.
O NAF (Novo Arcabouço Fiscal) é incompatível e um ameaçador constante aos pisos nacionais da Saúde e Educação, sem contar, que impossibilita o próprio Estado ser indutor de produtividade. Para ser sincero, seria possível analisarmos diversas questões problemáticas e estruturais do Brasil que neste momento estão sendo impactadas pelo NAF. A covid-19 e os fracassos anteriores durante as passagens do PT na esfera federal deveriam servir de aprendizado, pois o erro em muitos aspectos ainda persiste. A regra estabelecida pelo NAF, em que o gasto público só poderá crescer somente 2,5% mesmo que as receitas aumentem, impossibilita o funcionamento de diversos serviços públicos, veja, estamos falando apenas do seu funcionamento. Essa parte requer a nossa atenção, pois não estamos falando sobre ampliação e melhorias dos serviços públicos e, sim, apenas do seu funcionamento que já se encontra comprometido e debilitado.
Na verdade, o NAF está totalmente ancorado no tripé macroeconômico do Plano Real (Austeridade Fiscal, Liberalização do mercado e câmbio flutuante), uma política monetária e fiscal totalmente ancorada na tríade: Imperialismo, Neoliberalismo e Financeirização (novo processo de acumulação de capital pós Fordismo). Tríade imposta pelo consenso de Washington aos países de economia capitalista subordinada, dependente e periférica, visando extração de mais valia, transferindo riquezas, controlando fundos públicos, dívidas públicas, recursos naturais, abrindo totalmente o mercado, impondo altas taxas de juros, beneficiando o capital rentista e especulativo, deteriorando diversos setores produtivos e acentuando ainda mais a dependência da periferia em relação às regiões centrais do capitalismo. Noutras palavras, mantendo tais países no seu subdesenvolvimento e com aprofundamento de todas as suas mazelas sociais e históricas.
O NAF literalmente é uma política econômica que restringe as despesas primárias: investimentos com Saúde, Educação, infraestrutura, criação de frentes de emprego (setor privado e público), transporte, etc. Entretanto, as despesas financeiras atreladas ao pagamento dos juros da dívida pública, esses, detidos pelos bancos estão totalmente liberadas. Ressalto que, nesse texto não iremos debater as formas que tal dívida poderia ser conduzia sem comprometer o orçamento e as despesas primárias. Ora, se o próprio presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, em certas entrevistas havia dito que os bancos nunca ganharam tanto como em seus governos anteriores, nos parece que ele quer manter essa façanha. Mas o que a população negra tem a ver com isso? Vejamos no próximo tópico.
Perspectiva da luta antirracista no Brasil
O NAF é uma política econômica que restringe as despesas primárias que impactam diretamente nos serviços públicos, utilizados majoritariamente pela classe trabalhadora mais pauperizada, neste caso; a população negra, parda e indígena. Vejamos alguns dados importantes aqui trazidas:
Seis estatísticas que mostram o abismo racial no Brasil – Portal Geledés
Desigualdade no Brasil atinge principalmente mulheres negras – Agência Brasil (EBC)
Vejam, os dados estatísticos nos colocam numa dada percepção de que a desigualdade no Brasil tem como elemento central a raça. Além, do fator raça, também temos a questão de gênero, das mulheres negras, sendo essas, em grande parte, chefes de família e superexploradas pelo processo de acumulação de capital. Ou seja, raça, classe e gênero são centrais para essa nossa análise socioeconômica de acordo com os dados estatísticos. Partindo desse pressuposto, quais trabalhadores são mais afetados pelo NAF? Seguindo as estatísticas, são os (as) trabalhadores negros (as), sobretudo as mulheres negras. A população que depende cotidianamente dos serviços públicos, melhorias nas condições de trabalho, renda, mobilidade urbana, transporte, creches, acessibilidade, moradia, saneamento básico, alimentação, saúde, educação, etc. Demandas essas totalmente restringidas pelo NAF.
Importante termos a nossa atenção de que o NAF inclusive fortalece a narrativa impulsionada pelo mercado, de que o Estado é incapaz de prover bem estar para a população, sendo necessária a privatização dos serviços. O NAF reforça inclusive tal movimento de privatização dos espaços públicos e a sua militarização. Onde o capital (burguesia) notar vantagens para o seu processo acumulativo e aumento da sua taxa de lucro, irá colocar os seus tentáculos. Vale ressaltar, que o NAF foi uma medida do atual governo de um programa rebaixado, passivo, visando única e exclusivamente atender os interesses do capital, sobretudo financeiro / rentista. Projeto esse, articulado, orquestrado e posto em prática pelo Ministério da Fazenda e Planejamento (Haddad / Tebet), com total consentimento do presidente, Luiz Inácio Lula da Silva. O NAF foi questionado inclusive por setores da direita no Congresso, diga-se de passagem, por motivos e interesses muito mais parlamentares (emendas) do que propriamente humanísticos. É incrível ver grande parte principalmente da esquerda hegemônica reformista, assim, como boa parte do Movimento Negro calado diante dessa escalonada neoliberal do NAF, que, como pudemos ver pelos dados estatísticos, afetam brutalmente a nós trabalhadores, sobretudo negros (as), periféricos (as).
Mas e a correlação de forças no Congresso? Veja, historicamente, inclusive na história recente do país, todas as vezes em que afrouxamos e nos rebaixamos programaticamente, saímos perdendo e muito. A História já nos mostrou e provou que diante das adversidades, das correlações de forças menos favoráveis ou nada favoráveis, a organização da classe trabalhadora em torno de um programa minimamente consensual e nas ruas, tiveram grandes feitos. É possível tal construção e unidade, mesmo em correntes políticas ideológicas distintas dentro do nosso campo. O debate acerca do NAF pode ser um instrumento aglutinador da classe trabalhadora nas suas diversas frentes e diversidades, pode se tornar uma pauta consensual quando bem apreendida em torno de uma agenda programática com as necessidades mais imediatas do nosso povo, empurrando esse governo mais para a esquerda.
Aqui cabem outros versos do rapper Criolo: “Alô, Foucault! Cê quer saber o que é loucura? É ver Hobsbawm nas mãos dos boy, Maquiavel nessa leitura! (Duas de Cinco – Álbum Convoque seu Buda Criolo). A correlação de forças não é algo estático, imutável ou engessado, ela se movimenta de acordo com os níveis das lutas de classes que são travados, e da maneira como são travados irá nos apontar para onde essa força política irá caminhar. Neste momento, a falta de organização da classe trabalhadora, sua fragmentação, isolamento das lutas, em grande parte orientada por uma perspectiva neoliberal “identitarista” nos mantém derrotado. A falta de diálogo abrindo mão da disputa política e ideológica por parte do atual governo, não mobilizando a sua base e, tampouco, dialogando com a população vem sendo um tiro no pé.
Veja, não esperamos aqui do governo Lula III um caráter político revolucionário, no Brasil, até mesmo reformas tímidas, progressistas, necessitam de combatividade e enfrentamento, que vem sendo abdicado pelo governo. Deveríamos tirar lições do nosso passado e aprender inclusive com algumas experiências ocorrendo em certos países hermanos, como a Colômbia, tendo como destaque o presidente, Gustavo Petro, exercendo papel fundamental na mobilização e articulação junto ao povo e a sua base para manter o governo e avançar num programa progressista. Não podemos continuar persistindo em algo que só vêm dando errado nos mais variados sentidos.
Somos nós trabalhadores negros (as) que sentimos o peso maior em nossas condições de vida por tais erros cometidos. Infelizmente, boa parte do Movimento Negro parece querer dar mais atenção às cenas do BBB ou polêmicas de artistas, jornalistas e atletas, do que elevar o debate público e criar formas organizativas incidindo em pautas que de fato irá contribuir para alterar substancialmente a vida de milhões dos nossos e das nossas. No atual momento, o início de alguma mudança significativa perpassa inevitavelmente em falarmos sobre o NAF e lutarmos para rompermos com o NAF. O nosso silêncio contribui para a manutenção da morte dos nossos e das nossas, por piora das condições de vida e o crescimento do neofascismo e do neonazismo. É de suma importância discutir essa pauta em todos os espaços de atuação, seja no trabalho, escola, ocupações, associações, sindicatos, quebras, vielas, coletivos, fóruns, movimentos sociais, partidos, etc. E principalmente dentro do nosso Movimento Negro.
O NAF afeta diretamente as nossas condições materiais de vida, tanto no plano objetivo quanto subjetivo. O NAF é um ponto comum da classe trabalhadora nas suas diversidades, pois impacta tanto na sua forma de exploração quanto nas suas formas de opressão. O enfrentamento ao NAF pode ser um instrumento e uma das nossas mediações táticas assertivas para darmos outros saltos qualitativos alterando nossas condições objetivas e subjetivas de luta, inclusive criando possibilidades maiores de alteração das correlações de forças. Além, de ser um dos caminhos a contribuir para a construção do Poder Popular, da Revolução Socialista Brasileira para avançarmos em nossas demandas imediatas e históricas de maneira assegurada e permanente, rumando em nossa autodeterminação (soberania e independência total), com crescimento e desenvolvimento inclusivo, próspero, atingido as potencialidades que esse país jamais atingiu em sua história.
“Não me esqueço de ti meu povo, se Palmares não vive mais, façamos Palmares de novo”.
Saudações Comunistas!
Referências
– Furno, Juliane. Imperialismo – Uma introdução econômica. Da Vinci livros, Rio de Janeiro, 2023.
– Garcia, Jeferson. Racismo, Capital e Emancipação Humana notas sobre a questão negra na tradição comunista. 1ª ed. São Paulo: Instituto Caio Prado Jr. 2022.
– Moura, Clóvis. Rebeliões da Senzala. 6ª ed. São Paulo, Sp: Anita Garibaldi, 2020.
– Lênin, Vladímir Ilitch. Imperialismo, Estágio Superior do Capitalismo. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2021.
– Sodré, Nelson Werneck. A farsa do neoliberalismo. 4ªed. Rio de Janeiro, Graphia, 1997.
– Almeida, Silvio Luiz de. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019,