Mercantilização da violência e sofrimento familiar

imagemCharge: Mauro Iasi

Daniel Buarque[1]

Samara Marino[2]

O tema do acesso às armas de fogo acaba sendo colocado goela abaixo por uma tragédia familiar. Os indícios são de acidente, mas a morte de uma prima de 14 anos mobilizou a preocupação de um dos autores sobre o assunto e como ela está sendo tratada de maneira geral. Houve uma grande consternação e preocupação no acolhimento familiar, mas também o susto em saber sobre as relações tão próximas a armas de fogo. Ao mesmo tempo, a exposição da menina e da família em programas policialescos locais, regionais e nacionais evidenciaram que as notícias têm posição política, lado e pretensão, mesmo que as pessoas entrevistadas não percebam. Observam-se no processo inteiro deturpações, omissões, violação de direitos e principalmente a defesa do grande empresariado local.

Todos nós aprendemos a gostar de filmes de ação em que mocinhos e bandidos se enfrentam das mais variadas maneiras, com superpoderes, armas, guerras territoriais, mundiais, planetárias. A violência se apresenta como correta quando assistimos estes filmes, afinal o bem e o mal estão lutando entre si e sempre cabe aos mocinhos seguir as regras, se dedicar completamente para que o bem vença. O último período brasileiro juntou a dicotomia bem x mal com bolsonaristas x petistas. Se você acha que LGBTs têm direitos, você é contra a família. Se você acredita que se deve aprender sobre sexualidade na escola, você é contra a moral cristã. Se você é contra a política de armamento da população, você é contra a propriedade privada. Tudo muito raso, superficial, cujo objetivo alcançado é esconder a luta de classes, dividir a população como torcidas de futebol rivais e fortalecer as classes burguesas e seus interesses.

Fomos educados a ver o mundo numa dicotomia em que seres humanos se dividem entre cumpridores das leis e descumpridores das leis. Mas que leis são essas? São aquelas que se modificam de acordo com os interesses das grandes corporações e seus lucros. Uma das maiores financiadores da candidatura Bolsonaro, em 2018, foi a indústria armamentista nacional. Esta característica demonstra por que o presidente editou cerca de 10 decretos para tornar mais flexíveis as exigências para a posse e o porte de armas. Além disso, conseguiu modificar leis mais gerais, ainda com Sérgio Moro à frente do Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Desde o início de seu governo, Bolsonaro vem tomando medidas para facilitar a compra e o porte de armas. São decretos, portarias e um projeto de lei que está em tramitação no Congresso. Uma portaria, publicada há pouco tempo, aumentou o limite para compras de munição para quem tem arma registrada e um decreto concedeu a colecionadores acesso a armas de maior potencial de fogo, por exemplo, um fuzil semiautomático que antes não era permitido. Para este governo fascista, o cidadão de bem tem o direito de defender seus interesses através da violência armada. São cerca de 140 mil novas armas para aqueles que podem pagar, somente no primeiro semestre de 2020[3]. Os valores necessários para a documentação de posse e porte de armas legalmente são entre R$2 mil e R$5 mil reais por arma e munição. O grupo de pessoas mais contemplado pelas modificações nessas leis e novos decretos são os colecionadores, atiradores esportivos e caçadores, chamados como CACs. Sua autorização é concedida pelo Exército e não entra nos dados da Polícia Federal.

Juntamente com o aumento da venda de armas de fogo, aumentou também a violência letal, mesmo em tempos de isolamento social. De acordo com o Monitor da Violência, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em parceria com o Núcleo de Estudos da Violência da USP, houve um aumento de 7% nos homicídios até maio deste ano. Esta pesquisa utiliza dados das Secretarias de Segurança Estaduais e do Distrito Federal e tem abrangência nacional. “As mortes violentas passaram de 18.120 para 19.382 no período de janeiro a maio. Chama a atenção o fato de que este aumento das mortes em 2020 ocorreu após queda histórica dos homicídios em 2019 (o menor número registrado desde 2007, quando o fórum começou a coletar os dados), que chegou a ser comemorada pelo então ministro da Justiça Sérgio Moro”[4].

Todos esses dados só corroboram que o armamento da população brasileira, na verdade, tem características específicas de classe. Enquanto a classe média alta se arma, defendendo os interesses da indústria armamentista, a violência nas periferias aumenta, numa dinâmica de guerra às drogas, onde a violência burguesa se manifesta tanto na repressão direta do Estado quanto nas ações do narcotráfico. A presença do Estado na violência do narcotráfico ocorre tanto de modo indireto, em situações de “co-gestão”[5] da violência ou de forma direta na crescente atuação das milícias. A conexão entre a violência estatal e paraestatal se manifesta, por exemplo, na própria fonte de armamento de grupos criminosos, dado que de 30% a 40% das armas apreendidas em operações policiais teriam sido compradas originalmente por meios legais. O Estado brasileiro ativamente cria condições, tanto “jurídicas” como concretas, para a distribuição de armamentos em condições que não só propagam por si a violência contra a classe trabalhadora como também ajudam a criar um cenário de “legitimidade” para contínuas intervenções policiais cada vez mais militarizadas.

O aumento da violência nas periferias é consequência das políticas implementadas pelo Governo Federal, que se preocupa mais com o lucro do que com as vidas da população. É fruto de décadas de políticas repressivas que têm sido implantadas contra a população, com discursos de que seriam em seu próprio benefício, da criação das UPPs, da Lei de Drogas de 2006 que cria os fundamentos jurídicos para uma política contínua de violência nas periferias mascaradas com a “Guerra às drogas”. Políticas de morte que vêm ganhando grandes complementos nos últimos anos de governo. Ao longo dos mais de 4 meses de pandemia no Brasil, o descaso com os que mais necessitam é flagrante: dificuldades de acesso ao auxílio emergencial, retirada de direitos trabalhistas, Saúde Pública em colapso, falta de acesso ao ensino remoto, entre outros. Enquanto isso, ideologicamente toda a população ainda se coloca numa luta insana. Trabalhadores e trabalhadoras sofrendo a violência cotidiana de se arriscar ao contágio da COVID-19, vivendo lado a lado com uma classe média que defende governos fascistóides, com desejos ditatoriais.

Aqui não se trata de defender uma posição pacifista ou de uma rejeição abstrata às armas de fogo. Não cabe a um militante comunista o fetiche pela violência, não há de se haver nenhum apreço pela morte e ao mesmo tempo é necessário estar ciente da atualidade e centralidade de debates sobre a autodefesa da classe trabalhadora[6]. Contudo, muito se enganam aqueles que colocam esperanças em algo de positivo sendo conquistado para a classe trabalhadora a partir da flexibilização legal em torno de armamentos que o atual governo promove.

A expansão do acesso a armas[7] promovida pelo governo é não só uma política irrefreada de morte, mas também dá passos largos no sentido da expansão de redes paraestatais de violência que atendem às grandes demandas do capital. A expansão do acesso a armas promovido nos moldes do Governo Bolsonaro vai ao encontro dos setores ruralistas que estão há décadas na vanguarda da violência contra povos indígenas e trabalhadores sem terra, dentre tantos outros setores reacionários como as próprias milícias. Um exemplo cabal da conexão entre a desregulação promovida pelo governo com esses setores está no fim do rastreamento de munições[8], medida que permitia a identificação de munições utilizadas em crimes. Decisão que ativamente acoberta as milícias cariocas e que poderia dificultar investigações sobre lotes de munições que são desviados de agências do Estado e acabam “caindo” nas mãos de integrantes de tais organizações[9].

Uma das grandes consequências de conceder fácil acesso a armas legalmente é a disseminação da violência direta. Assassinatos e ameaças a pessoas comuns porque elas não cumpriram o que o “cidadão de bem” acha correto. A luta do bem contra o mal em que fomos educados chegou no nosso cotidiano através da lei de Talião: olho por olho, dente por dente. Caberia questionar até que ponto caminha a hipocrisia dos pretensos “cidadão de bem” que fantasiam estar armados para individualmente “combater o crime e a opressão”, estariam eles dispostos a se solidarizar com um jovem negro preso ilegalmente pelo porte de pinho sol em uma manifestação, caso ele apontasse uma arma para os agentes do Estado que forjaram um flagrante? A retórica do cidadão de bem sobre como “o bandido bom é o bandido de morto” seria colocada em favor da presença de atiradores de elite nos aeroportos brasileiros, com a singela tarefa de matar pessoas que sonegam tributos?[10] Imagina-se que não. Vê-se então que as medidas do atual governo e o crescente discurso em prol do armamento dos “cidadãos de bem” caminham em uma contínua naturalização da mais brutal violência burguesa. Ao mesmo tempo, observa-se também que grandes empresas de comunicação estão em plena campanha contra as facilidades da posse e porte de armas. O que isso quer dizer?

Mais uma vez estamos sendo pautados na luta interna das classes burguesas brasileiras. Mesmo a classe média, que acredita pensar por si mesma, está agora debatendo quem deve ser melhor beneficiado pelo Governo Bolsonaro, a indústria das armas, o agronegócio, os grandes comércios, etc. Parece estranho colocar todos estes segmentos no mesmo patamar, porém, ao acompanhar os grandes noticiários e as ações nos três poderes, observa-se que os interesses de todos dependem de avanços e recuos de Guedes, Bolsonaro e companhia. Os temas semanais mudam como se fossem cortina de fumaça para esconder a expansão de uma política permanente de promoção da morte.

Referências

ALESSI, Gil. Registro de novas armas no Brasil explode em 2020 em meio à alta de homicídios. El País. 27.07.2020. Disponível em http://twixar.me/9DFm. Acesso em 30/07/2020.

BRIDI, Sonia. A posse de armas no Brasil. Programa Fantástico. 19.07.2020. Disponível em http://twixar.me/hDFm. Acesso em 21/07/2020.

COLETTA, Ricardo Della. Bolsonaro revoga portarias de rastreamento e identificação de armas. Folha de São Paulo: 17/04/2020. Disponível em http://twixar.me/nJLm. Acesso em 05/08/2020.

Jornal Nacional. Em seis meses, número de armas novas se aproxima do total dos 12 meses de 2019. 13/07/2020. Disponível em http://twixar.me/WDFm. Acesso em 25/07/2020.

LEITÃO, Matheus. Munição usada para matar Marielle era de lote da PF; Fachin rejeita levar HC de Lula a plenário. Portal G1: 17/03/2018. Disponível em http://twixar.me/DJLm. Acesso em 02/08/2020.

RESENDE Leandro. MAZZEI Maria, CNN Rio de Janeiro: 22/07/2020. Disponível em http://twixar.me/mJLm. Acesso em 25/07/2020.

[1] Estudante de direito, militante da UJC

[2] Educadora, militante do PCB.

[3] BRIDI, Sonia. A posse de armas no Brasil. Programa Fantástico. 19.07.2020. Disponível em http://twixar.me/hDFm. Acesso em 21/07/2020.

[4] ALESSI, Gil. Registro de novas armas no Brasil explode em 2020 em meio à alta de homicídios. El País. 27.07.2020. Disponível em http://twixar.me/9DFm. Acesso em 30/07/2020.

[5] Na própria “cegueira” das agências de vigilância que permite que fuzis de assalto sejam transportados do exterior para espaços profundamente precarizados.

[6] Tal qual as tentativas de golpe na Venezuela e Bolívia, com resultados marcadamente distintos, ajudam a entender.

[7] Que vale fazer a ressalva, é um acesso que só ganha apoio e respaldo jurídico quando direcionado para camadas com poder aquisitivo relativamente alto dentre a população brasileira.

[8] COLETTA, Ricardo Della. Bolsonaro revoga portarias de rastreamento e identificação de armas. Folha de São Paulo: 17/04/2020. Disponível em http://twixar.me/nJLm. Acesso em 05/08/2020.

[9] RESENDE Leandro. MAZZEI Maria, CNN Rio de Janeiro: 22/07/2020. Disponível em http://twixar.me/mJLm. Acesso em 25/07/2020. LEITÃO, Matheus. Munição usada para matar Marielle era de lote da PF; Fachin rejeita levar HC de Lula a plenário. Jornais de sábado (17). Portal G1: 17/03/2018. Disponível em http://twixar.me/DJLm. Acesso em 02/08/2020.

[10] Afinal, se alguém afirma que um sujeito que furta de outro indivíduo “merece” a morte, imagina-se que sua sanha punitivista seria ainda mais incontida contra um sujeito que, ao sonegar, comete um crime contra toda a população.