Marx, um pensador de frente para a história
Esse imenso pensador revolucionário se consolidou como intérprete da contemporaneidade e continua sendo uma trilha fértil para armar a intervenção humana no sentido da transformação revolucionária do mundo em que vivemos.
Por Milton Pinheiro
Blog da Boitempo
No dia 5 de maio de 2023 completaram-se 205 anos do nascimento de Karl Marx. Trata-se, nessa simples efeméride, de podermos reafirmar a importância da sua teoria social para o exame da realidade concreta, a partir de concepções, pesquisas e ações desenvolvidas por ele na história. Afinal, esse imenso pensador revolucionário se consolidou como intérprete da contemporaneidade e continua sendo uma trilha fértil para armar a intervenção humana no sentido da transformação do mundo em que vivemos.
Sua grandiosa obra nos permite desvelar o real na sua forma concreta e avançar para que se possam extrair lições da atual quadra histórica, que é marcada pela intensa condensação das diversas crises da ordem do capital, mas também pela perspectiva, inspirada em Marx, de intervenção do proletariado na luta de classes.
Diante dessas contradições societais, avança o pauperismo social, aprofunda-se a erosão do capitalismo a partir dos seus marcos fundantes, avoluma-se uma profunda crise ideológica que alimenta o ressurgimento do fascismo em nova configuração. É evidente que a sociabilidade dessa ordem entrou em decadência e configurou variadas manifestações de opressões. Esse conjunto condensado, entre outros fatores determinantes da crise em curso, está possibilitando a abertura do cenário político para a disjuntiva elementar do nosso tempo: socialismo ou barbárie.
O fundamental para compreendermos o pensamento de Marx, enquanto um rigoroso teórico do empreendimento contemporâneo, passa por três noções constitutivas que se estabelecem a partir da teoria do valor trabalho, do método dialético e da perspectiva da revolução. Esse tripé fundamental possibilita, em seu conjunto, um poderoso instrumento de análise para que possamos entender o modo de produção capitalista, a ordem da sociabilidade burguesa e a perspectiva de ruptura, necessários cenários que precisam ser desvelados para que o sujeito imanente da revolução possa abrir caminhos para o processo de emancipação humana.
Marx, ainda em vida, inspirou tradições revolucionárias e plurais interpretações sobre as questões do mundo contemporâneo. Seu legado cresceu nessa longa jornada, tornou-se presente nas ciências sociais e humanas, nas revoluções do século XX e no movimento da classe trabalhadora por direitos e transformações. No atual momento histórico, mesmo com o imenso problema do déficit de organização revolucionária, uma densa militância ontologicamente comunista orientada pelos marxismos consegue ter um vasto campo de ação e acurada análise para enfrentar o projeto político do capital, ainda que o movimento da classe trabalhadora não seja o necessário para indicar uma relação de força pautada na contradição trabalho versus capital.
Embora o marxismo seja a teoria social com maior capacidade de aderência ao real para entender a crise societária, quando eivado de academicismo estéril e da marxologia diletante, perde a capacidade de ser sujeito de um projeto de futuro da classe trabalhadora, ficando encapsulado ao ambiente formatado por uma lógica sem fertilidade, fazendo com que seja incapaz de permitir que a teoria se torne ação concreta.
As contradições da perene cena política contemporânea, com seus impasses do fim de um ciclo, possibilitaram o reaparecimento da extrema direita como alternativa de poder em várias partes do planeta. Ressurgiu o individualismo, o obscurantismo, o fundamentalismo, a xenofobia, o reacionarismo e todas as formas de opressão da sociabilidade capitalista. Marx, como lição e ponto de partida, é uma fonte extraordinária para entendermos o processo em curso e avançarmos na procura do caminho que temos que construir para combater os monstros do fim de ciclo.
A atualidade de Marx encontra-se na análise fina com que nos alerta o filósofo francês, Alain Badiou: “enfrentar a realidade do capital é ter uma solução de práxis para a revolução”. Essa trilha seminal é a manifestação da profunda atualidade de Marx. Esse motivo concreto inspira e opera a luta pela hegemonia de um projeto que confronta a ordem do capital no atual ciclo histórico. No entanto, essa perspectiva estratégica só será vitoriosa com a organização da classe trabalhadora e sua duradoura formação teórica.
A obra de Marx é inseparável de sua vida e da luta histórica que travou. Seus estudos sempre refletiram os passos concretos das batalhas que lutou e dos fundamentos que desvelou para avançar na construção da revolução mundial. Sendo assim, no momento em que o gigante pensador marxista, Ernest Mandel, completou cem anos, podemos, com base em sua contribuição, descortinar algumas etapas da “história” de Marx.
Os escritos de 1837-1843 conformam o que identificamos como democratismo radical, marcado por trabalhos como Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e Epicuro, A Gazeta Renana e a Crítica da filosofia do direito de Hegel.
Os fundamentos da emancipação política à emancipação social (1843-1844) são encontrados nos livros Sobre a questão judaica, na Introdução a uma crítica da filosofia do direito de Hegel e nos Manuscritos econômico-filosóficos.
No ápice das revoltas europeias (1848-1850), Marx se dedicou ao movimento da revolução burguesa à revolução proletária. São desse período o Manifesto comunista, Trabalho assalariado e capital, e a Mensagem ao Comitê Central da Liga dos Comunistas.
Com a derrota da chamada primavera dos povos, Marx escreveu dois livros de balanço daquela vaga revolucionária, das lutas de classes e das lutas políticas daquele período (1850-1852): As lutas de classes na França (três ensaios publicados numa revista) e O 18 de brumário de Luís Bonaparte.
A partir daí um novo ciclo preocupa Marx, que começou a desenvolver pesquisas sobre o capitalismo (1853-1859), iniciando o processo de preparação de O capital. É também desse período a colaboração no jornal New York Daily Tribune (1852-1862), os Grundrisse e a Crítica da economia política.
Tendo como corte temporal os anos de 1860-1867, Marx aprofunda sua obra econômica e realiza debates na I Internacional. Sendo dessa etapa Teorias sobre a mais-valia, Manuscrito II de O capital, Discurso inaugural da Associação Internacional dos trabalhadores, O capital (Livro I), O capital (Vol. II – manuscrito), 1869-1870.
Podemos fechar esse ciclo intelectual (1867-1883) com as preocupações de Marx sobre a revolução proletária em marcha e os partidos políticos. Temos então os Dois informes sobre a guerra franco-prussiana, A guerra civil na França, Crítica do programa de Gotha, Carta aos dirigentes da social democracia alemã, Carta a Vera Zassoulith e o Prefácio à segunda edição russa do Manifesto comunista.
Hoje, 205 anos depois de seu nascimento, o pensamento de Marx nos coloca de frente para a história e é fundamental no debate sobre a revolução no começo do século XXI. Afinal, quando os trabalhadores franceses dias atrás, em luta aberta por seus direitos, cantaram o hino da Internacional em manifestações nas ruas de Paris, um novo ciclo começou a ser apresentado com forte possibilidade de desvelar as lutas de classes e apresentar um real e concreto projeto de futuro para a humanidade.
Marx Vive!
A VIDA DE MARX EM TRÊS BIOGRAFIAS
Karl Marx: uma biografia, de José Paulo Netto
Com maestria e erudição, José Paulo Netto nos conta a história de Karl Marx neste livro fundamental, fruto de uma vida inteira dedicada ao estudo da obra marxiana.
Karl Marx e o nascimento da sociedade moderna, de Michael Heinrich
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O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883), de Marcello Musto
Análise perspicaz dos anos finais e ainda pouco explorados da vida de Karl Marx. Combinando rigorosa abordagem acadêmica com uma escrita acessível
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Milton Pinheiro é Cientista Político, professor titular de história política da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e dirigente nacional do PCB. Pesquisador na USP, editor da revista Novos Temas e autor/organizador de dez livros, entres eles, Ditadura: o que resta da transição (Boitempo, 2014).