Sobre o planejamento econômico socialista: refutando Hayek

Refutando a refutação hayekiana da impossibilidade do planejamento econômico socialista

Warlen Nunes – membro do Comitê Central do PCB

Hayek é um famoso economista e teórico social do século XX. Sua obra se vincula aos teóricos da escola austríaca de economia. Nesse texto, iremos expor e refutar a concepção hayekianas sobre a impossibilidade do planejamento econômico-socialista e sua defesa do sistema de preços como o mecanismo mais adequado para a coordenação social das ações econômicas, pois, de acordo com Hayek, dado o caráter subjetivo, disperso e espontâneo do conhecimento que é necessário para o cálculo econômico, o sistema de preços, por ser um mecanismo impessoal e espontâneo, é o que melhor garante a transmissão da informação que é necessária para realizar a atividade econômica sem afetar a liberdade de escolha dos indivíduos.

A questão teórica do planejamento econômico socialista tem como ponto de partida a crítica que lhe é formulada por Mises, no famoso artigo O cálculo econômico sob o socialismo (1920). Nesse artigo, Mises argumenta que sem um mercado de meios de produção (propriedade privada) e, sem o dinheiro como uma unidade de conta, não poderia haver preços monetários. Assim, seria impossível calcular os custos e, por conseguinte alocar, de forma eficiente, os recursos. Portanto, não haveria racionalidade econômica em uma sociedade socialista. Teríamos, assim, comprovada a impossibilidade racional do socialismo funcionar.

Na sequência do artigo de Mises, se estabeleceu um debate que ficou conhecido até os dias de hoje como “O cálculo econômico no socialismo”. A principal objeção do artigo de Mises provêm do economista polonês Oscar Lange (1971) em Sobre a teoria econômica do socialismo (1936-1937). No referido artigo, o cálculo econômico socialista é possível mediante a utilização do método de tentativa e erro, a partir da simulação de um mercado artificial, tomando como base os modelos neoclássicos de equilíbrio geral (Walras, Barone e Pareto). Dessa forma, a solução para o problema do cálculo socialista se resolve com o uso de equações matemáticas, dado que existe uma similaridade formal entre o mercado capitalista e o funcionamento de uma economia socialista.

Hayek se encarrega de fazer a contra argumentação às objeções que Mises recebera, começaremos pelo famoso artigo de Hayek O uso do conhecimento na sociedade (1945). De acordo com Hayek, para que a solução apresentada pelos que partiam dos modelos de equilíbrio geral fosse resolvida com sistemas de equações, precisaríamos ter de antemão “todas as informações relevantes, (…) “tomar como ponto de partida um sistema de preferências estabelecido”, além de termos um “completo conhecimento dos meios disponíveis”. Assim sendo, “o resto do problema seria simplesmente uma questão de lógica” (HAYEK:2021, s/p).

Conforme Hayek vai nos dizer, as soluções matemáticas apresentadas nos modelos de equilíbrio geral que se propuseram a resolver o problema do cálculo econômico racional não conseguiram obter êxitos. “O motivo disto é que os “dados” totais da sociedade, a partir dos quais são feitos os cálculos econômicos, nunca são “dados” a uma única mente para que pudesse analisar as suas implicações – e nunca serão” (HAYEK: 2021, s/p.). Hayek detalha seus argumentos. Vejamos:

O caráter peculiar do problema de uma ordem econômica racional se caracteriza justamente pelo fato de que o conhecimento das circunstâncias nas quais precisamos agir, nunca existe de forma concentrada e integrada, mas apenas como pedaços dispersos de conhecimento incompleto e frequentemente contraditório, distribuído por diversos indivíduos independentes (HAYEK: 2021, s/p).

Nesse contexto, alinhado com as ideias de Hayek, o conhecimento necessário para efetuar um planejamento racional da economia revela-se subjetivo e encontra-se disperso. Ele emerge da interação espontânea entre os indivíduos, sendo impossível de ser completamente encapsulado por qualquer instituição, entidade governamental ou pessoa singular. Como Hayek salienta, “o desafio reside na aplicação de um conhecimento que não se encontra integralmente acessível a ninguém” (HAYEK, 2021, p. xx).

Dessa forma, Hayek traz à tona a questão crucial do conhecimento no âmago do debate. Enquanto para Mises o cálculo econômico no socialismo se revelava inviável devido à supressão da propriedade privada dos meios de produção, o que resultaria na ausência dos preços monetários essenciais para estimar de maneira eficaz os custos e alocar recursos de forma eficiente, Hayek acrescenta uma dimensão adicional. Em sua perspectiva, o socialismo é inatingível não somente devido à falta de cálculo econômico, mas também porque o conhecimento essencial para fundamentar uma tomada de decisão econômica racional é intrinsecamente subjetivo e disperso.

Portanto, pode-se sintetizar que enquanto Mises destaca a inviabilidade do socialismo devido à ausência de racionalidade econômica, Hayek amplia esse argumento ao enfatizar que a natureza intrinsecamente subjetiva e fragmentada do conhecimento humano impede efetivamente a concretização de um planejamento socialista eficaz. Isso indica que a discussão gira em torno das “afirmações sobre o conhecimento possuído pelos diversos membros da sociedade e o papel desse conhecimento na análise econômica”.

Com base nesse entendimento, fica claro que “um dos principais desafios da política econômica é determinar a melhor maneira de utilizar o conhecimento inicialmente disperso entre diferentes indivíduos independentes” (HAYEK, 2021, s/p). Consequentemente, pode-se inferir que o cerne da questão consiste em encontrar uma maneira de reconciliar os interesses e os planos individuais, levando em consideração a natureza subjetiva, espontânea e dispersa do conhecimento, por meio de algum mecanismo de coordenação social. O artigo “Economia e Conhecimento” (1936) apresenta essa questão da seguinte maneira:

O problema que pretendemos resolver é como a interação espontânea entre uma quantidade de pessoas, cada qual possuindo somente porções de conhecimento, produz um estado de coisas no qual os preços correspondem aos custos etc e que poderia ser gerado através de controle deliberado, somente por alguém que possuísse o conhecimento combinado de todos esses indivíduos (HAYEK:2015, p. 66).

Sob a perspectiva de Hayek, as condições de equilíbrio entre preços e custos emergem de maneira espontânea na sociedade atual. No entanto, esse equilíbrio só poderia ser alcançado em uma sociedade com planejamento central se um indivíduo ou uma entidade estatal detivesse o conhecimento agregado dos membros da sociedade. Torna-se evidente, portanto, que a coordenação das atividades econômicas somente pode ocorrer de forma espontânea no mercado, sendo inviável por meio de um órgão central de planejamento.

Nesse contexto, surge um dos desafios fundamentais da teoria econômica: como os indivíduos elaboram seus planos e tomam decisões econômicas, e qual é a melhor abordagem para aproveitar o conhecimento inicialmente disperso entre diferentes indivíduos, visando criar um sistema econômico eficiente. Diante disso, a questão crucial é: como tornar esse conhecimento acessível?

A abordagem de Hayek para essa questão é caracterizada por dicotomias. De fato, seu pensamento em geral é permeado por dualidades. Ele apresenta duas formas de utilizar o conhecimento disperso, ou seja, duas abordagens de planejamento: i) centralizada, por uma autoridade única que abrange todo o sistema econômico; ii) descentralizada, baseada nas ações individuais dos vários agentes.

Posteriormente, Hayek argumenta que o tipo de conhecimento em questão “não pode ser transformado em dados estatísticos e, portanto, não pode ser disponibilizado para uma autoridade central deliberar com base em levantamentos estatísticos” (HAYEK, 2021). Isso ocorre porque o conhecimento que guia as decisões econômicas está disperso nas ações dos diversos indivíduos, não existindo uma previsão consciente prévia que possa ser capturada.

Assim, o desafio reside em “garantir que cada membro da sociedade faça o melhor uso dos recursos conhecidos para fins que só esses indivíduos reconhecem como relativamente importantes, sem a intervenção tirânica de uma autoridade externa”. Para Hayek, a solução para esse dilema é proporcionada pelo sistema de preços.

Basicamente, em um sistema no qual o conhecimento dos fatos relevantes está disperso entre várias pessoas, os preços podem servir para coordenar as diferentes ações de várias pessoas do mesmo modo como os valores subjetivos ajudariam aquela mente onisciente a coordenar as diferentes partes do seu plano (HAYEK:2021, s/p.).

O sistema de preços no sentido de Hayek é um mecanismo de transmissão da informação, um mecanismo inconsciente que basicamente opera a coordenação social e, uma de suas características, é “a economia de conhecimento”, pois basta que o indivíduo se aproprie de uma pequena parte da informação econômica para que ele possa definir qual sua escolha e como agir. Por conseguinte, para Hayek, o sistema de preços é uma criação espontânea que garante, através da divulgação de símbolos, o acesso ao conhecimento que nenhum agente isolado ou órgão central possui e isso se fez pelos hábitos que ninguém previamente os definiu.

A partir daqui, Hayek vai convergir com Mises e com os “socialistas de mercado”, que identificaram nos preços o melhor mecanismo para se fazer o cálculo racional em uma economia.

Por vários motivos, é ótimo que a necessidade do sistema de preços para qualquer cálculo racional em uma sociedade complexa já não seja mais objeto de discussão apenas entre grupos com opiniões políticas distintas. A tese segundo a qual sem o sistema de preços nós não poderíamos preservar uma sociedade baseada numa divisão de trabalho tão extensiva quanto a nossa, foi recebida com gritos de chacota, quando Mises a apresentou há vinte e cinco anos (HAYEK:2021, s/p).

Para atestar a legitimidade da impossibilidade do cálculo econômico no socialismo, Hayek se vale de uma citação na qual ele atribuiu a Trotsky, segundo a qual o revolucionário russo teria dito: “o cálculo econômico só é possível em uma economia de mercado” (HAYEK: 2021, n.p.). Sendo assim, para Hayek, “a inevitável imperfeição do conhecimento humano e a necessidade decorrente de um processo por meio do qual o conhecimento seja constantemente adquirido e transmitido”, torna o sistema de preços o melhor mecanismo para a execução do cálculo racional e da coordenação social.

(…) a coordenação não pode, é claro, ser efetuada por “controle consciente”, mas apenas por meio de uma estrutura que proporcione a cada agente as informações de que precisa para um ajuste efetivo de suas decisões às dos demais. E, como nunca se podem conhecer todos os pormenores das modificações que influem constantemente nas condições da oferta e da procura das diferentes mercadorias e nenhum órgão tem a possibilidade de reuni-los e divulgá-los com suficiente rapidez, torna-se necessário algum sistema de registro que assinale, de forma automática, todos os efeitos relevantes das ações individuais. É importante assinalar que o sistema de preços só cumprirá sua função se a concorrência predominar, ou seja, se o produtor tiver que se adaptar às alterações de preços e não puder controlá-las. (HAYEK: 2010, p. 69-70).

Pelo exposto, até o momento, o planejamento econômico central em uma economia socialista é impossível, em função do caráter subjetivo, disperso e espontâneo do conhecimento que os agentes econômicos possuem para tomar suas decisões. Por isso, a defesa hayekiana do sistema de preços como mecanismo impessoal é mais eficiente para transmitir informações, dado o limite do conhecimento humano.

Passando para a refutação aos postulados de Hayek

A primeira questão a ressaltar gira em torno de um problema técnico, ou seja, qual o melhor mecanismo para transmitir as informações visando à tomada de decisões econômicas, como vimos, para Hayek é o mercado que gera essa informação automaticamente. Se a questão toda girasse em torno disso, poderíamos afirmar que o planejamento e o “cálculo econômico” é possível em uma sociedade socialista, entre outras razões, pelo uso da cibernética atual. Do nosso ponto de vista, isso está resolvido pelas novas tecnologias da informação como atestava Oskar Lange em 1964 , no artigo O computador e o mercado, e como vem demonstrando os teóricos contemporâneos do Cyber-comunismo, pois, a tecnologia da informação é capaz de gerar toda a informação necessária sobre os custos de produção, estimativa de demanda, inovação tecnológica etc, bem como, parafraseando aqui a linguagem dos economistas: produzir toda a informação relevante sobre como alocar, de forma eficiente, os recursos. Mas esse é apenas o aspecto técnico do problema do cálculo econômico socialista, que há anos já havia sido resolvido pelos planejadores soviéticos que demonstraram na prática, que era perfeitamente possível fazer o cálculo econômico em uma economia socialista.

Considerando que a questão não deve ser restrita apenas à esfera técnica, exploraremos uma abordagem diferente. Nesta perspectiva, procuraremos demonstrar que as premissas de Hayek se limitam a justificar a atual sociedade, apresentando o sistema econômico capitalista como a melhor alternativa possível.

Além da questão técnica, já resolvida pelos computadores atuais, podemos identificar outro problema no argumento de Hayek, que pode ser estendido a Mises: a ideologia liberal-austríaca encontra sua base na universalização de estágios da circulação de mercadorias. O cerne de sua análise das relações sociais é o que Marx chamou de “robinsonadas dos economistas”, ou seja, o indivíduo isolado. Portanto, tanto na teoria econômica burguesa em geral quanto na abordagem austríaca em particular, parte-se invariavelmente do indivíduo isolado como pilar metodológico. Isso é destacado por um estudioso influente da obra de Hayek no Brasil, que aponta: “As explicações hayekianas sobre o processo econômico e social têm como ponto de partida as decisões individuais particulares e subjetivas dos agentes. O subjetivismo é um aspecto central de suas contribuições” (FEIJÓ, 2017, p. 57).

Ainda neste tema, de acordo com Isaak Rubin, a escola austríaca de economia malogra nos seus intentos de explicar a economia mercantil em função do seu método.

“A escola austríaca começa não de relações objetivo-sociais entre pessoas, mas da psicologia e dos propósitos do indivíduo isolado (método subjetivo- psicológico) ela estuda a atividade econômica em geral, independente da forma histórica da economia ela busca a força motriz econômica não na esfera da atividade produtiva entre as pessoas, mas na esfera do consumo” (RUBIN: 2019, p.147).

Resumidamente, decorre da interação entre indivíduos isolados certas características que se tornam emblemáticas de uma economia de mercado. Essas características são então interpretadas como intrínsecas à “condição humana”, sendo assim fixadas como traços universais do ser humano. Com base nesses fundamentos (indivíduo, propriedade privada, mercado e sistema de preços), se estabelece o alicerce para o cálculo econômico. Consequentemente, conclui-se que em uma sociedade ( socialista), onde essas características não estão presentes devido à natureza coletiva dos meios de produção (Mises) e ao planejamento econômico (Hayek), o cálculo econômico se torna inviável. Em essência, isso perpetua os elementos históricos da economia capitalista como aspectos naturais e inalteráveis.

Desse modo, qualquer tentativa de planejamento econômico, por prescindir dos preços de mercado, é encaminhada para a ineficácia e inviabilidade econômica (Mises). No caso de Hayek, tal tentativa culminaria no totalitarismo, pois a concentração no Estado do papel que apenas o sistema de preços leva o Estado a controlar e decidir o que é de competência dos indivíduos.

Nesse contexto, a contribuição de Hayek se restringe a sistematizar as visões egocêntricas e prosaicas dos agentes econômicos, convertendo essas concepções em “verdades eternas”. Hayek, segundo a caracterização de Marx, poderia ser visto como um representante de:

(…) economia vulgar, que se move apenas no interior do contexto aparente e rumina constantemente o material há muito fornecido pela economia científica a fim de fornecer uma justificativa plausível aos fenômenos mais brutais e servir às necessidades domésticas da burguesia mas que, de resto, limita-se a sistematizar as representações banais e egoístas dos agentes de produção burgueses como o melhor dos mundos, dando-lhes uma forma pedante e proclamando-as como verdades eternas (MARX:2013, p.155).

A base material dessas ilusões, como atesta Marx em O Capital (1867), é a esfera ruidosa da circulação de mercadorias. “A esfera da circulação ou da troca de mercadorias, em cujos limites se move a compra e a venda da força de trabalho é, de fato, um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem. Ela é o reino exclusivo da liberdade, da igualdade, da propriedade e de Bentham”. Nessa, as supostas “verdades eternas”, são na verdade a reprodução ideológica e formal dos aspectos das trocas projetadas para todo o sempre, amém!

Dois pontos são aqui característicos do método da apologética econômica. Em primeiro lugar, a identificação da circulação de mercadorias com a troca imediata de produtos mediante a simples abstração de suas diferenças. Em segundo lugar, a tentativa de negar as contradições do processo capitalista de produção, dissolvendo as relações de seus agentes de produção nas relações simples que surgem da circulação de mercadorias (MARX:2013, p. 187).

Por isso, os aspectos apontados por Hayek para a impossibilidade do socialismo não se sustentam : i) porque toma os aspectos particulares da economia mercantil como base para todo tipo de cálculo econômico e, como essas características não se apresentam no socialismo, o cálculo econômico socialista seria impossível; ii) o método de Hayek não diz respeito ao conjunto de relações sociais, pois parte do indivíduo isolado, acabando por realizar um construto teórico subjetivo-psicológico, a-histórico, que isola aspectos das relações sociais os tomando como verdades eternas e iii) prescinde dos processos de produção, que inclusive poderiam revelar que essa sociedade se mantêm explorando as amplas massas dos trabalhadores para se centrar na esfera do consumo ( planos e preferências subjetivas). O que Hayek acaba por fazer, ao advogar por um mecanismo cego, impessoal e automático de coordenação social, é legitimar o fetichismo inerente às relações mercantis como a forma mais preeminente de desenvolvimento das interações humanas.

Um dos ápices do primeiro volume de “O Capital” de Marx é a análise do caráter fetichista das relações mercantis. Isso implica que as características das relações sociais de produção se manifestam no cotidiano dos agentes econômicos como se fossem propriedades naturais das próprias mercadorias. Em outras palavras, as relações de produção entre as pessoas assumem características de coisas, que se autonomizam das pessoas, ganhando vida própria, passando a dominar os seres humanos.

Devido à natureza anárquica e não planejada de uma economia baseada na troca mercantil, a lei do valor (tempo de trabalho socialmente necessário) desempenha o papel de reguladora, determinando a distribuição do trabalho entre os diversos setores da economia. Consequentemente, o trabalho individual não se manifesta diretamente como trabalho social; ele se torna social somente ao ser equiparado a outros tipos de trabalho por meio da troca (salto mortal da mercadoria).

Assim, emerge o valor de troca das mercadorias (ou seja, o preço), que parece como uma característica natural inerente ao valor de uso de outra mercadoria (o dinheiro). Esse fenômeno só é possível porque, na economia mercantil, a única maneira de validar os tempos de trabalho realizados de forma privada e independente é equipará-los, no mercado, aos preços que adquiriram autonomia e que agora se manifestam como um atributo do dinheiro. Dessa forma, o dinheiro assume o papel de equivalente geral do valor relativo das mercadorias. Portanto, antes mesmo de serem vendidos, os produtos têm seus valores mensurados em termos imaginários de preços.

Por isso, Marx disse que o fenômeno do fetichismo guarda semelhanças com a religião, pois nesta os produtos da cabeça dos homens se autonomizam e passam a dominá-los. Hayek tem razão ao defender o sistema de preços como único mecanismo de coordenação social em uma economia mercantil. Na economia capitalista, de fato o caráter coisificado das relações sociais escapa do controle consciente dos homens. Os preços se tornam a forma de distribuição e validação do trabalho. O caráter de fetiche dos produtos do trabalho, como demonstra Marx, surge do caráter peculiar do trabalho social produtor de mercadoria (MARX:2013). Em uma sociedade socialista as relações são bem mais simples e transparentes.

(…) imaginemos uma associação de homens livres, que trabalham com meios de produção coletivos e que conscientemente despendem suas forças de trabalho individuais como uma única força social de trabalho. (…). Sua distribuição socialmente planejada regula a correta proporção das diversas funções de trabalho, de acordo com as diferentes necessidades. (…). As relações sociais dos homens com seus trabalhos e seus produtos de trabalho permanecem aqui transparentemente simples, tanto na produção, quanto na distribuição .

Em uma sociedade onde o trabalho é associado com meios de produção coletivos, a distribuição não se dá por um mecanismo impessoal, pois toda a produção é planejada em função das necessidades sociais. Não existe a necessidade do trabalho se validar como trabalho social mediante a troca. Aqui temos uma única força social de trabalho combinada, que distribui os tempos de trabalho mediante as demandas da sociedade.

No interior da sociedade cooperativa, fundada na propriedade comum dos meios de produção, os produtores não trocam seus produtos; do mesmo modo, o trabalho transformado em produtos não aparece aqui como valor desses produtos, como uma qualidade material que eles possuem pois agora, em oposição à sociedade capitalista, os trabalhos individuais existem não mais como um desvio, mas imediatamente como parte integrante do trabalho total. (Marx: 2012).

A lei do valor que através dos preços determina a distribuição do trabalho e dos produtos dos trabalhos na economia mercantil perde completamente importância em uma sociedade fundada no trabalho associado e na cooperação, como atesta Rosdolsky.
Em uma sociedade assim, não pode haver lugar para uma lei como a do valor, porque nela estamos em presença de uma forma de produção totalmente diferente da produção de mercadorias. A regulação da produção e da distribuição não fica entregue ao jogo cego do mercado. Fica submetida ao controle consciente da sociedade . (ROSDOLSKY: 2001, p.360).

Uma das condições para a libertação humana no projeto de Marx é justamente superar todas as formas de dominação da sociedade atual. Então, é essencial a crítica ao mercado com seus autômatos. Em suma, o socialismo que Marx defende é uma forma transparente de produção e distribuição da riqueza, que supera os fetiches envoltos nas relações sociais mercantis, que Hayek toma como o melhor dos mundos possíveis.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FEIJÓ, R. L. C.: Hayek X Marx: uma comparação extemporânea. MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia, Número 1 (Edição 9) janeiro-junho 2017, p. 43-82.
HAYEK. F. Economia e conhecimento, Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia ISSN 2318-0811, Volume III, Número 1 (Edição 5), janeiro-junho 2015, p. 55-70.
HAYEK, F.A. O caminho da servidão, F. A. Hayek, São Paulo, Instituto Ludwig von Mises, Brasil, 2010.
RUBIN, I. A Escola Austríaca, ELEUTHERÍA (Ελευθερία), Campo Grande, MS, v. 4, n. 6, p. 135-149, ISSN 2527-1393, junho 2019 – novembro 2019, Tradução: Rafael de Almeida Padial, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política, Livro 1, O processo de produção do capital, Tradução: Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, 2013.
MARX, Karl. Crítica ao Programa de Gotha, Seleção, tradução e notas, Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, Coleção Marx-Engels, 2012.
ROSDOLSKY, Roman. Gênese e estrutura de O capital de Karl Marx, Rio de Janeiro, EDUERJ, Contraponto, 2001.