Sistema de justiça e luta de classes

Lorena Martins, Militante do CNMO RJ e PCB RJ

No dia 19 de maio, em Campo Grande – MS, o advogado criminalista Willer Almeida, homem negro, foi retirado de uma sessão de audiência em que defendia o réu. Com uso de força policial, por determinação do juiz Carlos Alberto Garcete, o advogado Willer foi retirado à força após ter servido um copo de água a uma testemunha que chorava durante a oitiva. O magistrado, homem branco, ordenou que o advogado fosse retirado do plenário, uma vez que ele não o tinha autorizado a servir o copo d’água. “Retira daqui agora!” foi o grito de ordem desse magistrado, que representa a imensa maioria de sua categoria, evidenciando o incômodo ao ter de lidar com fato de negros e negras terem o direito de exercer a advocacia.

Ora, o negro até pode ser advogado, mas que não ouse incomodar ou confrontar a ordem de um homem branco, pois assim perderá toda e qualquer prerrogativa que seu lugar o garanta.

Essa não foi a primeira vez que uma situação como essa ocorreu. Em 2018 uma advogada negra foi algemada no chão do plenário durante audiência no fórum de Duque de Caxias – RJ e diversas outras notícias similares aparecem mês a mês.

Não é possível compreender esse tipo de comportamento sem entender quem é a magistratura brasileira, essa casta de juízes e juízas que representam o que temos de mais torpe no sistema de justiça brasileiro. Segundo dados do CNJ (2018), mais de 80% da magistratura é composta por brancos, as mulheres representam menos de 40% do total, enquanto a população brasileira é majoritariamente negra e feminina. E sim, isso significa que se trata de uma categoria descolada da realidade social brasileira desde a subjetividade socializada entre seus integrantes até as condições econômicas desses profissionais.

A magistratura brasileira tem uma maneira própria de agir e pensar conformada, em geral, de maneira intergeracional, uma vez que, como fato público e notório, grande parte dos juízes não são os primeiros juristas de suas famílias. O capital social, isto é, as relações sociais estabelecidas e os ambientes frequentados, tornam os magistrados cidadãos descolados da realidade material da imensa maioria dos brasileiros. Essas diferenças geram o elevado capital simbólico inerente à figura de juiz, atrelado, obviamente, ao capital econômico pertencente a essas famílias, uma vez que desde vitoriosas as revoluções burguesas, poder social e econômico não andam mais em separado.

É preciso encarar a lógica racista do sistema de justiça brasileiro, em especial, do sistema de justiça criminal. O processo judicial, os princípios constitucionais e a figura do juiz imparcial têm funções declaradas, que visam ludibriar os jurisdicionados (povo brasileiro); e funções não declaradas, essas sim funções reais e materializadas no nosso cotidiano. Como numa profecia autorrealizável, os sujeitos etiquetados desde o nascimento como futuros réus são justamente aqueles que comumente encontramos no banco dos réus. Ainda sem falar dos casos que o garoto negro não está no banco dos réus, porque este já está ocupado por seu algoz, seu assassino, que no “exercício de sua função” o executou extrajudicialmente. É o caso dos autos de resistência tão comuns nas invasões policiais às favelas cariocas. Diga-se de passagem, neste cenário, o agente policial é geralmente absolvido sem a devida investigação.

Assim, é necessário compreender toda a concretude do processo judicial na forma de um aparelho ideológico, para que seja possível pensar uma teoria materialista do direito processual. Os sujeitos processuais e os operadores do Direito precisam ser considerados como sujeitos sociais, que têm suas concepções e valores determinados por um contexto histórico, de acordo com relações materiais da sociedade humana e que suas práticas judiciárias, regulamentadas ou costumeiras, fazem parte desse mesmo conjunto de determinações socialmente constituídas, sendo impossível reduzir a atividade jurisdicional à simples aplicação mecânica de uma lei pretensamente neutra, que, na verdade, é encharcada de interesses caros à ordem atual que servem a um ideário de eficiência capitalista.

Como bem aponta a professora Juliana Magalhães em seu artigo “Magistratura e capitalismo: elementos para uma crítica”, a figura do magistrado imparcial é parte de um constructo ideológico de caráter idealista e que se mostra no panteão do pensamento burguês. Dessa forma, é possível depreender que apesar da chamada “Constituição Cidadã” de 1988 e de seus princípios garantistas e direitos fundamentais ali contidos serem uma importante conquista da classe trabalhadora brasileira, dialeticamente, essa mesma conquista é também configurada como ferramenta que aprofunda a ilusão da possibilidade de existir um sistema de justiça que seja garantidor de um Estado democrático, em que todos têm os mesmos direitos, igualdade perante a lei e liberdade de ação e pensamento. Fato é que essas figuras jurídicas não imunizam a atuação jurisdicional de interferências morais e ideológicas. Os magistrados não deixam de ser meros sujeitos instrumentalizados mantenedores do Ordenamento Jurídico, da ideologia jurídica racista, que estrutura as relações socioeconômicas sob o capitalismo.

É bom lembrar de figuras históricas que se arriscaram, ao pisar no solo putrefato do sistema de justiça brasileiro, como Luiz Gama, que se tornou advogado para lutar pela libertação de nossos irmãos escravizados. A “Questão Netto” foi a maior ação coletiva de libertação de escravizados conhecida nas Américas. 217 pessoas escravizadas foram libertas na década de 1870 e o advogado da causa era Luiz Gama. Esse fato nos faz entender que é preciso compreender o potencial das estruturas do Direito Brasileiro de maneira dialética. Essas estruturas não nos pertencem, não haverá um socialismo jurídico, no entanto – e ao mesmo tempo, precisamos nos apropriar dessas ferramentas sem cair na ilusão de tomá-las, tendo claro o intuito de garantir as condições subjetivas e objetivas para materializar a revolução brasileira.

Precisamos entender que o direito é irremediavelmente uma forma do capitalismo e parte constitutiva da luta de classes contemporânea, mas não há dúvidas de que existem brechas nas quais conquistamos garantias importantes para avançar no decorrer da história brasileira, os direitos trabalhistas, os direitos civis e sociais nos protegem em certa medida e, por isso, precisamos de mais intelectuais orgânicos da classe, mais juristas, advogados, defensores públicos, magistrados e promotores de justiça que tenham a cara e o espírito da classe trabalhadora brasileira, para que possamos ter amparo e respostas na luta pela emancipação política. A firmeza ideológica precisa estar presente mesmo nos espaços que não nos pertencem essencialmente, para que utilizemos as brechas ao nosso favor e avancemos na luta por direitos sem sucumbir à dissolução da consciência de classe que esses espaços promovem, assim conforma-se um caminho possível na construção da emancipação humana, a qual os comunistas lutam cotidianamente para fazer existir.

 

REFERÊNCIAS

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Graal, v. 2, 1985.

EDELMAN, Bernard. A legalização da classe operária. Boitempo Editorial, 2017.

GRILLO, Marcelo Gomes Franco et al. Forma jurídico-processual e capitalismo. 2016.

KAUTSKY, Karl; ENGELS, Friedrich; NAVES, Márcio Bilharinho. O socialismo jurídico. Boitempo Editorial, 2012

MAGALHÃES, Juliana Paula. Magistratura e capitalismo: elementos para uma crítica. Derechos en Acción, 2020.

PACHUKANIS, Evgeni B. Teoria geral do direito e marxismo. Boitempo Editorial, 2017.