Israel prefere os terroristas ao Irã
Batalha de Manbij
[Sharmine Narwani, Tradução da Vila Vudu] À primeira vista, tudo parece calmo nessa cidade [Daraa] do sul da Síria, onde aconteceram os primeiros protestos há sete anos. Moradores circulam pelas lojas, nos preparativos para o jantar de Iftar, quando interrompem o jejum diário durante o mês santo de Ramadan.
Mas, mesmo assim, a tensão é palpável nessa cidade hoje sob controle do governo. Há poucas semanas, as conversações de paz organizadas pela Rússia no sul da Síria foram rompidas, quando militantes sustentados pelo ocidente rejeitaram qualquer paz negociada.
Venha a acontecer batalha total no sul ou não, visitas na semana passada a três províncias do sul da Síria, Daraa, Quneitra e Suweida, revelam uma surpreendente possibilidade: a franquia síria da al-Qaeda – a Frente Nusra – parece estar entrincheirada profundamente entre os militantes sustentados pelos EUA, em cidades e vilarejos chaves estratégicos espalhados por todo o sul.
A imprensa e os think tanks norte-americanos encobrem esse fato, referindo-se sempre a todos os combatentes da oposição como “rebeldes” ou “moderados.” Os mapas deles só mostram três cores: vermelho para o Exército Árabe Sírio (EAS) e aliados, verde para forças de oposição e preto para o ISIS.
Mas… onde está a Frente Nusra, que especialistas ocidentais consideram há muito tempo uma das forças mais potentes que combate conte ao Exército Árabe Sírio? Terão sido simplesmente – e convenientemente – apagadas do mapa de batalhas na Síria?
Contatos com especialistas militares sírios, analistas e combatentes da oposição durante minha viagem revelaram que a Frente Nusra está bem viva e ativa nos campos de batalha do sul. O mapa abaixo identifica claramente áreas que Nusra controla no sul, mas há muitas outras áreas que não aparecem nesse mapa, nas quais a Frente Nusra está presente e divide o poder com outros grupos militantes.
Apesar de EUA e ONU designarem a Frente Nusra como organização terrorista, o grupo está combatendo abertamente ao lado da “Frente Sul,” grupo que reúne 54 milícias de oposição ao governo sírio criado e comandado por uma ‘sala de guerra’ liderada pelos EUA sediada em Aman, Jordânia, chamada Centro de Operações Militares [ing. Military Operations Center (MOC)].
Não é fácil obter informação sobre esse MOC, mas fontes dentro da Síria – de combatentes de oposição e de militares sírios (atuais e aposentados) de alta patente – sugerem que o centro de comando reúna Grã-Bretanha, França, Jordânia, Israel e alguns Estados do Golfo.
Dizem que o MOC fornece dinheiro, armas, salários, inteligência e treinamento para as 54 milícias, muitas das quais não passam de cerca de apenas 200 milicianos, divididos por sua vez em grupos menores, alguns com não mais de poucas dúzias de milicianos.
O general Ahmad al-Issa do Exército Árabe Sírio, comandante da linha de frente em Daraa, diz que o MOC é uma operação liderada pelos EUA que controla os movimentos dos “terroristas” da Frente Sul e é fortemente influenciada pelos objetivos estratégicos de Israel no sul da Síria – um dos quais é tomar o controle sobre suas áreas de fronteira, para criar uma zona tampão (“buffer”) dentro de territórios sírios.
Como soube disso? Issa diz que sua informação é resultado de um cruzamento de várias fontes, incluindo militantes reconciliados/capturados e inteligência do próprio MOC. O general cita o próprio manual do MOC distribuído aos militantes como exemplo do centralismo dos israelenses: “Número 1, jamais ameaçar ou abordar qualquer fronteira israelense de modo algum. Número 2, proteger as fronteiras com o Golan [ocupado por Israel], para que ninguém consiga entrar em Israel.”
Para ilustrar o controle que o MOC exerce sobre os militantes no sul, Issa cita ainda outras regras do Manual: “Número 3, jamais empreender qualquer ação militar sem antes obter autorização do MOC. Número 4, se o MOC ordena que os grupos ataquem ou suspendam o ataque, a ordem deve ser cumprida imediatamente.”
O que acontece se as regras são desobedecidas? “Os salários são cortados,” diz Issa.
Os grupos de oposição armada apoiados pelo MOC são afiliados principalmente ao Exército Sírio Livre (ESL), ele próprio grupo sem definição precisa, que pode ser usado em diferentes formações para diferentes finalidades, formado de militantes que já trocaram de nome e filiação com frequência durante o conflito na Síria.
Ao longo da guerra, o ESL combateu ao lado da Frente Nusra e do ISIS – muitos até se alistaram nesses grupos. Hoje, apesar dos esforços para sanear o ESL e o Front Sul apresentando-os como facções “não sectárias” e não extremistas, como o Exército Yarmouk, a Brigada Mu’tazz Billah, a Divisão Salah al-Din, a Brigada Fajr al-Islam, a Brigada Fallujah al-Houran, o grupamento Bunyan al-Marsous, a Brigada Saifollah al-Masloul e outras estão realmente ocupando áreas chaves em Daraa, associadas com a Frente Nusra.
Nada disso é novidade para os deputados e senadores norte-americanos. Mesmo antes de o MOC ser criado, em fevereiro de 2014, militantes da Frente Nusra participavam com destaque de manobras militares vitais para o ESL. Como explica um ativista da oposição em Daraa: “O ESL e a Frente Nusra unem-se para operações, mas há um acordo entre eles, para deixar o ESL liderar para efeito externo, porque não querem assustar a Jordânia ou o ocidente (…). O ESL apresenta como se fossem suas, operações que foram executadas de fato pela Frente Nusra.”
Há esforços em todos os níveis, até nos mais altos, para esconder a profundidade da cooperação que liga a Frente Nusra e o ESL. Um comandante do ESL em Daraa diz: “A Frente Nusra toma parte em muitos combates, mas nada informamos sobre isso à sala de operações (MOC).”
É altamente duvidoso que os militares norte-americanos não saibam desses movimentos. Os norte-americanos trabalham em ambiente de “não pergunte, não conte” no que tenha a ver com a cooperação entre ESL e Frente Nusra. Em 2015, em conversa comigo, o porta-voz do CENTCOM tenente comandante Kyle Raines fugiu a uma pergunta sobre por que armas que o Pentágono vetava para combatentes estavam aparecendo em mãos da Frente Nusra. Disse ele: “Não temos ‘comando e controle’ sobre essas forças – só os ‘treinamos e capacitamos’. Com quem digam que se aliaram é problema deles.”
Na prática, os EUA não dão sinais de se incomodar com a aliança com a Frente Nusra – apesar de o grupo ser classificado como organização terrorista – contanto que o serviço seja feito.
Já há vários anos se veem armas norte-americanas em mãos da Frente Nusra, inclusive os caros mísseis TOW, armas poderosas que alteraram o rumo dos combates no teatro militar sírio. Quando se fala de armas norte-americanas encontradas em mãos da al-Qaeda no primeiro ou segundo ano de um conflito, assume-se que seja erro de informação. Mas, quando o problema persiste depois de sete anos, já começa a parecer que esteja em ação uma política para induzir todos a olhar para outro lado.
Também não é difícil compreender por que mapas norte-americanos ignoram claramente as provas de que há elementos da Frente Nusra ativos nas milícias sustentadas pelos EUA. O grupo, aliás, é mantido fora de acordos de cessar-fogo, apresentado como alvo a ser buscado sempre por ataques militares.
Em dezembro de 2015, a Resolução n. 2.254 do Conselho de Segurança da ONU conclamava os “Estados Membros a impedir e suprimir atos terroristas cometidos especificamente pelo Estado Islâmico no Iraque e Levante (ISIL, também conhecido como Da’ech), a Frente Nusra [ing. Al-Nusra Front (ANF)], e todos os demais indivíduos, grupos, subunidades e entidades associadas com Al Qaeda ou ISIL, e outros grupos terroristas, como determinado pelo Conselho de Segurança” (itálicos meus). Além disso, a Resolução também esclarece que “não se aplicam acordos de cessar-fogo nas ações ofensivas ou defensivas contra esses indivíduos, grupos, subunidades e entidades.”
Essencialmente, significa que o Exército Árabe Sírio e aliados podem atacar quaisquer áreas no sul da Síria onde os milicianos da Frente Nusra – e “entidades associadas” a eles mantêm bases. Com efeito, a lei internacional permite assalto militar sírio contra milícias apoiadas pelos EUA que ocupem os mesmos espaços que a Frente Nusra, e reduz a capacidade para tomar medidas de retaliação, de patrocinadores estrangeiros dessas milícias.
Por isso, a Frente Nusra não aparece nos mapas norte-americanos.
Em entrevista semana passada, o presidente Bashar al-Assad da Síria culpou a “interferência de Israel e dos norte-americanos” pela interrupção dos esforços de reconciliação no sul. O presidente sírio disse que aquela interferência “pressiona os terroristas naquela área, para que trabalhem contra qualquer compromisso ou resolução pacífica.”
Hoje, na fronteira de Israel e Síria, há grande número de acampamentos da Frente Nusra e do ISIS, que Israel claramente prefere ao Exército Árabe Sírio e seus aliados iranianos e Hezbollah. O Wall Street Journal até noticiou ano passado que Israel, pela fronteira, estava secretamente pagando salário, alimento, combustível e munição a militantes.
No início de junho, dois islamistas, ex-membros do ESL (um dos quais também miliciano da Frente Nusra) em Beit Jinn – área estratégica na fronteira de Síria, Líbano e Israel – disse-me que Israel teria garantido salários àquelas milícias durante um ano antes de o acordo de reconciliação ser firmado com o governo sírio. “Todos os meses Israel nos manda $200 mil para continuarmos lutando,” disse um deles. “Nossos líderes seguem os países de fora. Éramos sustentados pelo MOC, continuaram a nos sustentar até o último momento,” disse ele.
Mais cedo naquele dia, na vila de Hadar no Golan sírio, membros da comunidade drusa descreveram um ataque sangrento da Frente Nusra em novembro, que deixou 17 mortos: “Todos aqui viram como Israel ajudou os terroristas da Frente Nusra naquele dia. Deram cobertura de artilharia das colinas, para ajudar a Frente Nusra a tomar Hadar. No fim dos combates, Israel leva os terroristas feridos para atendimento médico,” diz Marwan Tawil, professor de inglês em Hadar.
“A linha de cessar-fogo (fronteira sírio-israelense) está a 65 km, entre onde estamos e a Jordânia, é só essa área é controlada pelo Exército Árabe Sírio,” explica o prefeito de Hadar. “60 quilômetros estão com Nusra e Israel, e os outros cinco estão com o Exército Árabe Sírio.”
Israel está tão pesadamente empenhada em manter a Síria e aliados longe de suas fronteiras, que promoveu ativamente al-Qaeda e outros extremistas no teatro ao sul da Síria. Como explicou o ministro da Defesa de Israel Moshe Ya’alon, em frase que ganhou fama em 2016, “Na Síria, se a escolha é entre Irã e o Estado Islâmico, eu escolho o Estado Islâmico.” Para justificar as intervenções na batalha que está por vir, EUA e Israel dizem que as forças do Irã e do Hezbollah estão presentes no sul, embora não se veja sinal disso em campo, em Daraa e Quneitra.
Múltiplas fontes confirmam isso em Daraa, e insistem que só há uns poucos conselheiros – não soldados – do Hezbollah, em todo o governorado.
Assim sendo, por que o alarde? “É esforço de diplomacia pública para fazer crer que o ocidente teria expulsado do sul, o Irã e o Hezbollah,” explica o general Issa.
EUA, Israel e seus aliados não têm meios para vencer essa luta no sul. Podem apenas prolongar a insegurança por mais algum tempo, antes de o Exército Árabe Sírio decidir lançar uma ação militar contra as mais de 54 milícias da Frente Nusra que ocupam o sul da Síria. O resultado provavelmente será um acordo negociado temperado com umas poucas “batalhas leves” para expulsar os militantes mais linha-dura.
Como me diz um soldado do Exército Árabe Sírio em Daraa: “54 facções numa área pequena mostra fraqueza, não força.” E a cooperação com a Frente Nusra só torna ainda maiores os alvos pintados nelas.
Fonte: The American Conservative
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