A Revolução que mudou o mundo
Heitor Cesar Ribeiro de Oliveira*
“O Estado é o produto e a manifestação do caráter inconciliável das contradições de classe. O Estado surge precisamente onde, quando e na medida em que as contradições de classe objetivamente não podem ser conciliadas. E inversamente: a existência do Estado prova que as contradições de classe são inconciliáveis.”
Friedrich Engels. A Origem da Família da Propriedade Privada e do Estado.
Em novembro (outubro) de 1917, quando os Bolcheviques tomavam o poder em Petrogrado (São Petersburgo), não apenas partia a corrente internacional do imperialismo, como também rompia-se a corrente internacional do movimento dos trabalhadores, representada pelo até então prestigioso centro político e teórico da II Internacional, a Internacional Socialista, que possuía no Partido Social-Democrata Alemão sua maior referência, Kautsky, considerado por muitos como o herdeiro direto de Marx e Engels.
Até então, o marxismo tido como oficial era formulado pelos teóricos da Internacional Socialista (a II Internacional) que guiava a ação dos Partidos Social-Democratas e socialistas da Europa, além de buscar irradiar-se por todo o mundo.
As formulações do instrumental teórico analítico da II Internacional buscavam enquadrar o mundo a partir de uma análise econômica do processo de desenvolvimento do capitalismo, partindo das próprias contradições advindas da construção do sistema gestadas em seu processo, conduziriam à superação do modo de produção. Em paralelo, se somaria às contradições o fortalecimento da intervenção dos socialistas tanto na sociedade (com sindicatos de massas) e no parlamento (com uma crescente influência numérica e política). Assim, num processo evolutivo, o poder seria conduzindo para as mãos dos trabalhadores. Tal encadeamento de ideias comprova a existência, no interior do movimento socialista, de uma forte influência do pensamento naturalista de Charles Darwin, que se mesclava à teoria marxista num evolucionismo, reduzindo o entendimento do processo histórico a um determinismo economicista, em que os aspectos subjetivos eram secundarizados em detrimento de uma avaliação “natural” do processo histórico.
O grupamento político liderado por Lênin surgia como uma dissidência dentro da II Internacional. Fortes críticas foram dirigidas à cúpula do prestigiado corpo dirigente da Social-Democracia Europeia, como visto na obra “A Falência da II Internacional”, de Lênin:
“A Falência da II Internacional exprimiu-se com especial clareza na traição escandalosa, pela maioria dos partidos social-democratas oficiais da Europa, de suas convicções e de suas resoluções (…). Mas essa falência, que marca a vitória total do oportunismo, além da transformação dos partidos social-democratas em partidos operários nacional-liberais, não é senão o resultado de toda a época histórica da II Internacional, do final do Século XIX ao começo do Século XX. As condições objetivas dessa época de transição – que vai do encerramento das revoluções burguesas e nacionais na Europa Ocidental ao principio das revoluções socialistas – engendraram e alimentaram o oportunismo. Em certos países da Europa, pudemos observar, no decorrer desse período, uma cisão do movimento operário e socialista, cisão que se produziu, no seu conjunto, em função do repudio a linha oportunista (…). A crise gerada pela guerra ergueu o véu, varreu as convenções, rebentou o abscesso já de há muito maduro e mostrou o oportunismo no seu verdadeiro papel de aliado da burguesia.”
Assim, essa dissidência dirigia à II Internacional, nucleada até então em torno do forte Partido Social-Democrata Alemão de Kautsky, severas críticas e apontava a irreconciliável possibilidade de unidade. Além de Lênin, líder dos Bolcheviques Russos, vários outros membros de Partidos Socialistas e sociais democratas compartilhavam de tais questionamentos, inclusive no interior do próprio Partido Alemão, como Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, que viriam a liderar a dissidência alemã no Partido Social Democrata.
Tais críticos da doutrina oficial do movimento internacional dos trabalhadores na Europa ganharam força com o advento da Grande Guerra Mundial (1914-1918), evento no qual os Partidos Sociais Democratas da Europa, em consonância com as lideranças da II Internacional, assumiram a defesa de seus países, inclusive participando da organização da guerra ao lado dos respectivos governos nacionais. O fato é evidenciado por Lênin ao destacar o papel extremamente vantajoso da guerra para as burguesias e a postura de Kautsky em omitir o real caráter do conflito.
“A Guerra trouxe à classe dos capitalistas não apenas benefícios fabulosos e magníficas perspectivas de novas pilhagens (Turquia, China etc.), novas encomendas calculadas em bilhões, novos empréstimos com taxas de lucro majoradas, mas também trouxe à classe dos capitalistas vantagens políticas bem superiores, dividindo e corrompendo o proletariado. Kautsky ajuda nessa corrupção.”
A Grande Guerra foi um evento que marcou profundamente a Europa. Até então, não haviam ocorrido conflitos de tamanha proporção em violência, em que novas armas mudaram para sempre a lógica belicista do mundo. Porém, não se limitando ao cenário do capitalismo, a guerra impulsionou a definitiva ruptura no interior do movimento dos trabalhadores, fortalecendo a crítica da falência da II Internacional, que, ao cumprir o papel de unificador nacional durante o confronto, demonstrou suas limitações em conduzir o movimento do proletariado à revolução, diante das novas características e da fase superior do capitalismo.
Na Rússia, marcada pelo atraso e por uma guerra fracassada, os comunistas liderados por Lênin, Zenoviev, Kamenev, Trotsky, Bukarin, Stalin e outros bolcheviques começaram a construir não apenas o regime socialista, mas também a reorganizar o movimento comunista através de uma nova internacional, a Internacional Comunista (Komintern).
O Komintern contou com vários novos partidos comunistas nascidos no calor da revolução que transformou a Rússia no primeiro país socialista do mundo. Lênin narra a importância da revolução e a construção do socialismo, assim como também as lições do evento para o proletariado mundial, na ocasião do 4º aniversário da Revolução de Outubro:
“Esta primeira vitória não é ainda a vitória definitiva, e a nossa revolução de Outubro alcançou-a com privações e dificuldades inauditas, com sofrimento sem precedentes,(…); Pela primeira vez depois de séculos e milênios, a promessa de responder à guerra entre escravistas com a revolução dos escravos contra toda espécie de escravista foi cumprida até o fim … e é cumprida apesar de todas as dificuldades. Nós começamos esta obra. Quando precisamente, em que prazo os proletários de qual nação culminarão esta obra – é uma questão não essencial. O essencial é que se quebrou o gelo, que se abriu caminho, que se indicou a via.”
Assim como a revolução russa rompeu a corrente internacional capitalista, abrindo brecha para a primeira experiência de construção socialista, rompia-se também a lógica até então predominante no interior do movimento internacional dos trabalhadores. O movimento inspirado no marxismo ganharia alguns aspectos novos em relação ao ideário da II Internacional, com uma releitura da própria obra de Marx e Engels acrescida pela teoria e prática dos bolcheviques, que em seguida fundariam o Partido Comunista Russo. Os partidos comunistas seriam a nova mola propulsora do movimento internacional da classe trabalhadora, com a organização inclusive de uma nova Internacional, a III Internacional (Internacional Comunista ou Komintern) e a reordenação dos comunistas, rompendo com a social democracia e partidos socialistas e construindo Partidos Comunistas, já em alguns lugares, como no Brasil, a partir do acúmulo de seus próprios movimentos operários inspirado no clarão da revolução russa. Surgia uma nova denominação e uma nova forma organizativa na luta política no cenário internacional e um novo centro revolucionário: Moscou, capital da URSS.
O novo movimento agora sob o signo da III Internacional se diferenciava muito ideologicamente da II Internacional: se esta possuía ares de uma federação, a III Internacional possuía características de um só partido comunista internacional, um forte centro político com atribuições ampliadas, com vistas a promover a Revolução Mundial:
“Atualmente já possuímos uma experiência internacional bastante considerável, experiência que demonstra, com absoluta clareza, que alguns aspectos fundamentais da nossa revolução não tem apenas significação local, particularmente nacional, russa, mas revestem-se, também, de significação internacional (…)”
Os Partidos Comunistas se formavam enquanto os antigos partidos sociais democratas sofriam rupturas internas e perdiam força com os novos adeptos do comunismo. Ganhava força dentro do Movimento Internacional dos Trabalhadores o conjunto de propostas da Revolução como uma tomada violenta do Estado Burguês, sua demolição a partir da construção do novo regime. Estava aberta a Era do Socialismo, a Era dos Sovietes, que marcaria profundamente todo o decorrer do século XX, causando influências diretas em todo o mundo.
As classes dirigentes do mundo capitalista e seus governos passariam a organizar toda a sua política internacional e até mesmo interna (os comunista eram vistos como inimigos internos) diante do medo de uma revolução mundial e da ação da URSS, que passava a liderar a classe dos trabalhadores em todo o mundo. Os primeiros sinais eram aterrorizantes para os capitalistas, justificando os seus maiores medos, pois explodiam movimentos revolucionários na Europa ainda se recompondo da Grande Guerra. Os trabalhadores não mais se limitavam a buscar conquistas de direitos, mas agiam na possibilidade de conquistar o poder político em seus países.
Os impactos da Revolução de Outubro (Novembro) não se limitariam ao século XX. Mesmo diante do colapso da experiência socialista do leste europeu e do próprio desmonte da URSS, a classe trabalhadora ainda se vê diante dos mesmos dilemas e dramas que impulsionaram os bolcheviques a construírem a revolução russa. 101 anos depois, a humanidade se encontra permeada pelo dilema socialismo ou barbárie, e a ofensiva da direita mais reacionária – incluindo o avanço das ideias e práticas fascistas em várias partes do planeta – com retiradas de direitos e ataques a conquistas históricas da classe trabalhadora demonstram que não há caminho dentro da lógica do capitalismo, que, em seu processo de crise, mostra cada vez mais a sua face exploradora e repressiva. Mais do que nunca a revolução não é apenas uma bandeira ou uma memória, mas sim algo presente, atual e necessário!
*Membro do Comitê Central do PCB e Historiador