Escutemos Marielle
por Marielle Franco
Executada há duas semanas, um texto atualíssimo de sua autoria debate os desafios que o golpe lança às esquerdas. Que sentidos políticos — e psicanalíticos — sua vida evoca?
Por Marielle Franco, com introdução de Daniel Guimarães
Ainda sinto um baque e uma tristeza ao pensar em Marielle, mesmo após duas semanas de sua execução. Escuto com frequência os efeitos desse assassinato nas falas das e dos pacientes que recebo na Clínica Pública de Psicanálise, mas também no consultório não-público. Marielle se fez presente para sempre e sinto saudade do futuro quando penso nela. Saudade das lembranças que temos do futuro, formulação do histórico babalaô Agenor Miranda Rocha sobre o desejo. Marielle seria cada vez mais, no nosso jargão esquisito de esquerda, um grande quadro. Um perigo mesmo, para as forças conservadoras e para o mercado que dirige o Estado brasileiro.
Desde então, uma série de disputas narrativas entraram de canela para controlar os destinos do grande afeto social que reverberou a partir de Marielle. A direita mais inteligente e com um projeto de sociedade lançou mão de táticas semelhantes às de junho de 2013. Esvaziar o conteúdo da luta de Marielle, ao ponto de instrumentalizá-la a favor do que Marielle era contra, a favor das forças que anteciparam os gatilhos da arma que a matou. Entre o amplo campo da esquerda uma série de vetores também entrou em ação para reivindicar a legitimidade de definir os motivos pelos quais ela teve sua vida interrompida e reputação atacada.
Pensamos então em postar na página da Clínica Pública de Psicanálise vídeos e textos com falas dela. Ela falando sobre si, sobre o que fazia, sobre o que pensava. Atribuir a ela sua própria fala, nesse momento que, por muitos motivos, tendemos a manter apenas sua imagem e falar por sobre ela, em nome dela. Uma parte significativa dessas falas vêm do artigo “A emergência da vida para superar o anestesiamento social frente à retirada de direitos: o momento pós-golpe pelo olhar de uma feminista, negra e favelada”, do livro Tem saída? Ensaios críticos sobre o Brasil, da editora Zouk, agora publicado aqui no Outras Palavras.
Assim, talvez, tenhamos ainda em Marielle uma grande aliada a elucidar sua execução, fruto da autorização para violência contra os pobres, cada vez mais acentuada. Mais: quem sabe, encontremos interpretações que podem nos fazer seguir adiante, com ela, num caminho que, se não sintetizar todas as lutas de esquerda que ela encarnava, ao menos pode contribuir para que as ponha em diálogo. Muito longe de tornar Marielle uma mártir, podemos perpetuar o processo de luta no qual ela estava inserida. Podemos elaborar politicamente e psiquicamente um luto que permanece luta. Podemos ter medo. O medo, dizia Freud, é um momento no qual já temos um objeto com o qual identificamos o perigo. O risco que corríamos estaria perto da inibição melancólica. Parece que isso não aconteceu. Muito pelo contrário.
Marielle era em seu corpo e história síntese de muitas lutas. Por isso fez acender, dentro do próprio campo amplo de esquerda, muitas disputas sobre o corpo dela mesma. Disputas sobre os direitos de herança de sua luta. Confesso não me preocupar com isso. Me parece um bom sinal. Um bom primeiro sinal, ao menos. Sinal de que, através do corpo de Marielle, muitas comunidades de pessoas podem se manifestar abertamente. Exigir não só visibilidade, mas protagonismo. Atrevo a arriscar que desse processo sairão mais organizações com pautas comuns do que divergentes. O debate sobre as partes excluídas pelo capitalismo pode fazer com que elas voltem a se reencontrar. Marielle proporciona isso. Ela é uma espiral dialética contínua e cheia de potência. Executaram um quadro do futuro. Anteciparam o futuro. Marielle produziria muita força social transformadora. Por isso seguirá produzindo força social transformadora. A mulher negra, favelada, pobre, que ocupava a rua e a instituição; que fazia discurso para multidões, em palanques, e participava de rodas pequenas de conversa; que chamava o golpe de golpe, lutando contra ele pela via do Estado, enquanto apostava nas já atuantes redes de solidariedade de mulheres na periferia, para as quais demandava atenção da esquerda… Escutemos Marielle.
Seus amores e pessoas próximas merecem todo nosso cuidado, cuidando de Marielle. Cuidando dos nossos passos nessa conjuntura desfavorável. Utilizando toda nossa estratégia, toda força a favor do mundo que Marielle desejava, para que sua gente pudesse circular sem riscos e mais, pudesse expressar seu desejo de viver. Como cantaram na Maré em um ato em sua memória e pela continuidade daquela luta “se a cidade fosse nossa, Marielle tava viva.”
Quais as formas de encurtar o caminho para que a cidade seja nossa? Quais as ciladas que podem nos afastar dela? Como seria nossa cidade? Seguimos, com Marielle. (Daniel Guimarães)
https://outraspalavras.net/