“Israel deve decidir se quer ser uma democracia ou Estado de apartheid”
Filho de dois judeus alemães que fugiram da perseguição nazista nos anos 30, Ilan Pappé trabalha na Universidade britânica de Exeter desde que os insultos, as ameaças e sua adesão ao boicote acadêmico à Israel o levaram a deixar sua Haifa natal em 2007.
Desde a publicação de antigos documentos oficiais israelenses e britânicos, no início dos anos 80, o historiador Ilan Pappé se dedica a reescrever a história de Israel. Uma nova e incômoda versão em que os supostos heróis, cujas estátuas adornam as ruas do país, resultam ser criminosos. Por trás de livros tão polêmicos, como Historia de la Palestina moderna o La limpieza étnica de Palestina [História da Palestina moderna ou A limpeza étnica da Palestina], Pappé foca agora sua atenção nos cidadãos palestinos com nacionalidade israelense, que, segundo reza o título de seu novo livro, são Los palestinos olvidados [Os palestinos esquecidos].
Sua atenção está centrada nos palestinos dos territórios ocupados. Quem são esses ‘palestinos israelenses’ e o que é necessário saber sobre eles para entender o conflito?
São os palestinos que foram autorizados a permanecerem em Israel, aqueles que não foram expulsos depois da catástrofe de 1948. Então, eram 150.000. Agora são mais de um milhão. São importantes por muitas razões, sobretudo por serem palestinos que vivem em 80% da Antiga Palestina e conhecem os israelenses muito bem, posto que vivem com eles há mais de 60 anos e estão familiarizados com as duas comunidades. O processo de paz e as conversações sobre o futuro tendem a excluí-los, porém enquanto não se tem em conta seu destino, não existe solução. A maneira com que estes palestinos são tratados é o teste mais importante para a democracia israelense e, lamentavelmente, este exame está suspenso.
Estes ‘palestinos israelenses’ viveram uma história melhor do que aqueles que vivem nos territórios ocupados?
Até 1966, os palestinos israelenses viveram sob um regime militar brutal, logo que foi transferido à Cisjordânia e Gaza, em 1967. A partir de então, os palestinos israelenses tem se saído melhor, porém são duramente discriminados em comparação com os cidadãos judeus de Israel.
Em seus livros anteriores foram utilizadas antigas evidências: documentos do Exército britânico, o diário do primeiro presidente de Israel, David Ben Gurión… Em quais documentos o senhor se apóia desta vez?
Usei dois tipos de documentação. Por um lado, os arquivos oficiais israelenses para o período entre 1948 e 1967, e as publicações oficiais e da imprensa israelense para a história posterior a 1967. Por outro lado, entrevistas e material privado que alguns dos mais importantes ativistas da comunidade colecionaram ao longo dos anos.
Em seu discurso junto ao Congresso norte-americano, o primeiro ministro israelense, Benjamin Netanyahu, disse que Israel é o único país do Oriente Médio onde os árabes podem desfrutar da democracia. É assim?
Como muitas outras coisas em seus discursos, este ponto foi uma magna mentira. O tratamento dos palestinos em Israel e, em particular, as políticas contra eles, desde que Netanyahu chegou ao poder, questionam seriamente a afirmação israelense de que o país é uma democracia. A sociedade judia em seu conjunto é racista em sua atitude com relação aos cidadãos palestinos, os quais observam que grandes aspectos de suas vidas são segregados em uma sociedade de apartheid.
Netanyahu exige que o presidente palestino, Mahmud Abbas, reconheça Israel como um estado judeu para voltar às negociações. Qual seria o papel dos palestinos nesta suposta ‘democracia judia’?
Num estado judeu como o entendido por Netanyahu, os palestinos permaneceriam como cidadãos de segunda, discriminados em todos os aspectos de sua vida e sob o risco constante de limpeza étnica.
Israel reconhece sua própria história?
Israel nega sua história e chama historiadores, como eu, de mentirosos. Sem nenhuma prova, é claro.
Que consequências têm essa postura?
A consequência é que Israel continuará acreditando que o mundo está contra ela, devido ao anti-semitismo. Na verdade, é um reflexo às próprias políticas adotadas. Essa é a razão de seu crescente isolamento na comunidade internacional.
O senhor aprova o boicote à Israel. O que pensou quando viu que era aprovada a Lei Anti-boicote na Knesset?
Creio que a Lei Anti-boicote demonstrou o sucesso da campanha Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS). Também fez com que muita gente da esquerda israelense passasse a defender o boicote. É uma prova da validade e utilidade desta campanha, mas ainda é necessário convencermos os políticos ocidentais para unirem-se a nós.
Em qual capítulo da história israelense nos encontramos?
Num capítulo muito crucial, em que Israel deve tomar uma decisão final sobre se quer ser uma democracia ou um estado de apartheid. Não existem mais opções.
A esquerda israelense vem perdendo grande poder e influência desde o estabelecimento do estado. Por que isto está ocorrendo?
Porque a esquerda israelense sempre foi sionista, e o principal problema em Israel e neste conflito é o sionismo. Se esta questão permanece como marco mental dessa esquerda, ela passa a ter muito pouco a oferecer que seja diferente das ideias do centro ou da direita.
O senhor apóia a solução de um só estado e o direito de retorno dos refugiados palestinos. Quão realista e viável é pensar que palestinos e israelenses possam viver juntos num estado depois do obscuro e triste passado que descobrimos em seus livros?
Já estamos vivendo num só estado. Será muito difícil mudar o regime atual e criar uma democracia em que todos sejamos iguais. Custará muito tempo, porém acredito que é o único caminho adiante. A história nos serve como professora. Olhe o mundo árabe. Às vezes, os eventos menos esperados aceleram o processo pelo qual uma situação injusta se converte em justa.
O senhor vê, no espectro político israelense atual, alguém que possa mudar a situação e fazer história?
Não. Porém não acredito que serão os políticos que vão resgatar, mas a sociedade civil. Sem líderes, porém unida. Os políticos serão os que organizam nossas vidas depois de uma revolução, mas nunca farão com que isso aconteça.
Tradução: Maria Fernanda M. Scelza