A militarização das cidades é o expediente do capitalismo contemporâneo

A militarização das cidades é o expediente do capitalismo contemporâneopor Thiago Sardinha Santos*

A militarização das cidades no mundo todo é o novo território dos conflitos e tensões sociais armadas, alguns chamam de guerra, mas é bem mais complicado que isso. O fato é que a crença de que o exército serviria apenas para defender as fronteiras do território nacional já não é suficiente para explicar sua existência. Atualmente, as cidades do mundo inteiro vêm sendo o principal lócus de atuação das Forças de Segurança e Forças Armadas e, sobretudo, dos conflitos armados.

Impressiona o quão tenebroso é esse fenômeno, pois na lógica das Forças Armadas instaladas em fronteiras, o inimigo sempre será o invasor estrangeiro que quer tomar o território. Tal fato explica em muito a formação dos estados-nação europeus. Agora, o inimigo precisa ser reconfigurado a partir das preocupações que se voltam para o interior do território numa escala geográfica bem mais detalhada. Desta forma, é necessário nomear quem são os inimigos do Estado, do projeto social em vigor, que ameaçam seu bom, impositivo e consensual funcionamento: os pobres da cidade!

No mundo todo, forjaram-se as classes perigosas para que o Estado, com todo seu aparato repressivo e ideológico, justifique suas atrocidades. Assim, a guerra entra nessa esteira por necessidade do cumprimento heroico da derrota de outrem. “Estamos em guerra, tudo é permitido para derrotá-lo”, portanto, não é mais espantoso ver as Forças Armadas realizarem o policiamento. O que devemos notar é contra quem o discurso oficial justifica seu uso – é política oficial dos Estados treinarem seus militares para atuarem em periferias e favelas das cidades, e esse paradigma partiu do Pentágono, segundo Stephen Graham, autor do livro “Cidades Sitiadas”.

Nos EUA e Europa, a militarização é muito mais implacável com os imigrantes de países periféricos e os pretos e pobres. Basta um olhar sobre as leis de alguns países da União Europeia em relação aos imigrantes muçulmanos. Nos EUA, os latinos e negros são os que mais sofrem com a militarização.

No caso da cidade do Rio de Janeiro, nota-se ainda em vigor o projeto de cidade muito discutido há alguns anos em razão dos megaeventos, que serviu de atenuante da militarização, mas que parece ter perdido um pouco o fôlego no momento. Um projeto de cidade excludente, violento e provedor de lucros para os empresários mais orgânicos. O esmorecimento desse debate pode ser explicado pelas denúncias de corrupção envolvendo verbas públicas utilizadas nas obras dos megaeventos, fato que expôs governadores e empresários desse ciclo de acumulação. Porém, como o sistema é impiedoso, ele se reorganiza para continuar sua permanente acumulação de capital, por isso, novos atores entram em cena para tomar à frente deste novo ciclo.

No final de 2017, sob a iniciativa da Rede Globo, foi organizado um seminário chamado “Reage Rio”. Tratava-se de uma tentativa de fazer com que novos empresários e investidores retomassem a confiança para investir na cidade maravilhosa. Neste encontro, o foco do programa para os próximos anos foi o turismo, ou seja, a cidade negócio. A cidade empresa continua a respirar mesmo após sofrer um duro golpe. O grande destaque desse encontro foi o empresário Roberto Medina (presidente do Rock in Rio), “cara nova” do novo ciclo (lembram da ascensão de Eike Batista?). O novo empresário, representante dos velhos interesses, assumiu a vontade de “mudar o Rio”. Após o seminário e antes do encerramento do Rock in Rio, Roberto Medina, acompanhado de outros empresários e mais representantes do Estado anunciaram em um palco do Rock in Rio o resultado deste seminário e o projeto econômico e cultural que será implementado no Rio de Janeiro. Também estavam presentes: o governador Pezão, político que investirá dinheiro público neste projeto (foram 200 milhões de reais), o prefeito Marcelo Crivella, para garantir que a prefeitura apoiará totalmente a iniciativa; o General Sérgio Etchegoyen, ministro de gabinete de segurança institucional e o Ministro-Chefe da Secretaria Geral da Presidência da República, Moreira Franco.

Uma das condições para que os empresários pudessem fazer o Rio “reagir” foi a questão da segurança, por isso a presença do general e dos demais. De que maneira será assegurada a paz para os investidores? Com militarização através das Forças Armadas. Segundo os empresários, o Rio de Janeiro precisa fomentar eventos que atraiam turistas para que a “cidade arrecade bilhões”, como foi com o Rock in Rio. Assim, logo lançaram sua maravilhosa ideia: mais 94 eventos em 2018. Como assegurar a paz? Forças Armadas, forças de segurança, operações em favelas e extermínio dos pobres! Essa é a perspectiva para a cidade-negócio a curto prazo, portanto, não é espantoso (mas revoltante) que tenhamos mais noticiários espetaculares da atuação da militarização da cidade por muito tempo.

Também no final de 2017, em setembro, as Forças de Segurança (polícias Civil e Militar) e as Forças Armadas (Exército e Marinha) ocuparam mais uma favela na cidade do Rio Janeiro: Rocinha, quase um mês depois da ostensiva “Operação Vingança” em que estas mesmas forças de controle do Estado ocuparam as favelas do Jacarezinho, Manguinhos, Mandela, Complexão do Alemão, Bandeira 2 e Parque Arará por 11 dias. Foram mais de 8 mil agentes para compor uma operação de guerra contras os pobres por causa da morte de um policial civil. Mantém-se sempre o mesmo modus operandi, pois uma operação dessa musculatura precisa contar com um aparato policial oriundo de outras esferas que juntos convergem para o mesmo fim: criminalizar e exterminar os pobres da cidade.

O roteiro é o mesmo: o sensacionalismo midiático, forçando um aspecto cinematográfico da atuação policial. Ao mesmo tempo em que, à fórceps, tenta convencer a sociedade em geral de que ela precisa da polícia e das forças armadas, os representantes da institucionalidade burguesa e, portanto, da ordem, afirmam que a operação é um sucesso; “especialistas” comentam por qual razão tudo isso ocorre, etc. Tudo isso não é novidade, desculpem-me pela frieza da afirmação, mas isso é a norma burguesa! Ora, muito nos espanta quando ocorre algum atentado em outro país e a primeira expressão que nos vem à mente é: “Isso é barbárie!” De fato, a sociedade produtora de mercadorias cada vez mais nos leva a passos largos para a barbárie, contudo, quando falamos de países da periferia do capitalismo isso se torna exponencial e dramático. Portanto, mesmo com tamanha dramaticidade, penúria e revolta, isto é o que a estrutura social desigual produzida pelo capital nos impõe.

À primeira vista, imediatamente vem como causa desse processo (que já não explica tudo, mas que é parte de um todo) a guerra às drogas. Claro, ela ainda está no expediente das operações policiais, porém, o processo de militarização se complexificou de uns anos pra cá, principalmente pelos potenciais horrores provocados pela crise estrutural do capitalismo. Percebe-se que essas operações fazem sentido quando a superprodução da força de trabalho não encontra o caminho do encarceramento em massa, que já alcança níveis estratosféricos, de controle através das tecnologias de uso militar e da segurança privada. Somam-se a isso carros blindados, condomínios altamente seguros, câmeras de segurança, etc., e o controle militarizado rigoroso e ostensivo. Quando tais mecanismos são insuficientes, entra na ordem do dia o extermínio dessa massa sobrante de força de trabalho que não serve para o capital. Olhando atentamente, compreende-se a justificativa de tantas operações das Forças Armadas e das Forças de Segurança do Estado e sua forma social burguesa. Nesse sentido, o horror histérico aos pobres pretos e favelados da cidade ganha pratica aterrorizante, ódio e a funesta associação entre o crime e o pobre.

A operação de guerra na Rocinha é visivelmente a expressão do que acabamos de afirmar, porém, acompanhada politicamente da declaração do General Mourão, afirmando numa palestra em uma loja maçônica a possibilidade de um governo militar assim como foi a ditadura que teve início em 1964. A declaração do general, que recebeu bastante repercussão, não foi um lapso emocional, mas corresponde a uma divisão interna dentro do próprio Exército desde as manifestações de 2013, que cada vez mais ganha eco. Isso demonstra como o Exército está preparado para assumir, caso a burguesia precise de sua força para manter sua governabilidade. Nesta nova utilização das Forças Armadas em 2018, o comandante-geral do Exército, o general Eduardo Villas Bôas afirmou, receoso, precisar do respaldo do governo para que não houvesse uma “nova Comissão da Verdade”. Esta, durante sua duração, apurou e denunciou violações de direitos humanos durante a ditadura militar no Brasil. Trocando em miúdos, a preocupação do general consiste em ter a garantia da “carta branca” para matar durante esta intervenção. Na verdade, o general precisa saber que isso já acontece! As Forças de Segurança já mencionadas no Rio de janeiro possuem há anos o respaldo jurídico e legal para exterminar os indesejáveis.

É importante notar como, cada vez mais, operações das Forças Armadas vêm diminuindo seu intervalo (nos últimos 10 anos foram 12 operações realizadas) e sempre o alvo são as favelas cariocas. As operações para garantir a Rio Eco-9 foram deflagradas no dia 30 de maio de 1992, pelo Comando Militar do Leste, para garantir a segurança de chefes de Estado estrangeiros e dos participantes da Rio-92. Até o dia 15 de junho, cerca de 15 mil homens armados com fuzis, metralhadoras, granadas e bombas de gás lacrimogêneo policiaram as ruas da cidade com radiotransmissores, carros blindados e até tanques; as operações Rio I e II, entre 1994 e 1995, tiveram o objetivo de prevenir e reprimir o varejo do tráfico para, assim, retomar a sensação de segurança. “O Exército empregou nas favelas cariocas a tática conhecida no jargão militar como a do martelo e da bigorna, que consistem em cercar o inimigo com tropas e pressioná-lo com a ação de grupos de elite da corporação, além do trabalho da inteligência militar, que seleciona os alvos preferenciais,13 favelas foram ocupadas” (Jornal o Globo, 15/05/2006). Em outubro de 1994, foi anunciada a Operação Rio I: dois mil militares do Exército, da Marinha e da Aeronáutica participaram da atuação militar nos morros do Dendê e da Mangueira, feita na base de prisões sem flagrante e sem mandados. Naquele ano já se falava que o comando militar tinha um mapeamento dos morros e planos para usar as tropas no combate ao crime organizado. A Operação Rio II contou com o apoio das polícias Federal e Rodoviária: ao todo 20 mil homens foram mobilizados para atuar em todo o Estado. Durante a Cimeira – encontro de cúpula que reuniu chefes de Estado e de governo de 49 países em junho de 1999 – soldados do Exército também ocuparam pontos estratégicos da cidade. Eles trabalharam em apoio aos policiais, num esquema de segurança que mobilizou, ao todo, 8 mil agentes. De lá pra cá, foram mais 4 operações entre 1997 e 2007. Depois disso as operações se concentraram nas instalações das UPPs e para a realização da Copa do Mundo e Olimpíadas -nestas últimas foram utilizados mais de 22 mil agentes das Forças Armadas e mais um centro de controle da prefeitura instalado pela IBM.

Em novembro de 2010, a mais emblemática foi a ocupação do morro do Alemão que durou dois anos. A “retomada” do Complexo do Alemão foi uma das maiores ofensivas contra o varejo do tráfico de drogas no Rio de Janeiro e contou com uma tropa de 2,7 mil homens, sendo 1,2 mil policiais militares, 400 policiais civis, 300 policiais federais e oitocentos militares do Exército. Nesse sentido, ficam claros os diferentes recursos que o capital utiliza para perpetuar seu funcionamento e administrar sua crise. Seja através da DEMOCRACIA ou da DITADURA MILITAR. Aliás, para os favelados e pobres da cidade do Rio de Janeiro nunca de fato houve democracia política e material. Cabe também destacar a ocupação pelas Forças de Segurança Armadas, por 15 meses, na favela da Maré, Zona Norte do Rio, em que se fizeram presentes repressão e controle militarizado da vida social dos seus moradores.

Agora, no início de 2018 , convocada na surdina pelo presidente golpista, mais uma vez as Forças Armadas voltam às ruas (quando saíram delas?). Desta vez, a atual operação no Estado do Rio de Janeiro, batizada de “O Rio Quer Segurança e Paz”, mobilizou 8.500 militares das Forças Armadas, 620 da Força Nacional e 1.120 da Polícia Rodoviária Federal. Esta operação “está amparada pelo decreto publicado no Diário Oficial da União, em edição extra do dia 28 de julho, que evoca a Lei Complementar (LC) n. 97/1099. Esta, em seu artigo 15, § 2º, estipula que “a atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da Constituição Federal”, como bem afirma Thiago Rodrigues, professor da UFF.

Thiago também aponta como mecanismos legais serviram de instrumento para garantir a utilização das Forças Armadas como polícia: “Através da LC n. 97, de 1999, editada no governo FHC, sendo completada e detalhada pela LC n. 136, de agosto de 2010, assinada por Lula e que serviu de base para que, em novembro daquele ano, o então governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral Filho, requisitasse a intervenção de tropas federais para conter a ação de grupos narcotraficantes na capital. Foi com base nessa LC que se iniciou a Operação Arcanjo, missão que deu vez à mais prolongada ocupação militar urbana da história brasileira: a presença das chamadas Forças de Pacificação do Exército nos Complexos da Penha e do Alemão, entre dezembro de 2010 e julho de 2012”.

Outro dado desta recente atuação das Forças Armadas, no contexto desta intervenção, consiste na “carta branca” para os mandados coletivos nas favelas, algo recorrente e de praxe das Forças de Segurança. Desde a década de 1990 as favelas sofrem com este tipo de atuação policial, uma vez que operação policial significa confronto direto. Com isso, podemos deduzir o que virá como perspectiva desta horrenda trama social, e algumas reflexões são importantes neste momento. As operações das Forças Armadas não podem mais ser consideradas exceção e sim como regra da ordem social estabelecida. Mesmo com tanta mobilização dessas forças não houve o mínimo sequer de redução da violência porque o papel destas operações é produzir mais violência e controle sobre os pobres. Militarização e interesse econômico caminham juntos sob a égide neoliberal, esta equação exclui a possibilidade de uma discussão mais séria e profunda acerca da violência urbana, da política de drogas e, sobretudo, de uma saída para esta situação com a participação popular. Resta-nos saber o que nós, enquanto resistência popular, estamos refletindo sobre essas questões daqui pra frente para além da forçada centralidade nas eleições.

*Militante do PCB no Rio de Janeiro