A classe média não vai ao paraíso

imagempor Golbery Lessa (membro do Comitê Central do PCB)

Onze meses após o primeiro afastamento de Dilma Rousseff da presidência da república, ocorrido em 12 de abril de 2016, a parte da classe média capturada pelo discurso da direita perdeu a motivação para ir às ruas, encontra-se ideologicamente confusa e experimenta circunstâncias econômicas piores do que antes. Como o fracasso dos atos públicos de 26 de março demonstra, a nova atitude desse setor social tenderá a desidratar os inorgânicos movimentos de massa liderados de maneira oportunista e antiética por grupos neoliberais como o MBL (Movimento Brasil Livre) e o Vem Para a Rua. Esse fenômeno parece ter as seguintes causas: 1) o objetivo imediato desse segmento, o impeachment da presidente, foi alcançado, e isso eliminou o principal motivo da unidade e da mobilização; 2) para serem coerentes com o próprio discurso, os chamados coxinhas tiveram que passar de uma atitude de oposição para a uma atitude de defesa acrítica do governo de plantão, o que é desmobilizador em si, principalmente para quem lastreou o próprio discurso no moralismo; 3) como não houve crescimento econômico no pós-Dilma nem medidas para conter a contínua ofensiva do grande capital contra a classe média (aumento do preço dos planos de saúde, manutenção do cartel das montadoras de automóveis, progressiva majoração das mensalidades das escolas e universidades privadas, juros extorsivos dos bancos, etc.) e as propostas de reforma da previdência e reforma trabalhista contrariarem também os setores médios, os coxinhas estão mais abandonados no presente do que no governo anterior e, portanto, não estão dispostos a se mobilizar em defesa de Michel Temer, o usurpador.

As circunstâncias mudaram bastante, mas a essência do fenômeno continua a mesma: durante os governos de Lula e Dilma, a esquerda petista, por ter apostado numa aliança estratégica com a direita e na consequente despolitização dos trabalhadores, propondo a inclusão pelo consumo e não pela política, perdeu influência sobre um setor decisivo da classe média, que foi hegemonizado pelos neoliberais e mobilizado em apoio ao golpe. Parte dessa classe passou a seguir a direita não por ser atavicamente conservadora, mas por falta de opção, pelo fato de a “esquerda” mais visível, o Partido dos Trabalhadores (PT), não lhe ter acolhido no seu projeto político. A análise da composição social das manifestações favoráveis e contrárias ao impeachment, a partir de formulários respondidos pelos manifestantes, demonstra que a classe média era majoritária nos dois polos antípodas. E mais: as quantidades de funcionários públicos, de profissionais liberais autônomos, de trabalhadores do setor privado mais bem remunerados e de pequenos e médios proprietários, os elementos basilares do que se concebe como classe média, bem como suas respectivas rendas e formação escolar, eram mais ou menos as mesmas nos dois lados. Em vez de reconhecer essa proximidade social básica entre os dois grupos e investigar as causas de suas conjunturais diferenças ideológicas e políticas, a maioria dos analistas passou a essencializar o conservadorismo que parte da classe média tem apresentado.

Após o PT ser retirado do Palácio do Planalto pelo golpe, a classe média capturada pelos neoliberais (e mesmo pelos fascistas, numa porcentagem minoritária, mas preocupante) passou a ter uma nova experiência com um governo federal de partidos bem mais à direita e, em poucos meses, começou a perceber que sua situação econômica piorou e seu protagonismo político vem sendo solapado pelo Executivo Federal e seus aliados nos outros poderes e na grande mídia. Isto é, está percebendo que os “revolucionários da ética na política” instalados no poder querem desmobilizar os jacobinos, desejam “parar o carro da revolução” em benefício do status quo burguês. Esse conflito entre os promotores do golpe ocorre porque o projeto do grande capital de enfrentar a crise econômica por meio da radicalização do neoliberalismo não comporta ganhos econômicos e políticos para a classe média, pois é um projeto fundado na total destruição das políticas públicas, no rebaixamento do nível de emprego, na pulverização dos direitos sociais, na restrição da participação popular e no fortalecimento das grandes empresas em detrimento das pequenas, ou seja, em elementos também hostis aos interesses dos setores médios.

Há um mito de que a classe média contemporânea seria formada majoritariamente por pequenos e médios capitalistas. Esse mito parece ser resultado de uma projeção no presente de uma constatação empírica da sociologia clássica relativa à estrutura social do século XIX europeu. Mas, segundo a PNAD/IBGE/2015, das 5.250.000 pessoas que recebiam, em 2015, entre cinco e dez salários-mínimos no Brasil, 62,5% delas eram empregadas, 20,8% trabalham por conta própria e apenas 16,7% eram empregadoras. Entre os citados 62,5 % (3.286.000, em números absolutos) empregados, cerca de 2.000.000 (61,0%) eram funcionários públicos (fonte: RAIS/2014); estes servidores correspondiam, portanto, a 38% da faixa fundamental dos setores sociais que estamos analisando. A maioria dos membros dessa faixa de rendimentos, por mais que recebam maiores rendimentos e tenham melhor qualificação, está inserida numa relação econômica idêntica, do ponto de vista estrutural, àquela dos trabalhadores menos remunerados e qualificados. Esse fato tem desdobramentos ideológicos e políticos fundamentais, não é um detalhe. A efetivação das reformas da previdência e trabalhista propostas pelo governo federal, por exemplo, teria o mesmo impacto desastroso para 86,3% dessa faixa da classe média (a soma entre empregados e autônomos) que teria para o operariado industrial. A renda e o status intelectual separa, mas o assalariamento une essas duas classes. A rigor, a expressão “classe média”, quando usada, como estamos fazendo neste artigo, para definir assalariados de alta renda e maior qualificação profissional, sejam do setor privado ou do setor público, é apenas uma forma abreviada de levar em conta as singularidades dessa camada da classe trabalhadora e não, de fato, a convicção de que eles comporiam uma classe diferente do proletariado. A maior parte da “classe média” é, portanto, apenas um setor melhor remunerado e mais qualificado tecnicamente do que as outras camadas da classe trabalhadora, por mais que seus hábitos de consumo e traços culturais sejam singulares.

Uma coisa era mobilizar parte dessa classe contra governos petistas que se aliaram ao grande capital (todos lembramos de Lula dizendo: “Os banqueiros nunca ganharam tanto dinheiro quanto no meu governo”) em detrimento dos principais interesses dos trabalhadores e dos setores médios, apesar do Bolsa Família e do aumento da renda (30%, em média) determinado por fatores econômicos alheios à ação governamental, como fez o MBL entre 2015 e 2016, outra coisa é tentar mobilizar a classe média contra a sua própria aposentadoria e seus próprios direitos trabalhistas em benefício dos planos da grande burguesia, ainda mais diante de um governo abarrotado de políticos profissionais processados por corrupção. O MBL e outros grupos do gênero têm consciência das diferenças entre os dois momentos políticos, mas, a partir do fanático programa neoliberal do qual partem, ditado por institutos financiados por governos de países centrais, principalmente os EUA, não conseguem apresentar propostas capazes de compatibilizar as aspirações da classe média e os interesses do grande capital; acabam, então, ensaiando um discurso escroto e inconsistente no qual tentam enganar seus milhares de seguidores.

Este é, portanto, um momento propício para a esquerda voltar a influenciar a parte da classe média hegemonizada pelos neoliberais durante as lutas em torno do impeachment. Principalmente porque a direita passou a expor mais claramente todas suas mazelas ao assumir o governo e, na outra ponta, os movimentos sociais e sindicatos começam a abandonar a passividade imposta pelos governos petistas, principalmente devido à necessidade de defenderem suas bases da radicalização sem precedentes do projeto neoliberal. Entretanto, para a esquerda cumprir essa e outras tarefas ideológicas e políticas fundamentais, é imperioso afastar-se de qualquer estratégia de conciliação de classes, que foi a causa principal do avanço da direita nos últimos 13 anos. A classe média só irá ao paraíso social e político pela via de uma aliança consciente com o proletariado e não pela subordinação à direita e ao grande capital. Sua aliança com os trabalhadores seria apenas o reconhecimento de sua própria natureza assalariada, do seu efetivo pertencimento à classe trabalhadora; mas esse reconhecimento necessita da mediação incontornável dos movimentos sociais, sindicatos e partidos de esquerda.

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