‘Temos ódio e nojo à ditadura’: os 30 anos do discurso que promulgou a Constituição
Paula Adamo Idoeta – @paulaidoeta
Da BBC News Brasil em São Paulo
“Hoje, 5 de outubro de 1988, no que tange à Constituição, a nação mudou”, dizia sob aplausos Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte, em uma sessão solene e histórica do Congresso quando se promulgou a Carta que rege o Brasil atualmente.
O discurso de Ulysses passaria a ser considerado um dos mais marcantes da história recente brasileira, com uma forte defesa da Constituição que acabava de nascer e um forte rechaço da ditadura da qual o país se despedia.
“A ideia era de que se inaugurava uma nova época do Brasil, deixando o velho para trás. Era um momento de muita expectativa, sobretudo popular – as propostas da população à Assembleia Constituinte haviam chegado às milhares”, explica Francisco Carlos Teixeira da Silva, professor de História da UFRJ e que foi próximo de Ulysses Guimarães, a quem ajudou na redação de um dos artigos constitucionais.
“Foi sem dúvida um discurso histórico, embora Ulysses não tenha elaborado uma visão crítica adequada da Constituição”, agrega o historiador Daniel Aarão Reis, autor de diversos livros sobre história recente do país.
A BBC News Brasil analisa alguns dos pontos mais importantes do discurso, seu contexto histórico e a relação com o conturbado momento político atual do país.
‘Traidor da Constituição é traidor da pátria’
A partir de 15h50 daquele 5 de outubro de 1988, os brasileiros passavam a ter uma nova Constituição, com novos direitos, depois de cerca de um ano e meio de discussões sobre o texto na Assembleia Constituinte.
“Declaro promulgada. O documento da liberdade, da dignidade, da democracia, da justiça social do Brasil. Que Deus nos ajude para que isso se cumpra!”, disse Ulysses pouco antes de os constituintes – que a partir de então passariam a exercer função de congressistas – jurarem “manter, defender, cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil”.
Em seu discurso, Ulysses advertiu que a recém-promulgada Carta não era “perfeita”.
“Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca”, declarou o presidente da assembleia. “Traidor da Constituição é traidor da pátria. (…) Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações. Principalmente na América Latina.”
‘Representativo e oxigenado sopro de gente’
Ulysses prossegue elogiando a participação dos brasileiros na elaboração da Carta, citando “122 emendas populares, algumas com mais de 1 milhão de assinaturas, que foram apresentadas, publicadas, distribuídas, relatadas e votadas no longo caminho das subcomissões até a reta final”.
“Há, portanto, representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça, de favela, de fábrica, de trabalhadores, de cozinheiras, de menores carentes, de índios, de posseiros, de empresários, de estudantes, de aposentados, de servidores civis e militares, atestando a contemporaneidade e autenticidade social do texto que ora passa a vigorar.”
Para Teixeira da Silva, a esperança daquele momento estava intimamente ligada ao envolvimento da população com a formulação do texto e com as garantias de direitos que a “Constituição cidadã” passava a determinar.
“A ideia de direitos inalienáveis é muito importante na Constituição”, diz ele. “A Lei Maria da Penha, a união civil homossexual, a liberdade plena de imprensa são coisas que jamais poderiam ser pensadas na ditadura.”
Aarão Reis reitera a ideia de que “havia uma atmosfera de otimismo que permeava o país”. “Muitos chamam a década de 1980 de perdida, mas foi um período de muitas vitórias, conquista de liberdade e conquista de participação, com a própria Constituição, que nunca tínhamos tido na história republicana”, diz o historiador.