Dívida pública e acumulação capitalista no Brasil
A centralidade do Sistema da Dívida Pública no processo de acumulação de capital no Brasil
Antônio Victor de Mendonça Moreira – militante do PCB do Ceará
Nos últimos meses, o Governo Lula III e setores da grande mídia iniciaram discussões em torno dos elevados patamares da taxa de juros SELIC, bem como dos rumos adotados pelo Banco Central na condução da política monetária nacional. De fato, este é um tema complexo que envolve termos pouco difundidos na classe trabalhadora, mas cabe o esforço de compreensão crítica, com efeito de aprofundar estratégias e táticas mais adequadas para o enfrentamento radical a um dos principais pilares da acumulação de capital no Brasil, isto é, o Sistema da Dívida Pública e suas remessas de juros.
A Dívida Pública Federal (DPF) expressa a principal forma de “estoque” do endividamento da União, ou seja, consiste em um mecanismo estatal de financiamento, concomitante à arrecadação tributária e às contribuições por melhoria, dos serviços públicos em geral e das operações financeiras estruturadas pelo Estado, em seus distintos entes federados. Nesse bojo, tem-se que parte da DPF decorre da emissão direta de títulos públicos, compreendidos como Dívida Pública Mobiliária Federal interna (DPMFi).
Atualmente quase a totalidade da DPF é constituída em moeda nacional, o real. Com isso, segundo dados da Secretaria do Tesouro Nacional, constata-se que os títulos da DPMFi representaram, em 2021, próximo de 95%, ou R$ 5,34 trilhões, dos R$ 5,61 trilhões totais da DPF. Os outros 5% da DPF representaram a Dívida Mobiliária Federal externa, isto é, contratações do Estado Brasileiro com instituições e em moedas estrangeiras.
A DPMFi evoluiu, sobretudo nas últimas décadas, a partir de uma tendência de acelerado crescimento, saltando, em 1995, de 15% do Produto Interno Bruto (PIB), R$ 108,48 bilhões, para 62% do PIB, em 2021, isto é, R$ 5,34 trilhões. Tal aumento exponencial da DPMFi evidencia a centralidade assumida por um sistema específico de extração da riqueza socialmente produzida no Brasil, isto é, o Sistema da Dívida Pública. Esse mecanismo de exploração é protegido ferozmente pelo capital financeiro de “interferências” da classe trabalhadora, mesmo que de seus representantes eleitos, mediante mecanismos jurídico-institucionais, como a Lei de Responsabilidade Fiscal (L.C. Nº 101/2000) e o Teto de Gastos (E.C. Nº 95). Assim, a riqueza mobilizada por esse sistema de exploração aparece na forma de juros dos títulos da dívida pública, executados mediante política monetária do Banco Central e pagos pelo Tesouro Nacional a pouquíssimos agentes, especificamente aqueles vinculados ao mercado financeiro.
Desse modo, os títulos públicos funcionam como “garantia” para operações de curtíssimo prazo entre os bancos comerciais e o Banco Central. De forma “compulsória”, isto é, determinados por lei, os bancos comerciais devem realizar depósitos em suas contas no Banco Central, gerando reservas de dinheiro, a fim de garantir a estabilidade dos meios de pagamentos em circulação no País. Como forma de “recompensa” por esses depósitos compulsórios, o Banco Central “aceita” trocá-los por títulos públicos, a partir da definição de uma taxa de juros de curto prazo. Essa taxa, portanto, determina o pagamento, realizado pelo Tesouro Nacional, de uma certa quantia monetária a esses mesmos bancos comerciais.
Tais dinâmicas financeiras, compreendidas como “operações compromissadas”, consistem em transações de compra e venda de títulos públicos, com a garantia de recompra pelo Estado Brasileiro, mediante execução do Banco Central e pagamento pelo Tesouro Nacional. Nesse sentido, o Banco Central atua para fixar uma taxa básica de juros, objetivando garantir a realização diária dos depósitos compulsórios dos bancos comerciais que atuam no País. Sendo assim, a autoridade monetária, com intuito de aproximar a taxa de juros desse mercado específico àquela que entende “mais adequada” à execução da política monetária nacional, ingressa ativamente nesse processo, determinado a média das taxas de juros de um dia, praticadas, especificamente, em operações compromissadas com títulos públicos. Essa especificidade da política monetária, que fixa uma média das taxas de juros de curto prazo, é compreendida como Sistema Especial de Liquidação e Custódia (SELIC).
Assim, a taxa SELIC é determinada no interior do Banco Central, a partir dos relatórios emitidos pelo Comitê de Política Monetária (COPOM). Todavia, o COPOM, sob o manto da ideologia neoliberal, justifica a fixação da taxa SELIC, a partir do controle inflacionário, pregando que para conter a inflação deve-se, única e exclusivamente, elevar a taxa de juros. Essa ideologia, de matriz neoliberal, é utilizada, em boa medida, para justificar a manutenção dos elevados patamares da taxa SELIC, a maior taxa de juros real praticada atualmente no mundo, em nome de um combate a uma suposta inflação de demanda.
Ora, uma alta demanda, ou seja, um mercado interno “aquecido”, pressuporia, além de uma contínua ampliação do consumo da classe trabalhadora e do investimento em geral, o esgotamento da capacidade instalada, para mobilização de maquinaria, força de trabalho e matérias-primas. Na medida em que esses fatores econômicos estivessem na sua capacidade máxima de utilização, os capitalistas se obrigariam, portanto, a elevar os preços das mercadorias em circulação. Este seria o cenário da inflação de “alta demanda”.
O que se verifica, contudo, é o contrário disso. A inflação brasileira, atualmente, atingindo a marca de 5,7%, tem pouco a ver com uma alta demanda. A inflação está, cada vez mais, determinada pela pressão do dólar, a repercutir nos preços dos combustíveis, da energia elétrica e de outros elementos essenciais da produção e circulação de capital, os quais impactam diretamente nos custos de produção das mercadorias e serviços ofertados nacionalmente.
Quer dizer, a inflação brasileira, diferentemente do que apregoam os agentes do Banco Central, não está determinada por um “superaquecimento” do mercado interno, isto é, por uma “alta demanda”, mas pela elevação dos custos de produção, sobretudo dado o impacto do câmbio nas matérias-primas essenciais. Nesse sentido, o que se observa no Brasil são três elementos imbricados: (I) relativa ociosidade da capacidade produtiva instalada; (II) estagnação do consumo da classe trabalhadora; (III) retração do investimento, tanto estatal quanto dos capitalistas. Tais elementos podem ser evidenciados quando se analisa a taxa de desemprego, fixada em 9,3%, tendo chegado a 11% em anos anteriores, a taxa de endividamento das famílias, ultrapassando 60%, bem como a taxa média de investimento, público e privado, a qual não ultrapassa, em anos recentes, 17% do PIB, taxa muito inferior à de outros países ditos “emergentes”, registrada na média de 30% do PIB.
Durante os últimos trinta anos, especificamente, após o Plano Real, o grande beneficiário das atuais determinações da inflação brasileira, bem como da condução da política monetária pelo Banco Central é o capital financeiro, nacional e estrangeiro, com destaque para os grandes bancos comerciais, seja porque ganham diretamente com as operações compromissadas, ou porque realizam a mediação institucional de outros proprietários dos títulos, isto é, dos fundos de pensão e de investimento.
Do outro lado dessa intrincada equação, largos setores da classe trabalhadora, além de pequenos e médios proprietários, constituem-se como os principais prejudicados por essa política monetária, na medida em que se observa a estrutura dos juros cobrados desses segmentos sociais, ou seja, fora do sistema SELIC, quando se observa, por exemplo, o rotativo do cartão de crédito, empréstimos consignados, financiamentos automotivos e empréstimos para capital de giro. Ao analisar os dados publicados pelo próprio Banco Central, percebe-se que os bancos comerciais e outras instituições financeiras, os mesmos agentes que se beneficiam das operações compromissadas, cobram, em média, 450% ao ano de juros no rotativo do cartão de crédito, 40% com crédito consignado, 25% com aquisição de veículos e 20% com empréstimo para capital de giro.
Tais taxas de juros, além de não terem uma vinculação explícita com a taxa SELIC, atualmente, mantida no patamar de 13,75%, são completamente incompatíveis com a manutenção e/ou melhoria da qualidade de vida da classe trabalhadora, bem como da expansão da capacidade produtiva e tecnológica do País. Em verdade, essas taxas exorbitantes referem-se, em grande medida, à concentração e centralização do sistema bancário no Brasil, no qual cinco grandes bancos, isto é, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Bradesco, Itaú-Unibanco e Santander realizam mais de 80% das transações financeiras nacionais. Tais bancos, portanto, se autorizam a cobrar taxas de juros extremamente abusivas da classe trabalhadora, dos pequenos e médios proprietários, reproduzindo um importante canal de extração da riqueza socialmente produzida no Brasil.
Do ponto de vista das finanças públicas, tem-se ainda que a política monetária, executada pelo Banco Central e ditada pelo capital financeiro, garante a drenagem, cada vez maior, de parcelas do fundo público ao pagamento de juros e encargos do sistema da dívida pública, afetando enormemente a sustentabilidade no tempo da execução de uma política fiscal em prol da classe trabalhadora. Em corroboração a isso, constata-se que, por exemplo, apenas em 2021, durante a pandemia de COVID-19, a União, no que tange à remuneração dos proprietários dos títulos da dívida pública, desembolsou R$ 551,41 bilhões. No mesmo período, as despesas da União referentes à saúde totalizaram R$ 187,51 bilhões, montante 3,5 vezes menos do que foi gasto para executar o serviço da dívida. Trata-se de um verdadeiro assalto, legitimado tanto pela grande mídia quanto pelo arcabouço jurídico-contábil vigente, ao fundo público, isto é, à riqueza socialmente produzida no Brasil.
Desse modo, as despesas fiscais e da seguridade social são “congeladas” , ou seja, restringe-se a atuação do Estado Brasieliro na prestação dos serviços públicos, essenciais para a realização de direitos fundamentais à classe trabalhadora, como educação, saúde, previdência social, habitação, saneamento etc, mediante amarras jurídico-institucionais, como o Teto de Gastos do Governo golpista de Michel Temer e o Novo Teto de Gastos, proposto por Haddad, no atual Governo Lula III, visando, apenas, aprimorar seu antecessor. Tais entraves à expansão fiscal são constantemente festejados pelos capitalistas e seus ideólogos, a partir da contabilidade dos “superávits primários”, isto é, de um “saldo positivo” entre as despesas e as receitas da União, a excluir a desenfreada expansão das despesas financeiras, que ocupam mais de 50% do orçamento da União.
Esses elementos expressam, na dinâmica de acumulação de capital no Brasil, enfim, a centralidade do Sistema da Dívida Pública, a mobilizar, cada vez mais, o fundo público para o pagamento de juros e rolagem da DPMFi, beneficiando poucos capitalistas financeiros, em detrimento da expansão das despesas da União com serviços públicos, essenciais para a manutenção da vida da classe trabalhadora brasileira. Esses processos ainda são reproduzidos como um mecanismo político-ideológico de subordinação irrestrita à agenda neoliberal, que apregoa uma rígido arrocho das despesas discricionárias e de investimento do Estado e, ao mesmo tempo, uma política monetária que utiliza a taxa de juros como único mecanismo capaz de “frear” uma inflação, a qual é muito mais impactada pelo câmbio, apreciando os custos de produção, do que pelo aquecimento do mercado interno.
Diante disso, o Governo Lula, apesar de tecer críticas superficiais aos elevados patamares da taxa SELIC, não dá sinais, em curto e médio prazos, de modificação estrutural dessa dinâmica de acumulação de capital no Brasil. Portanto, para garantir uma transformação radical desse processo parasitário de extração da riqueza socialmente produzida por frações das classes dominantes, em prol da realização do poder popular, faz-se necessário pautar a imediata reversão da autonomia do Banco Central, a revogação do Teto de Gastos, bem como recolocar na mesa a regulação do Sistema Financeiro Nacional, processo previsto na Constituição de 1988, especificamente, no seu artigo 192, e, a longo prazo, exigir a estatização do sistema bancário nacional, a fim de garantir a contínuo financiamento da melhoria da qualidade de vida da classe trabalhadora, bem como a expansão das capacidades produtiva e tecnológica nacionais.