Não podemos ceder ao possível

A ditadura resultante do golpe de 1964 segue sendo o grande trauma do povo brasileiro. Enfrentar a verdade é nosso desafio histórico

A “política como a arte do Possível” é o fundamento que justifica toda a lógica dos que recusam uma luta quando a correlação de forças se mostra desfavorável.

Para os que apostam em transformações sociais profundas, a política deve ser a arte de “tornar possível o que se aparenta impossível”.

Realmente existem correlações de forças que aparentam impossíveis de serem confrontadas. E muitas vezes, a habilidade de um lutador do povo reside justamente em reconhecê-las. Saber recuar, quando isso implica em preservar forças. Porém, a lógica da política como “arte do possível” encerra uma grande armadilha.

O debate retoma com o episódio da Comissão da Verdade. As intensas pressões das forças conservadoras incidiram no Congresso Nacional para descaracterizar o projeto do governo. E não poderíamos esperar nada diferente.

É certo que mesmo o projeto original continha sérios limites. Mas, em geral, na prática fica para a Presidência da República definir seu prazo de abrangência, prazo de duração, escolha dos membros e definição do orçamento.

Mas um ponto é especialmente grave: o dispositivo que nega peremptoriamente que os dados, informações e documentos sigilosos que chegarem ao conhecimento da comissão não poderão ser levados ao conhecimento de terceiros, ficando os integrantes da comissão responsáveis pela guarda do sigilo.

Este é um ponto inaceitável. O parágrafo 2°, do artigo 4º que dispõe que “os dados, documentos e informações sigilosos fornecidos à Comissão Nacional da Verdade não poderão ser divulgados ou disponibilizados a terceiros, cabendo a seus membros resguardar seu sigilo”, deve ser totalmente suprimido pela necessidade de amplo conhecimento pela sociedade dos fatos que motivaram as graves violações dos direitos humanos.

Da supressão desse dispositivo depende, também, que a Comissão Nacional da Verdade possa contribuir para a produção da Justiça. Afinal, se esses dados sigilosos não puderem ser conhecidos por terceiros, não poderão ser conhecidos pelo Ministério Público, o que garantirá de antemão a impunidade dos responsáveis por sequestros e desaparecimentos, ocultação de cadáveres e supressão de documentos.

Não são pontos secundários de que possamos abrir mão para não enfrentar as forças reacionárias. Uma Comissão Nacional da Verdade que não é obrigada a revelar a verdade perde seu sentido.

Isso significa que não estaremos construindo uma memória da sociedade, mas da Comissão. Significa que essas informações não poderão constar do relatório; que não poderão chegar ao conhecimento do Ministério Público. Significa que a impunidade estará protegida. É a descaracterização do significado principal de uma Comissão da Verdade.

E não podemos nos contentar com tais limites com o argumento de que essa é a Comissão da Verdade possível na atual correlação de forças. É possível pressionar e lutar. E a luta está em curso. Diversos setores populares reforçam o abaixo assinado exigindo mudanças no Projeto de Lei n. 88/2011 no Senado, para que a Comissão da Verdade apure os crimes da Ditadura com autonomia e sem sigilo.

Como diz o texto do abaixo assinado: “presidenta Dilma Rousseff poderá passar à história como aquela que ousou dar início a uma investigação profunda dos crimes da Ditadura Militar, como subsídio para a punição dos agentes militares e civis que praticaram torturas e assassinatos e promoveram o terrorismo de Estado, bem como sustentáculo indispensável da construção da memória, verdade e justiça em nosso país”.

Mas sem pressão, contentando-se, desde já, com os limites do projeto apresentado pelo governo, sofreremos ainda mais recuos, embalados sempre pelo argumento de que é melhor aceitar para não perder ainda mais.

Da mesma forma, devemos seguir lutando para que se cumpra integralmente a sentença da Organização dos Estados Americanos – OEA, no caso da Guerrilha do Araguaia.

A ditadura resultante do golpe de 1964 segue sendo o grande trauma do povo brasileiro. Enfrentar a verdade é nosso desafio histórico. Não podemos nos contentar com o possível. O verdadeiramente possível se constrói na luta pelo necessário.

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