A Revolução Russa: objetividade e subjetividade na construção do caminho

imagemDiante da Revolução Russa, o marxismo revolucionário de hoje não tem alternativa a não ser enfrentar o problema da transição, debruçar-se sobre os acontecimentos e compreender as determinações que conduziram ao desfecho distinto daquele que se esperava.

Por Mauro Luis Iasi.

“Uma sociedade jamais desaparece antes
que estejam desenvolvidas todas as forças
produtivas que possa conter”
Karl Marx, 1859.

Um dos argumentos principais da ofensiva conservadora e reacionária contra a Revolução Russa reside na afirmação que a experiência socialista teve sua chance na história e fracassou. Diante das reconversões capitalistas da Rússia, China e outras experiências, atualiza-se a ironia segundo a qual o socialismo seria o caminho mais longo do capitalismo até o capitalismo. Considerando o enorme custo político, social e humano destes processos o senso comum de nossa época prepara o julgamento e a sentença: não vale a pena.

Interessantemente, o núcleo central deste argumento conservador figura mesmo em alternativas de esquerda que louvam a Revolução Russa para descartar os caminhos que ela indica, preferindo o lento desenvolvimento através do qual a história nos levará ao futuro inexorável de mais justiça e igualdade, sem traumas e sem rupturas.

O marxismo revolucionário não tem alternativa a não ser enfrentar o problema da transição, debruçar-se sobre os acontecimentos e compreender as determinações que conduziram ao desfecho distinto daquele que se esperava.

Comecemos por recordar os termos em que Marx coloca a questão da transição. A compreensão da história em Marx se fundamenta na convicção de que as sociedades mudam quando as forças produtivas se desenvolvem ao ponto de produzir uma contradição com as relações sociais de produção existentes. Tal princípio nos leva a uma constatação um tanto incômoda: nenhuma sociedade muda antes que desenvolva todas as forças produtivas que pode conter, mais ainda, que jamais surgem novas relações sociais antes que as condições para tanto se desenvolvam no interior da sociedade antiga (Karl Marx, Contribuição à crítica da economia política, prefácio).

Profundamente coerente com sua compreensão teórica materialista e dialética, o autor acredita que uma sociedade nova se desenvolve a partir da crise da velha sociedade. Neste ponto se apresenta o nó central de nosso problema e que é assim apresentado por Marx:

“O que se trata aqui não é de uma sociedade comunista que se desenvolveu sobre sua própria base, mas de uma que acaba de sair precisamente da sociedade capitalista e que, portanto, apresenta ainda em todos os seus aspectos, no econômico, do moral e no intelectual, o selo da velha sociedade de cujas entranhas procede.”
(Karl Marx, Crítica do Programa de Gotha, Boitempo, 2012).

Tal postulado pode levar a dois problemas de interpretação acompanhados de equívocos políticos práticos. Por um lado, pode levar ao imobilismo. Isto é, uma vez que não estejam dadas as condições e o desenvolvimento necessário das forças produtivas, não seria possível fazer a revolução. Por outro lado, há o risco de se justificar todas as distorções ocorridas na transição pelas características próprias de uma transição (a presença ainda do velho na criação do novo). Creio que tanto um como outro equívoco radicam na desconsideração do aspecto subjetivo do processo histórico.

A história não é pura objetividade. Isto significa que, mesmo não estando dadas as condições objetivas, é possível que se apresentem na subjetividade da classe revolucionária as condições que coloquem como objetivo a revolução e a transformação da sociedade. A humanidade, dizia Marx na Contribuição à crítica da economia política, se só coloca objetivos que pode alcançar, pois quando analisamos mais detidamente já haviam, ou estavam em gestação, as condições materiais que tornam a ação humana. Ora, não há um ponto determinado de desenvolvimento máximo das forças produtivas e da contradição que daí resulta, e sim um processo, um contínuo de desenvolvimento no interior do qual várias situações se apresentam (por exemplo, situações e crises revolucionárias) que podem reunir as condições para a ação daqueles que querem mudar o mundo.

Ocorre que isso não elimina a determinação material. Ou seja, a história não é, igualmente, pura subjetividade. Trata-se de uma complexa síntese: os seres humanos é que fazem sua história, mas não fazem como querem (Karl Marx, O 18 de brumário de Luís Bonaparte). Vejam que tal aproximação libera a classe revolucionária do imobilismo, mas não a livra de ter que realizar sua ação histórica em determinadas condições dadas.

Os bolcheviques, portanto, podiam e deviam ter ousado emplacar uma revolução socialista na atrasada Rússia, pois haviam condições políticas, organizativas e de consciência para tanto. Porém, só podiam desenvolver sua ação nas condições econômicas, morais e intelectuais que caracterizavam a formação social onde atuavam.

A vanguarda bolchevique tinha perfeita consciência desses limites, tanto que imaginava que o papel da revolução na Rússia era de ser retaguarda para uma revolução na Alemanha, funcionando como um elo de ligação entre o processo revolucionário do ocidente e do oriente. Como vimos, no entanto, os seres humanos não fazem a história como querem.

A derrota da revolução na Alemanha levará a transição por caminhos que marcariam definitivamente seu devir. No entanto, é aqui que se inscreve o segundo problema, o de justificar por conta desse contexto todos os problemas que daí derivam (o socialismo em um só país, a burocratização, etc.). Aqui também opera a dialética entre condições objetivas e subjetivas.

É fato que as condições materiais em que teriam que se dar a transição apresentavam problemas evidentes. Primeiro, do ponto de vista político era preciso garantir o poder recém conquistado e as classes derrotadas não pareciam dispostas a aceitar o surgimento de um Estado proletário. À destruição causada pela Guerra mundial (1914-1918) se soma a Guerra Civil e o resultado é catastrófico.

Entre 1918 e 1921 ocorre um debate no Partido e na sociedade soviética que nos parece expressar de forma didática esta questão: o debate sobre a forma de gestão da produção e o papel dos sindicatos.

Os estudiosos concordam que o pais estava em ruínas.* A intervenção de 14 Estados de três continentes diferentes (Europa, América e Ásia) potencializou a destruição material do novo Estado que tentava se erguer (Poliakov, et al, 1979, p. 62). Considerando as baixas desde 1914, temos mais de 20 milhões de mortos e cerca de 4,4 milhões de inválidos entre os 16 e 49 anos. As precárias condições de vida levavam a proliferação de epidemias, apenas o tifo atingiu 3,5 milhões de pessoas (idem, p. 104-5). A economia resistia a duras penas. A produção agrícola caiu pela metade, a produção industrial caiu mais de dois terços, na grande indústria a queda foi de 80%, na produção de setores estratégicos, como carvão e petróleo, a queda chegou a 70% (Reis Filho, 2003, p. 71; Ponomarev, 1960, p.389). A população das principais cidades reduzira-se de forma drástica, entre 1917 e 1920 a população de Petrogrado diminuíra em 57,5% e a de Moscou em 44,5% (Reis Filho, 1985: p. 99).

Nestas condições, Lênin afirmara de maneira drástica que não se tratava de iniciar a construção do socialismo, mas de manter uma sociedade minimamente civilizada. Mas, qual o caminho para enfrentar esta dramática situação? Dadas estas condições objetivas impossíveis de serem contornadas, existia um grande debate sobre questões essenciais diante do qual a vanguarda bolchevique tinha posições divergentes.

Entre os vários temas que poderíamos citar, destacaremos um que nos parece central pelas implicações que traz ao nosso tema: a questão da gestão da produção.

Entre os anos de 1918 e 1921 ocorre um intenso debate sobre a forma de gestão ou controle operário da produção. Veremos que a opção por um ou outro termo terá implicações. Trótski, que comandara o Exercito Vermelho no esforço de enfrentar a reação, propunha que a organização econômica deveria seguir o modelo implementado com sucesso na organização dos correios e ferrovias. Tal proposta implicaria numa rígida hierarquia e disciplina militar, de forma que os sindicatos e organizações operárias se centralizariam pelos organismos planejadores do Estado. A Oposição Operária, liderada por Alekssandra Kollontai, discordava desta tese e ponderava que a classe operária deveria gerir a produção industrial através de seus órgãos de poder (sindicatos e conselhos de fábrica) como forma de aprendizado que levaria a classe operária a gerir o conjunto da sociedade como nova classe dominante.

Este debate foi muito intenso e público (chegou-se a realizar enormes assembleias de massa discutindo o tema), desembocando em Congressos Sindicais e do Partido. Estou convencido que seu desfecho marcará o caminho da transição e seu destino. A posição de Lênin sobre o tema será decisiva. O líder bolchevique tinha uma forma própria de condução política que foi extremamente útil para o desenrolar da revolução e sua condução até aquele momento, isto é, defendia radicalmente suas posições e atacava impiedosamente seus adversários, mas se chegava a posições em que vários aspectos de seus interlocutores eram incorporados as decisões tomadas. Foi assim nos debates sobre as teses de abril, sobre a insurreição, sobre a constituinte, etc.

Neste sentido, Lênin discordou radicalmente da posição de Trótski, mas sabia do papel central da produção na questão da segurança e manutenção do Estado Soviético, assim como da necessidade da centralização e do planejamento na organização do ato econômico. Atacou impiedosamente as posições da Oposição Operária, mas ressaltava a importância da organização operária e dos sindicatos, mesmo em um Estado Operário. No entanto, a habilidade política tem limites. A solução que pode parecer mais adequada e politicamente possível em um determinado momento, pode levar a graves consequências no desenrolar dos fatos.

A posição de Lênin era, sobre vários aspectos, problemática. Em primeiro lugar pela valorização dos sindicatos. Tratava-se muito mais de criar meios pelos quais a política do estado chegasse até a classe trabalhadora do que formas de autopoder da classe e sua experiência de gerir uma produção socializada. É neste ponto que não é surpresa que Lênin opte pelo termo “controle operário” e não “gestão operária”. Uma vez que o Estado não era apenas Operário, mas operário e camponês, era necessário que a ação política desse Estado criasse condições de enraizamento nas massas, neste sentido o sindicato seria um elo entre o Partido e o Estado, nos quais os segmentos de classe e das massas pudessem apresentar suas demandas e agir em nome de seu Estado, eram, nos termos do próprio Lênin, instrumentos para criar mais que um poder de Estado, uma hegemonia (Lênin, V. Sobre os sindicatos, o momento atual e os erros de Trótski. In_ Sobre os Sindicatos. São Paulo: Polis, 1979, p. 191).

Mas, controle e centralização para fazer o que? É neste ponto que a posição de Lênin, que acabou prevalecendo é muito problemática. Lênin assim coloca o problema:

“A última palavra do capitalismo neste terreno – o sistema Taylor –, da mesma forma que todos os progressos do capitalismo, reúne toda a refinada ferocidade da exploração burguesa e várias conquistas científicas de grande valor no que concerne aos movimentos mecânicos durante o trabalho, a superação dos movimentos supérfluos e torpes, a adoção dos métodos de trabalho mais racionais, a implantação do sistemas ótimos de contabilidade e controle.”
(Vladímir Lênin, “As tarefas imediatas do poder soviético”, p. 110).

A Oposição Operária irá confrontar este argumento com pontos que no mínimo deveríamos considerar. Diz o texto da Oposição:

“A causa desta crise se encontra na suposição de que “homens realistas” – técnicos, especialistas e organizadores da produção capitalista – podem libertar-se repentinamente das suas concepções tradicionais sobre a maneira de gerir o trabalho (concepção neles profundamente impregnadas pelos anos passados ao serviço do capital) e adquirir a capacidade de criar novas formas de produção, de organização do trabalho e de motivação dos trabalhadores. Supor que isto é possível é esquecer que um sistema de produção não pode ser mudado por alguns indivíduos geniais, mas somente pelas necessidades de uma classe.”
(Alexandra Kollontai, Oposição Operária. São Paulo: Global, 1980 p. 27).

Nenhum membro da Oposição Operária desconhecia o fato que os trabalhadores deveriam ser preparados para gerir a produção, técnica e politicamente, e que não estavam preparados naquele momento. A questão é outra, trata-se de organizar a produção de forma a fortalecer o poder da classe operária ou de enfraquecer este poder pela função, aparentemente técnica de administradores “cientificamente preparados”, ou nos termos que Lênin colocava a questão: a gestão de um só homem. O fato é que esta não é uma questão simplesmente técnica, mas terá implicações decisivas, como antecipa o próprio texto da Oposição Operária:

“Numa República operária, o desenvolvimento das forças produtivas pela técnica desempenha um papel secundário em comparação com o segundo fato, o da eficiente organização do trabalho e a criação de um novo sistema de economia. Mesmo que a Rússia consiga levar à cabo seu projeto de eletrificação geral, sem introduzir nenhuma mudança essencial no sistema de controle e organização da economia e produção ela não fará mais do que aliar-se aos países capitalistas mais avançados em matéria de desenvolvimento.”
(idem: p. 39).

Muitos anos depois, diante de um novo e diferente contexto, Che Guevara encarará esta problemática retomando alguns destes elementos, vejamos:

“Resta um longo trabalho por fazer na construção da base econômica e a tentação de seguir caminhos já trilhados do interesse material, como alavanca propulsora de um desenvolvimento acelerado, é muito grande.

Corre-se o risco de que as árvores impeçam a visão do bosque. Perseguindo a quimera de realizar o socialismo com os meios legados que vêem do capitalismo (a mercadoria como célula econômica, a rentabilidade, o interesse material individual como alavanca, etc.) se pode chega à um beco sem saída. E se chegamos à um ponto, depois de percorrer uma grande distancia em que os caminhos se entrecruzam muitas vezes e onde é difícil perceber o momento em que nos equivocamos de caminho? A base adaptada, entretanto, terá feito seu trabalho de solapar o desenvolvimento da consciência. Para construir o comunismo, simultaneamente com a base material, teremos que construir um homem novo(…) Não se trata de quantos quilos de carne se come ou quantas vezes por ano se pode ir à praia passear, nem de quantos belezas se pode trazer do exterior e comprar com os salários atuais. Se trata, precisamente, de que os indivíduos se sintam mais plenos, com muita riqueza interior e com mais responsabilidade.” (Che, apud Tablada Perez, Ernesto Che Guevara: hombre y sociedad. Buenos Aires: Antarca, 1987: p. 66-67).

Evidente que nenhum processo histórico se resolve em uma única determinação, mas estamos convencidos que neste caminho escolhido iniciou-se a formação de uma base material para os descaminhos que levariam às deformações burocráticas e aos impasses da transição. Não apenas pelas opções tomadas, não unicamente pela objetividade que constrangiam a ação dos revolucionários, mas certamente pela combinação e interação destes fatores.

Resta saber se isso, como costumam afirmar os detratores conservadores da Revolução Russa, desmente as teses centrais do marxismo. Me parece que não. Pelo contrário, como costumo afirmar, Marx estava dramaticamente correto, não apenas porque confirmou-se que nenhuma sociedade pode gerar novas relações sociais antes que se desenvolvam as condições materiais para tanto, como também pelo fato que os seres humanos mudaram a sociedade e foi sua ação que levou a novas contradições que precisaram ser enfrentadas e solucionadas em uma ou outra direção.

Já começamos a construir o futuro, mas a velha sociedade ainda agoniza sem morrer. Não temos outra opção a não ser buscar os sinais do novo nas entranhas do velho que perece. Como dizia Brecht: na mudança de lua, a lua nova segura a lua velha uma noite inteira nos braços. Como sabem os bons navegantes, mudança de lua não é uma época fácil, mas nem por isso desistem de navegar.


*Ver a respeito Poliakov, Leltchuk e Protopopov (1979), Carr (1979), Ponomarev (1960), Reis Filho (1983,2003), Netto (1981).

Referências:

Aleksandra Kollontai, Oposição Operária (1920-1921). São Paulo: Global, 1980.
Boris Ponomarev (org.), Histoire du Parti Communiste de L’Union Sovietque. Moscou, 1960.
Carlos Tablada Perez, Ernesto Che Guevara: hombre y sociedade. Buenos Aires: Antarca, 1987
Daniel Aarao Reis Filho, Rússia, anos vermelhos (1917-1921). São Paulo: Brasiliense, 1985.
____. URSS: o socialismo real (1921-1964). São Paulo: Brasiliense, 1983.
____. As revoluções russas e o socialismo soviético. São Paulo: UNESP, 2003.
Edward Hallet, A revolução Bolchevique II. Porto: Afrontamento, 1979.
José Paulo Netto, O que é o stalinismo?. São Paulo: Brasiliense, 1981
Karl Marx, Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo: Expressão Popular, 2007.
____. Crítica do programa de Gotha. São Paulo, Boitempo, 2012.
____. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo, Boitempo, 2011.
Poliakov, V. Leltchuk, A. Protopopov, História da sociedade soviética, Moscou: Ed. Progresso, 1979.
Vladímir Lênin, “Sobre os sindicatos, o momento atual e os erros de Trótski”. Em Sobre os sindicatos. São Paulo: Polis, 1979.

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