O Partido de Lênin

imagemRodrigo Lima*

A força do movimento pela revolução mundial estava na forma comunista de organização, o “novo tipo de partido” de Lênin, uma formidável inovação de engenharia social do século 20, comparável à invenção das ordens monásticas cristãs e outras na Idade Média. Dava até mesmo a organizações pequenas uma eficácia desproporcional, porque o partido podia contar com extraordinária dedicação e auto-sacrifício de seus membros, disciplina e coesão maior que a de militares, e uma total concentração na execução de suas decisões a todo custo. Isso impressionava profundamente até mesmo os observadores hostis. (Hobsbawm – Era dos extremos: o breve século XX 1914/1991)

No marco da comemoração dos 150 anos do nascimento do revolucionário russo Vladimir Ilich Ulianov, que ficou conhecido pelo seu codinome Lênin (1870-1924), diversas referências e homenagens tem sido realizadas ao redor do mundo. O líder bolchevique foi o maior revolucionário do século XX, ao conciliar uma vasta e complexa produção teórica com uma militância permanente em prol do Comunismo, liderando a primeira experiência de construção do primeiro Estado socialista na história da humanidade.

Dentre as tantas contribuições de Lênin, uma das mais importantes foi a concepção de uma forma de organização partidária que fosse capaz de dirigir a classe trabalhadora rumo à revolução socialista. O modelo de organização bolchevique inspirou revolucionários do mundo. Através da Internacional Comunista, criada em 1919, a criação de partidos comunistas expandiu-se rapidamente, sacudindo e colocando em xeque o capitalismo internacional, através da mobilização de milhões de trabalhadores/as na direção do projeto revolucionário.

A partir da Revolução de Outubro de 1917 e a consequente criação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) abriu-se um novo e importante ciclo de lutas e transformações econômicas, políticas e sociais protagonizados pela classe trabalhadora em todo o mundo.

Há mais de cem anos os trabalhadores russos ousaram “tomar o céu de assalto” e materializaram a revolução socialista, cuja elaboração teórica havia sido traçada durante o século XIX a partir das formulações de Karl Marx e Friedrich Engels e esboçada pelo movimento operário europeu, principalmente através da experiência da Comuna de Paris (1871), que teve curta duração.

Se do ponto de vista teórico, o processo revolucionário russo teve seu fundamento no arcabouço filosófico, econômico e político do marxismo, na perspectiva organizacional o mesmo se sustentou a partir de dois elementos fundamentais. O primeiro assentava-se na própria elaboração histórica e social da classe operária russa, que criou os sovietes como um espaço de democracia e participação política operária. E o segundo, baseava-se na formulação teórica de Vladimir Lênin, a principal liderança política da Revolução Socialista russa, que inovou ao projetar um novo modelo de organização partidária, que foi aplicada na forma organizativa do partido bolchevique.

Se os Sovietes – ou Conselhos – de operários, camponeses e soldados, consolidaram o espaço fundamental da democracia operária e da organização da classe trabalhadora russa solidificando as bases da revolução, foi o Partido Bolchevique – ou Comunista – quem cumpriu o papel de organizador das massas rebeldes, colocando a luta de classes no centro do debate, a partir de uma rica elaboração política fundamentada no marxismo e de um tipo de organização de concepção leninista de um partido classista, orientado para o enfrentamento contra o capital e estabelecido como vanguarda da classe trabalhadora em movimento. Combinando, de forma dialética, uma profunda democracia interna com a unidade de ação e a disciplina partidária, o centralismo-democrático.

O operariado russo foi um dos principais protagonistas no processo revolucionário. A revolução não teria sido vitoriosa se não houvesse a organização dos sovietes, que consistia em um rico e dinâmico processo de construção da democracia e do poder operário, construído desde a base e que possibilitou a consolidação de uma contra-hegemonia, em oposição ao Estado russo, seja durante o regime czarista, ou no período do governo provisório, que durou de fevereiro a outubro de 1917, liderado pela burguesia.

Quando Lênin, sinalizou em suas Teses de Abril, que era preciso construir a Revolução Socialista, sem pactuações com a burguesia, o lema “Todo Poder aos Sovietes” significava a necessidade do controle do poder pela classe trabalhadora organizada:

Explicar às massas que os sovietes de deputados operários (SDO) são a única forma possível de governo revolucionário e que, por isso, enquanto este governo se deixar influenciar pela burguesia, nossa tarefa só pode consistir em explicar os erros de sua tática de modo paciente, sistemático, tenaz, e adaptado especialmente às necessidades práticas das massas. (LÊNIN, 2015, p. 65).

Os sovietes tiveram sua origem com a Revolução de 1905, como expressão criativa da classe trabalhadora russa, que criou um mecanismo que cumpria o papel de organizar as greves e as mobilizações dos trabalhadores fabris, mas que rapidamente espalhou-se para o campo e também teve adesão dos soldados. A participação política nos sovietes se dava de forma direta, um exercício do poder popular. Os conselhos operários tiveram seu surgimento como uma espécie de comitê de greves, mas que rapidamente evoluíram para um espaço de organização e mobilização da classe, avançando do debate específico das condições de vida e trabalho, para a necessária transformação da sociedade.

Mas os sovietes, fundamentais para a Revolução Socialista, não teriam avançado tanto se não houvesse uma direção clara e um programa político que apontasse para a superação do capitalismo e do regime político burguês na Rússia. Vários eram os grupos políticos organizados na Rússia pré-revolucionária. Mas foram os bolcheviques que conseguiram desenvolver um programa revolucionário, que contou com a adesão das massas em movimento, conduzindo o processo revolucionário.

Os bolcheviques desenvolveram uma ampla elaboração teórica, ao analisarem a formação do capitalismo e da luta de classes na especificidade russa, tomando a teoria de Karl Marx e Friedrich Engels não como um dogma, mas como um guia para a ação, como afirmava o próprio Lênin.

A partir da análise criativa e dialética do contexto russo, os revolucionários de 1917, erigiram um programa que sustentava-se na possibilidade de construção da Revolução Socialista em um país como a Rússia, predominantemente rural no início do século XX e com um processo de industrialização e de desenvolvimento capitalista em uma escala bem menor que a encontrada nos países da Europa Ocidental.

A aposta na classe operária, ainda incipiente na sociedade russa, como protagonista, em um contexto de acirramento da luta de classes, foi um fator fundamental para que os bolcheviques protagonizassem a luta política que conduziu a revolução.

O que foi possível devido a constituição de uma organização partidária sólida, com forte enraizamento nas lutas sociais e com grande inserção nos meios operários. A partir da leitura da realidade, não como um espectador da luta de classes, mas sim como um ator inserido no movimento de massas, o partido bolchevique rompeu com as ilusões de construção de uma democracia burguesa, que emanava da Revolução de Fevereiro, e a partir do protagonismo da classe operária, sinalizou para a construção do Socialismo.

Segundo Krausz (2017) o modelo de partido revolucionário formulado por Lênin em sua obra Que fazer? sinalizava para uma ruptura com as formas de organização política presentes na Rússia ao final do século XIX, que eram baseados em círculos de debate intelectual ou em pequenas células revolucionárias, que não representavam formas organizativas que pudessem contemplar as demandas do crescente operariado russo e tampouco representavam maiores problemas para o regime czarista.

Como uma ruptura com as antigas formas de organização política ligadas a classe trabalhadora russa, o partido revolucionário proposto por Lênin deveria ser composto por “ “revolucionários profissionais”, habituados às regras da conspiração, às consequências revolucionárias da teoria marxista, à história e à “lógica” das lutas política e armada, conhecedores dos meios à disposição do partido” (KRAUSZ, 2017, p. 156). Portanto:

[…] o partido seria concebido por Lênin como um corpo orgânico e organizar-se-ia em torno de dois princípios fundamentais: 1) o da militância revolucionária: compreendendo uma relação entre militante e partido que se funda num compromisso de toda a personalidade do militante à obra integral de edificação de uma nova sociedade. 2) o do centralismo democrático: onde o momento centralista governa a direção unitária do partido, que com a disciplina compromete a todo o militante com a realização da linha geral definida e a execução dos objetivos específicos que concordaram em alcançar. O momento democrático, em troca, garante que a linha do partido se decidirá através de um cotejo livre e geral das ideias e com a adoção das teses prevalecentes. (CÁNEPA, 1988, p. 25-26)

A inovação leninista, na forma de organização partidária, criou as condições para um crescimento vertiginoso da influência dos bolcheviques junto ao operariado russo, setor estratégico para a revolução. O acerto organizacional e a crescente adesão às propostas comunistas fez com que rapidamente os bolcheviques passassem de um partido de atuação clandestina para um partido que, às vésperas da revolução, abarcava uma ampla massa de militantes.

Os bolcheviques ainda eram minoria no Congresso dos Sovietes, de junho, e ainda precisavam vencer a eleição em uma metrópole importante. Mas sua força crescente já era evidente no nível da base – nos comitês operários de fábrica, nos comitês de soldados e marinheiros nas forças armadas e nos sovietes distritais locais das grandes cidades. A filiação ao Partido Bolchevique também crescia de modo impressionante, embora os bolcheviques nunca tivessem tomado a decisão formal de lançar um movimento de recrutamento em massa, e parecessem até surpresos com a afluência. Os números de filiação ao partido, por mais instáveis e provavelmente inflados que sejam, dão uma ideia de suas dimensões: 24 mil membros do Partido Bolchevique na época da Revolução de Fevereiro (embora essa cifra seja particularmente suspeita, pois a organização do partido em Petrogrado pôde identificar apenas cerca de 2 mil membros em fevereiro, e a organização de Moscou, seiscentos); mais de 100 mil no final de abril; e em outubro de 1917, um total de 350 mil membros, incluindo 60 mil em Petrogrado e na província ao redor e 70 mil em Moscou e na adjacente Região Industrial Central. (FITZPATRICK, 2017, p. 80)

O crescimento partidário sustentava-se em uma linha política que dialogava com os anseios da classe trabalhadora russa, como as bandeiras de paz imediata, com a saída da Rússia da Primeira Guerra Mundial; de distribuição de terra para quem nela trabalha; e de pão para alimentar os trabalhadores russos, mergulhados na pobreza e na exploração. Tais foram os eixos programáticos fundamentais na construção de um processo de transição. O lema “Paz, pão e terra”, sintetizou um programa revolucionário, articulando e mediando uma estratégia socialista as lutas reais do povo, constituindo o movimento revolucionário que abriu um novo capítulo na luta dos trabalhadores pela emancipação.

Com o sucesso da revolução e sua consolidação após o fim da Guerra Civil (1918-1922), a tomada do poder pela classe trabalhadora passava a ser um objetivo possível de ser alcançado por outros povos, e em outros países.

O sopro revolucionário que acalentou corações e mentes por todo o mundo, não traduziu-se apenas no desejo do avanço dos povos rumo ao socialismo. A Revolução de 1917, proporcionou uma ferramenta de elaboração política, organização e luta, que difundiu-se de forma extremamente rápida por todos os continentes, alterando substancialmente a luta de classes no cenário internacional e trazendo um novo protagonismo para a classe trabalhadora, em diferentes países. Uma das grandes contribuições legadas por Vladimir Lênin para as lutas presentes da classe trabalhadora.

Referências

CÁNEPA, Mercedes Maria Loguercio. O partido político operário: Marx e Lênin. In: Textos para discussão: Programa de Mestrado em Ciência Política, UFRGS. Porto Alegre N. 4 (nov. 1988).

FITZPATRICK, Sheila. A Revolução Russa. São Paulo: Todavia, 2017.

HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: breve século XX 1914/1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

KRAUSZ, Tamás. Reconstruindo Lênin: uma biografia intelectual. São Paulo: Boitempo, 2017.

LÊNIN, Vladimir I. Sobre as tarefas do proletariado na presente revolução (Teses de abril). In: ZIZEK, Slavoj. Às portas da revolução: escritos de Lênin de 1917. São Paulo: Boitempo, 2005.

* Professor no Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC) e militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB).