Economista haitiano: “Temos que romper com o sistema que oferece respostas militares a crises políticas e sociais”
O economista e ativista haitiano Camille Chalmers afirmou, na mesa de debate da Cátedra de los Libertadores realizada na última terça -feira, em Buenos Aires, que o Haiti deve aprender com o recente processo latino-americano e que os países da América Latina têm muito o que aprender com o Caribe: “Chegou o momento do reencontro entre o Haiti e os povos da América Latina”. Discurso completo:
Falar das relações entre o Haiti e o continente latino-americano é sumamente importante hoje, quando refletimos sobre a necessidade de construir outro mundo e outras relações entre os povos.
A história entre o Haiti e a América Latina é uma história de encontros, de desencontros e de reencontros. Para entender o lugar especial que o Haiti ocupa na história do mundo, não podemos deixar de falar da grande revolução anti-escravista de 1804, que representou uma ruptura radical em relação à ordem da época.
A primeira revolução contra a escravidão ocorreu em 1793, no Haiti, e ainda existiu até 1865 nos Estados Unidos e até 1885 no Brasil. E hoje em dia, ainda há relações de produção muito parecidas à escravidão. Então é importante observar o caráter anti-sistêmico, o caráter de ruptura radical desta revolução, que foi vista pelos impérios da época como um perigo, como uma ameaça.
Isso faz lembrar da frase que existe na resolução do Conselho da ONU para criar a Minustah em junho de 2004, que diz que o Haiti é um perigo para a segurança hemisférica. Há uma continuidade histórica da rejeição em aceitar o conteúdo revolucionário deste processo escravista de 1804 e da ideologia dominante que se difunde sobre o Haiti com estereótipos e com uma construção ideológica que apresenta o Haiti como um país muito violento, etc.
Claro que a resposta dos impérios à revolução anti-escravista haitiana foi brutal, foi uma resposta com múltiplas estratégias: negação, silêncio – um “não aconteceu nada aí”, as enciclopédias falam da abolição da escravidão na França e na Inglaterra, mas não no Haiti – e houve um isolamento do país que continua tendo efeitos.
Muitos de nós na América Latina não sabemos nem sequer que existe um país chamado Haiti no Caribe ou não conhecemos a história do Haiti, e isso é resultado de um silenciamento, de um isolamento que foi um elemento muito importante na resposta dos impérios.
Mas a resposta se tornou mais agressiva, mais destrutiva com alguns elementos, como por exemplo a imposição da chamada dívida da independência, quando exigiriam ao Haiti o pagamento de 150 milhões de francos, o que representava o orçamento total da França nesta época. Uma coisa totalmente descomunal, que o Haiti pagou durante mais de um século e que foi comprada pelas bancas norte-americanas na época em que definiram o Caribe como seu pátio traseiro.
Então a reinserção do Haiti no cenário mundial – e para negar o conteúdo revolucionário do processo anti-escravista – foi feita através da violência e da violência da dívida, como elemento central da reinserção do país na economia mundial. A dívida foi utilizada, por exemplo, pela França, para abaratar os preços do café exportado pelo Haiti, liquidando a principal riqueza que tínhamos.
Quando se lê que o Haiti é um “Estado falido”, o que também é uma construção ideológica, esta expressão não é casual. Quando a Minustah se instala no Haiti em 2004, ao mesmo tempo se cria em Washington um escritório especializado em “Estados falidos”, pelo governo Bush. Existia uma lista de 25 países considerados “Estados falidos”, entre eles a Bolívia, e foi criada uma equipe multidisciplinar para intervir e democratizar estes Estados. Então é importante esta desconstrução ideológica, que impede ver a realidade dos povos e a construção de uma nação solidária entre os povos.
Além deste isolamento, desta agressão econômica através a dívida, a agressão civil, com a ocupação militar de 1915 e a longa história de saques dos recursos estratégicos do país. Lembremos de 1915, justo antes da ocupação militar, o exército dos EUA entra e rouba as reservas do banco central, que foram levados a Washington, onde permanecem até hoje.
Então desde 1915 há um processo de recolonização do território haitiano que nega o conteúdo revolucionário da ruptura de 1804.
É muito importante entender estas fontes históricas para lembrar, por exemplo, quando falam que a economia está destruída, que durante os anos 80 o FMI e o Banco Mundial impuseram ao Haiti políticas de ajuste que tiveram como efeito a destruição de grande parte da capacidade produtiva do país.
Para dar um exemplo, em 1972, o Haiti tinha uma auto-suficiência alimentar de 98%. Atualmente, estamos importando 82% do arroz consumido anualmente, de mercados dos EUA, o que cria uma dependência alimentar muito grave.
Hoje em dia o que está em jogo é sair desta longa história de saques e como colaborar com o povo do Haiti em sua luta para se liberar da dominação imperialista, para construir um projeto de futuro e realmente entrar em uma atualização do sonho dos libertadores de 1804. É interessante ressaltar também alguns elementos do conteúdo desta revolução e insistir no fato de que esta tinha uma clara consciência internacionalista.
Os fundadores da nação ajudaram muito Miranda e Bolívar, como sabemos, e também tinham uma clara consciência da necessidade de continuidade da luta do povo Haiti e da luta indígena. O próprio Dessalines recupera e batiza o país com o nome indígena e chama seu exército de “Os Incas”.
Acho isso muito importante, é um país onde todos os taínos e os aruaques tinham sido massacrados, e ele recupera esta memória, sinalizando que a possibilidade de criar uma nova nação passa por esta continuidade histórica entre as lutas. Essa problemática é muito atual hoje em dia.
A presença da Minustah no Haiti tem que ser interpretada dentro do contexto geopolítico global. Não podemos esquecer que há todo um processo de militarização imperial na costa do Caribe que se caracteriza, por exemplo, com novas bases militares no Panamá, em Honduras, em Curaçao, e que há um contexto de despertar dos povos que estão buscando sua soberania e independência.
O experimento da Minustah é muito perigoso, parece um laboratório de novas formas de ocupação militar sob um contexto de solidariedade Sul-Sul. A Minustah não é solidariedade Sul-Sul, porque sua agenda está totalmente inserta na agenda de dominação do imperialismo e isso pode ser comprovado com o que fizeram nos últimos 7 anos no país, apoiando, por exemplo, a vontade dos EUA de fazer do Haiti uma base de serviço de transnacionais através da exportação de têxteis e de máquinas.
É um projeto agressivo, totalmente contra os interesses estratégicos do Haiti e se manipula esta imagem criada desde o século XIX, para apresentar o Haiti como um país diferente, quando todas as estatísticas mostram que o nível de violência que existe em Porto Príncipe é atualmente muito menor dos de Santo Domingo, Trinidad e Tobago ou Rio de Janeiro.
Então é muito importante refletir sobre a realidade e porque há presença militar. Todas as forças progressistas do continente têm que trabalhar juntas para romper este silêncio, que está muito relacionado com a natureza da revolução haitiana que foi dupla: não somente cortou os laços com as metrópoles européias, mas também foi a tentativa de fazer uma revolução social com o fim dos escravos.
Foi uma tentativa de universalizar os Direitos Humanos, porque na revolução francesa eram direitos para alguns humanos. E a revolução haitiana disse “todo homem é homem”. E é exatamente a mesma problemática que se apresenta hoje, quando lutamos contra a globalização neoliberal. É necessário universalizar os Direitos Humanos.
Por isso as forças democráticas do Haiti estão pedindo a retirada das tropas da Minustah, que é uma resposta inadequada à crise que estamos vivendo. Inclusive ilegal, porque utiliza o capítulo 7 da Carta Magna das Nações Unidas, que diz que se dispõem forças quando há guerras civis, crimes contra a humanidade ou genocídio. Estas três figuras nunca existiram no Haiti, então há uma manipulação bruta, grosseira do texto da ONU para justificar a presença militar.
É importante também observar que quem solicitou essas forças foi um governo de facto, instalado depois do golpe de Estado de 2004 contra Aristide, um governo que não tinha nenhuma legitimidade. Quando vemos os objetivos da Minustah descritos nas resoluções do Conselho de Segurança, como por exemplo estabelecer o clima de segurança, respeito aos Direitos Humanos, e eleições democráticas podemos dizer que isso fracassou completamente.
A segurança não melhorou, porque sabemos que isso está diretamente relacionado ao tráfico de drogas, com o trânsito da cocaína no território do Haiti, que inclusive aumentou entre 2004 e 2011. E as últimas eleições democráticas foram as menos democráticas do ciclo eleitoral desde 90, e houve uma participação muito débil, menos de 17% da população e com muitas fraudes.
A Minustah cai em violações sistemáticas aos Direitos Humanos e vira uma força de violação direta dos direitos dos haitianos quando, por exemplo, ocupa o campus universitário de Tabarre durante 3 anos, tirando os estudante que não podiam ir à universidade, e há muitos depoimentos de violações sistemáticas de mulheres e crianças, totalmente impunes.
Por isso no Haiti há agora um processo de mobilização contra a Minustah, muitas manifestações. Nesta semana, o senado da República votou por unanimidade o pedido de retirada da Minustah.
Podemos dizer que essa presença hoje não é somente nefasta, mas entra dentro de um processo de recolonização, com a presença também de outras instituições como a CIDH, dirigida por Bill Clinton, que substituiu as instituições haitianas, monopolizando os espaços de distribuição estratégica, como o que chegou de ajuda depois do terremoto, o que é totalmente inaceitável.
Para nós é fundamental a retirada das tropas e o reconhecimento de que é um fracasso total e, ao mesmo tempo, ter a capacidade de inventar verdadeiras e autênticas formas de solidariedade direta de povo a povo. A presença dos povos latino-americanos, dos processos de luta de emancipação que está acontecendo na América Latina é fundamental para o Haiti.
É importante romper o silêncio, criar espaços de diálogo, com o qual o Haiti pode aprender muito com o que está acontecendo na América Latina e a América Latina pode aprender muito com o que está acontecendo no Caribe. O Caribe mostrou a possibilidade de romper com o sistema global e precisamos desta audácia para romper com a dominação do sistema capitalista, que está em crise, que está matando, que está destruindo, que se torna cada vez mais violenta e que oferece respostas militares a crises políticas e sociais.
Chegou o momento do reencontro entre o Haiti e os povos da América Latina.