160 anos da Associação Internacional dos Trabalhadores

A 1ª INTERNACIONAL!

Por Fábio Bezerra (*)

“(…) a emancipação dos trabalhadores será

obra do próprio trabalhador.” Karl Marx.

(Trecho do manifesto de fundação da Primeira Internacional de 1864)

Em 28 de setembro de 1864, num salão do St. Martin’s Hall, em Londres, abarrotado com cerca de 2000 pessoas, representando centenas de entidades sindicais e organizações socialistas e libertárias de diversos países do velho continente, era fundada uma associação de caráter federativa que se propunha a reunir e organizar os diversos sindicatos, federações e organizações políticas ligadas à classe trabalhadora no enfrentamento diário às diversas contradições do sistema capitalista.

Nascia assim a Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) que por sua vez ficou conhecida como a 1ª Internacional.

A AIT abrigou diversas correntes políticas que atuavam no movimento sindical e reivindicavam em sua ampla maioria o socialismo como modelo de sociedade.

Marxistas, anarquistas, republicanos, democratas radicais, cooperativistas, lassalianos, blanquistas, dentre outros, foram alguns dos integrantes das diversas correntes de pensamento e de ação política que estiveram presentes no Congresso de fundação da AIT e dela fizeram parte em seus 8 anos de existência (1864-1872). Neste período, a AIT se tornou o principal centro de disseminação de ideias socialistas e libertárias em meio ao conjunto da classe trabalhadora não apenas na Europa, mas também nos EUA.

Adotando um modelo federativo, dentro do qual as entidades possuíam certa autonomia de decisão local, mas eram orientadas estrategicamente pelo Conselho Geral da entidade, a AIT proporcionou importantes campanhas unitárias em toda a Europa e nos EUA em torno de bandeiras como: a) as condições de trabalho do proletariado da época; b) as relações de trabalho; c) a função e a importância dos sindicatos; d) a luta pela coletivização da terra e dos meios de produção; e) a promoção da solidariedade e a colaboração entre os operários em suas lutas; f) a promoção do trabalho cooperativo; h) a redução da jornada de trabalho para oito horas e melhores condições de trabalho, sobretudo para mulheres e crianças.

Entre 1864 e 1872, a AIT chegou a superar a marca de mais de 150 mil associados(as), estando presente oficialmente ou clandestinamente em cerca de 16 países, tendo realizado a impressionante marca de seis congressos, ou seja, quase um congresso por ano.

Karl Marx foi um dos fundadores e membros do Conselho Geral da AIT nos anos iniciais. Coube-lhe a redação do estatuto geral da organização, e muitas das orientações gerais do Conselho Geral passavam por sua influência política.

Por ter sido uma experiência pioneira na tentativa de organização e direção da classe trabalhadora nos principais países industrializados no século XIX, a AIT padeceu de seu próprio processo histórico, pois as disputas políticas que representavam as diversas variantes do pensamento operário e pequeno-burguês à época, também se evidenciaram nas disputas pela condução da AIT, em especial entre os adeptos das formulações de Marx de um lado e os que se opunham a essas formulações, em especial os anarquistas associados a Mikhail Bakunin e a Pierre-Joseph Proudhon.

Para se ter uma ideia da complexa composição política e ideológica da AIT, podemos dividir em 5 grupos que se associavam em alguns aspectos e em outros possuíam profundas diferenças.

O polo central da AIT estava sob a direção do movimento sindical inglês, de forte tradição reformista e que tinha na luta pela melhoria salarial e a redução da jornada salarial o limite do horizonte da ação política da entidade. A questão da tomada do poder e da superação da ordem capitalista não era unanimidade, e o mais avançado que se podia encontrar entre os sindicalistas ingleses eram simpatizantes das posições do socialista utópico Robert Owen.

Um segundo grupo proeminente na AIT eram os sindicalistas franceses e suíços que em grande parte aderiram às posições de Pierre-Joseph Proudhon e suas teorias, que propunham uma sociedade baseada em uma produção federalista e cooperativista combinada com a manutenção do capitalismo de forma que, através da democratização do acesso ao crédito, o sistema capitalista e o Estado burguês iriam paulatinamente ser substituídos, sem o necessário levante da classe operária.

Completando esse quadro, destacam-se os grupos anarquistas que se associavam às ideias do ativista russo Mikhail Bakunin, os quais defendiam a luta revolucionária, com sabotagens da produção e ações diretas para desestabilizar o Estado burguês, mas desacreditavam de qualquer possibilidade de atuação política partidária e questionavam a manutenção do Estado em um processo de transição socialista.

Por fim, muitos eram os grupos republicanos que tinham, como principal objetivo da ação tática junto à organização operária, a luta pela superação da nobreza local e a unidade nacional em torno da construção de uma república que se pautasse na defesa da pátria, na obediência aos dogmas religiosos e na justiça social, buscando a “harmonia entre proprietários e produtores”. i

Nesse cenário sobressaíam os marxistas, que à época já eram chamados de comunistas pelos demais grupos e que, mesmo em minoria em alguns congressos, conseguiam apresentar as teses mais consistentes sobre a crítica ao modo de produção capitalista sem as ilusões chauvinistas e/ou as perspectivas reformistas no plano das relações entre capital e trabalho, como Lassale defendia.

Percebam que o resultado das contradições nas quais a classe trabalhadora na Europa e de certa forma nos EUA se encontravam favoreceram a unidade imediata em busca de uma organização forte e transnacional que pudesse catalisar as lutas operárias contra as adversidades impostas pelo capitalismo. Porém, o amálgama ideológico resultante dessa iniciativa histórica importante era extremamente frágil e não conseguiria manter-se para além dos próprios propósitos estratégicos que evidenciaram os limites e o aprofundamento das disputas que não tardaram a evoluir para tensões políticas cada vez mais severas.

Independentemente de tal contexto, a 1ª Internacional foi uma conquista histórica para o movimento operário em um cenário de fortes tensões sociais que caracterizaram as crises estruturais do capitalismo, em especial após 1848, e que elevaram a luta de classes a um patamar que definia e moldava a consciência política do proletariado como sujeito histórico, desnudando as facetas da estrutura e da dinâmica de poder da ordem burguesa.

Em seus pouco mais de 8 anos de existência, a AIT ajudou a criar e a fortalecer centenas de entidades sindicais, organizou greves e campanhas que pressionavam pela erradicação do trabalho infantil, pela redução da jornada de trabalho, pela constituição de caixas de assistência e socorro mútuo às famílias dos grevistas e a solidariedade internacionalista, princípio que inspirou diversas campanhas da classe trabalhadora nas décadas posteriores em diversas ocasiões, como a Comuna de Paris em 1871 e a constituição do 1º de Maio, data que se tornou uma referência internacional na luta pela emancipação do jugo do capital e do Estado burguês.

O legado da Primeira Internacional foi decisivo para o fortalecimento da classe trabalhadora em diversos países do velho continente, possibilitando uma rica experiência política de organização e compreensão sobre as potencialidades, limites e desafios da classe trabalhadora e de sua luta contra a ordem do sistema.

A forte repressão que se abateu sobre a AIT após a debacle da Comuna em 1871, a instável condição financeira para manter toda a estrutura de funcionamento da entidade, além do aumento das tensões entre os grupos componentes da AIT que não chegavam a um acordo sobre a sua reestruturação organizativa e sua finalidade representaram enormes desafios diante do recrudescimento das perseguições e das lutas políticas, impondo à Internacional a necessidade de uma definição rápida de seus rumos e forma de atuação.

Apesar do malogro precoce, a AIT propiciou uma formidável experiência política ao proletariado nesse período de significativas transformações na correlação de forças entre a classe trabalhadora e a burguesia, possibilitando o diálogo entre trabalhadores de diversos países e suas associações de classe e o amadurecimento na consciência política sobre a importância da organização através de entidades que pudessem defender seus interesses e impor a contraofensiva à exploração dos patrões e ao autoritarismo do Estado, não mais isoladamente, mas de forma sincronizada e unitária em agendas e campanhas previamente articuladas em diversas regiões da Europa.

Os acirramentos ideológicos no campo da esquerda, resultantes das contradições em curso na luta de classes na Europa no final do século XIX e a forma de lidar com esse processo, curiosamente também tiveram no seio da AIT um espaço de fomento e maturação que aceleraram as definições das tendências políticas no movimento operário, demarcando de forma mais nítida os limites entre comunistas, anarquistas e os reformistas de todo tipo, que continuaram a travar suas disputas nos anos subsequentes, influenciando na construção de partidos socialistas, na identidade programática de diversos sindicatos, na sua forma de organização e na dinâmica da luta.

Um bom exemplo desse processo foi o crescimento do movimento anarco-sindicalista em países como Espanha e Itália, a polarização entre cooperativistas e blanquistas (adeptos de uma insurreição vanguardista) na França, o fortalecimento do movimento “Trade-Union” na Inglaterra, o desenvolvimento da socialdemocracia (marxistas) na Alemanha e do sectário e limitado movimento niilista (uma vertente pequeno-burguesa do anarquismo) na Rússia czarista.

Em geral devemos saudar e rememorar sempre a importância histórica da fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores ( AIT), a Primeira Internacional, como um feito histórico dos mais relevantes no percurso da evolução da luta de classes, que possibilitou a construção de um instrumento internacional que ousou superar as barreiras nacionais, os ditames das autoridades eclesiásticas, de governos liberais e monárquicos e de certa forma toda a velha ordem ideológica que encobria a inevitável internacionalização da exploração capitalista e por conseguinte a cosmopolitização dos abusos, da exploração, da miséria e da subordinação sobre a classe trabalhadora.

A fundação da Primeira Internacional foi muito mais do que a tentativa de organização e orientação da luta internacional da nascente classe operária, além de instituir um espaço de análise conjunta entre os diversos setores da vanguarda da luta sindical e o diálogo em busca de ações táticas que unificassem as agendas de reivindicações e as estratégias de ação comum. Ela possibilitou o desenvolvimento da tomada de consciência e da identidade de classe do proletariado no velho continente em especial, superando as barreiras culturais, geográficas e institucionais impostas à época. Barreiras estas que constantemente são renovadas em seu arcabouço ideológico e que tentam encobrir as vicissitudes da miséria humana nas quais a crise do capitalismo nos arrasta mundialmente.

Por isso é sempre importante relembrar o pioneirismo e o legado da Primeira Internacional, ainda presente em nossos dias. Passados 160 anos, a internacionalização do modo de produção capitalista aprofundou e ampliou as contradições da crise estrutural do capitalismo, dinamizou profundas alterações sociais nos países de capitalismo tardio, que apesar de especificidades regionais, ressaltam o avanço da deterioração das relações de trabalho, o aumento da exploração da mais-valia, a ampliação das tensões sociais e a falência do modelo de estrutura social capitalista sob a égide do neoliberalismo.

Os desafios em superar as manifestações ideológicas dessa crise, tais como a xenofobia, o neocolonialismo, a desregulamentação das relações trabalhistas, a precarização crescente do mundo do trabalho, o individualismo como valor moral e as teses pós-modernas que negam a identidade de classe para alienar qualquer possibilidade de rebeldia crítica contra a ordem do sistema são apenas alguns dos desdobramentos das contradições desse tempo presente de refluxos e aumento da barbárie social em todo o mundo.

Impõem-se aos revolucionários a mesma ousadia e o ímpeto que moveram os nossos camaradas há 160 anos, na busca em superar as barreiras e contradições impostas pela crise capitalista, na perspectiva de unificar nossa resistência, ampliar nossos entendimentos sobre questões que em 1864 não estavam ainda em relevância (a questão climática, por exemplo) e fortalecer as iniciativas de diálogo e solidariedade com todos os povos oprimidos e em luta contra a ordem do capital.

 

“Bem unidos façamos

Dessa luta final,

Uma terra sem amos,

A Internacional!”

(refrão do hino dedicado a luta operária, composto sob as barricadas da Comuna de Paris de 1871 e incorporado como hino oficial da 2ª Internacional em 1889)

 

(*) Fábio Bezerra é professor de filosofia e membro do Comitê Central do PCB

 

 

i Sobre esse contexto histórico e as divisões no âmbito da Primeira Internacional recomendo o filme: Germinal (1993), inspirado no romance de mesmo nome do escritor francês Émile Zola.

Bibliografia indicada:

Beer, Max: História do Socialismo e das Lutas Sociais, Editorial Calvino Ltda. Capítulo VIII, Rio, 1944. Prefácio de Marcel Ollivier, Tradução de Horácio Mello.

Marx, Karl: “Carta a Friedrich Bolte sobre a Primeira Internacional”

– Marx, Karl: Instruções para os Delegados do Conselho Geral Provisório. As Diferentes Questões. (ARQUIVO MARXISTA NA INTERNET – MIA)