Sadoul, um oficial francês que aderiu à Revolução de Outubro
Miguel Urbano Rodrigues
[Publicamos hoje, 2 de agosto, dia do seu aniversário, o último texto que Miguel Urbano escreveu para odiario.info. É mais uma forma de mostrar que permanece e permanecerá presente. Como resulta de todos os seus textos – falando aqui da trajetória pessoal de Jacques Sadoul no exaltante período inicial da Revolução de Outubro – acrescenta e enriquece o nosso conhecimento e a nossa reflexão, um dos aspectos em que melhor se manifestava a sua grandeza intelectual e humana.]
Em outubro do ano passado, a Editora Turner lançou em Madrid um livro a que a crítica dedicou extensas recensões contraditórias: Cartas desde la Revolucion Bolchevique, de Jacques Sadoul* (1881-1956).
É uma tradução do original francês, Notes sur la Revolution Bolchevique, publicado em Paris em 1919.
O atraso de quase um século da versão espanhola explica-se pelo carater polêmico da obra e pelas perseguições de que o autor foi alvo. Hoje o seu nome está quase esquecido. A imagem de Sadoul no Exercito Francês é má.
O livro, como o título indica, é uma colectânea de cartas, enviadas de Petrogrado e Moscovo entre outubro de 1917 e janeiro de 1919. A grande maioria dirigida ao seu amigo Albert Thomas, que foi dirigente do Partido Socialista Francês e ministro dos Armamentos no início da Guerra de 14/18. Duas dessas cartas têm porém como destinatário Romain Rolland, Prêmio Nobel de Literatura, e a Introdução, elogiosa, é de
Henri Barbusse, outro escritor famoso.
Sadoul era um capitão do exército quando foi colocado na Rússia como membro da Missão Militar Francesa.
A sua tarefa consistia em recolher e enviar informações sobre a Rússia onde o Partido Bolchevique acabava de tomar o poder.
O jovem oficial, mergulhado no caldeirão revolucionário, demonstrou quase imediatamente uma grande perspicácia e isenção na interpretação de uma realidade extremamente complexa. A sua tarefa foi muito difícil porque quase todos os representantes da França na ex-capital, a principiar pelo embaixador Noulens, eram ostensivamente anticomunistas e estavam persuadidos de que o governo soviético não tinha condições para durar muitos dias.
Logo nas primeiras cartas, Sadoul transmite uma opinião oposta à do pessoal diplomático e dos militares da Missão.
Discorda do apoio francês às forças e partidos contrarrevolucionários, e denuncia a sabotagem dos industriais, dos financeiros e técnicos que se esforçam por inviabilizar as medidas tomadas pelo governo dos comissários do povo.
O capitão francês lembra repetidamente que não é comunista e chama a atenção para a desordem imperante no gigantesco país e para a carência de quadros comunistas competentes.
Sadoul é um socialista de esquerda com vagas leituras marxistas. A insuficiência da sua formação política transparece aliás da convicção de que a revolução bolchevique tinha uma direção bicéfala. Ao referir o governo dos comissários do povo cita sempre Lenin-Trotsky. Para esse grave erro contribuiu o fato de ter mantido desde a sua chegada contatos preferenciais com Trotsky.
Sadoul desejava, no cumprimento da sua missão, que a Rússia bolchevique prosseguisse a guerra contra a Alemanha e a Áustria e manteve durante muitos meses a ilusão de que era possível a colaboração militar entre os Aliados – França, Inglaterra e Estados Unidos – com a república soviética.
Não escondeu o seu desejo de que fracassassem as negociações para uma paz separada com a Alemanha. A sua simpatia por Trotsky impediu-o inclusive de se aperceber de que no final das jornadas de Brest Litowsk ele recusou assinar o Tratado de Paz, assumindo uma posição incompatível com a de Lenin, o que lhe valeu aliás a renúncia ao cargo de comissário para as Relações Exteriores.
A ADESÃO AO COMUNISMO
Foi gradual, mas lenta a evolução do pensamento político de Jacques Sadoul.
No início, o seu idealismo filosófico – para ele, o americano Wilson foi um grande presidente com vocação socialista – dificultou a compreensão da estratégia de Lenin. Ingênuo, admitiu que os primeiros desembarques dos ingleses em Murmansk, no Ártico, tinham por objetivo criar uma nova frente de combate contra os alemães. Foi o bombardeamento britânico de Arkangelsk que lhe abriu os olhos para a evidência. Reconheceu então que a intervenção militar das potências da Entente na Rússia fora concebida no âmbito de uma política de hostilidade à revolução soviética.
Em janeiro de 1918, apos a dissolução da Assembleia Constituinte, dominada pelos partidos da burguesia, Sadoul, que na práxis da Revolução, trocara o idealismo pelo materialismo histórico, escreveu numa das suas cartas: “o sistema soviético parece infinitamente superior ao sistema parlamentar que conhecemos”. E acrescentou: “O sistema soviético é mais verdadeiro, mais profundamente popular, mais apto para satisfazer as aspirações das massas, mais vivo e mais flexível”.
Em janeiro de 1919, gravemente doente em Moscou, numa carta a Longuet, diretor do Populaire, desabafou: “este ódio implacável contra a revolução russa é uma vergonha para a França supostamente republicana e democrática que renega assim todo o seu passado”.
Pretendia regressar a França se a Justiça anulasse um processo instaurado contra ele pelos antigos colegas da Missão Militar. Mas o julgamento foi adiante. O Tribunal condenou-o à morte por «traição».
Forçado pelas circunstâncias a permanecer na União Soviética, colaborou intimamente com o PCUS. Desempenhou funções de inspetor no Exercito Soviético e trabalhou durante três anos no executivo da III Internacional. O governo soviético condecorou-o com a Ordem da Bandeira Vermelha.
Quando o julgamento que o condenara foi anulado, regressou a França e inscreveu-se no PCF. Foi correspondente do Izvestia, de Moscou, e colaborador de LHumanité.
Ao falecer aos 77 anos, no Var, Provença, não participava há muito de qualquer atividade política.
*Jacques Sadoul, Cartas desde la Revolución Bolchevique, 500 páginas, Turner Publicaciones, Madrid, octubre de2016
Vila Nova de Gaia, 16 Maio de 2017
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