‘Ditadura é ferida que não cicatriza’
No dia 31 de março, o Brasil revisita um capítulo sangrento de sua história: o golpe de Estado de 1964. Ele depôs o presidente João Goulart e inaugurou nossa mais recente ditadura civil-militar, deixando um saldo de censura, tortura e morte.
A intervenção militar era defendida como uma solução moderada em tempos de guerra fria e foi advogada por setores da elite econômica e da imprensa. Eles acreditavam que as Forças Armadas poderiam ajudar em uma transição democrática e que novas eleições poderiam ser realizadas em pouco tempo. O golpe que surgiu como uma solução temporária, entretanto, abriu uma ditadura que só acabou em 1985 — quando o país voltou a ter um presidente civil (José Sarney, após a morte de Tancredo Neves), ainda que eleito de forma indireta.
A Sputnik Brasil entrevistou o advogado e capitão reformado Carlos Roberto Pittoli. Militar e de esquerda durante o regime militar, ele faz parte de um setor das Forças Armadas que foi preso e torturado pelos seus próprios companheiros de farda.
Natural de Avaí, interior de São Paulo, Pittoli entrou no Exército Brasileiro como soldado em 1965 e diz que o clima entre os militares logo após a tomada do poder era de “silêncio”. Integrante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), ele chegou a planejar o resgate de militantes de esquerda presos na 2ª Companhia de Polícia do Exército, local onde servia em Osasco.
A missão, todavia, precisou ser abortada após o capitão Carlos Lamarca, também da VPR, roubar rifles e munições do próprio Exército e entrar para a clandestinidade. A repercussão da ação colocou os militares em estado de alerta.
Ainda assim, Pittoli foi preso porque outro militante contou sob tortura sobre sua participação na resistência à ditadura. Pittoli então foi alvo de espancamentos, choques elétricos e teve cigarros apagados em seu corpo.
“A tortura é medonha. A gente sabe, os companheiros que foram torturados na nossa frente. Filhos sendo torturados para o pai falar. Você fica em maus lençóis.”
Mesmo torturado, Pittoli não entregou seus companheiros.
Em quase três anos de detenção, ele chegou a ficar preso por 10 meses em uma solitária no 6º Grupo de Artilharia de Costa, na Praia Grande, e depois foi levado para o Presídio Tiradentes e o Carandiru.
“Fui levado a auditorias diversas vezes e montavam processos que você tem que assinar. Se não assinar, é torturado. Você passa por uma situação difícil e constrangedora.”
Ao fim do trâmite judicial, Pittoli foi absolvido e afirma: “Você sabe o que é sua família te procurar e não saber se você está vivo? Mesmo que eu tivesse cometido algum crime horrível, não justificaria em nenhum lugar do mundo judiar de meu pai e minha mãe, pessoas semi-alfabetizadas, e da minha esposa, meu irmão”.
O ex-militar diz que é preciso combater a noção de que o golpe “organizou o país” e foi um período livre de corrupção, citando o caso Coroa-Brastel e escândalos na construção da ponte Rio-Niterói e a Ferrovia do Aço. Para Pittoli, a ditadura é uma ferida que não passa:
“Não cicatriza. Você tem uma casca seca por cima, mas tem um pus debaixo dessa casca. Por que? O que é esse pus? É muita coisa que passa pelo atual Judiciário, é não julgar, não prender quem cometeu crime de lesa humanidade reconhecido pela ONU. Os militares torturadores do Brasil não foram punidos, o pessoal do DOPS em todos os Estados, ninguém foi punido.”
Segundo a Comissão Nacional da Verdade, a ditadura militar foi responsável por 434 mortes e desaparecimentos. Os corpos de 210 destas vítimas nunca foram encontrados.
Ao contrário de países vizinhos como Argentina, Uruguai e Chile, os militares brasileiros nunca foram levados à Justiça.
Ilustração: SPUTNIK NEWS
https://br.sputniknews.com/brasil/2018033110863298-ditadura-tortura-1964-golpe-militar/