Cuba: futura constituição é fruto de trabalho coletivo
Juan Pozo Alvarez*
Diário Liberdade
O texto da nova constituição faz menção e aponta aos valores humanistas, a justiça social e o respeito pela dignidade humana que caracterizam nosso socialismo. Enfatiza-se o reconhecimento e conceito de Cuba como Estado socialista de direito.
A respeito da futura Constituição, é preciso dizer que foi construída com a contribuição consciente e o esforço coletivo de muitas pessoas. A primeira análise crítica sobre este projeto é se estamos diante de uma nova Constituição ou perante uma reforma parcial do texto de 1976 e se, portanto, não pode ser revogado em algum momento.
Aqueles que adotam essa segunda posição negam que, de acordo com a cláusula da reforma, como foi regulamentada em 2002, uma reforma total não seja possível e que isso só seria viável se o sistema revolucionário político e social cubano fossem transmutados, o que causaria uma colisão política profunda.
Da nossa consideração, a mudança operada não impede uma reforma total e isso não tem que subverter em sua totalidade a ordem política e social que a Constituição endossa. Trata-se de um novo texto, que introduz mudanças de profundidade na estrutura do Estado, em particular em seus órgãos superiores. Há uma extensão do catálogo de direitos, que a diferenciam da atual, sem perder sua natureza e essência socialista.
Outra questão levantada era que devia ser convocada uma Assembleia Constituinte. Do nosso ponto de vista, isso contradiz frontalmente a cláusula de reforma que atribui à Assembleia Nacional a faculdade constituinte. Acrescenta-se a isso que na reforma não há ruptura com o passado, mas mudanças em meio à continuidade política e social, da qual tem falado nosso atual presidente da República, companheiro Miguel Diaz-Canel.
O que defende a Constituição
É bom enfatizar algumas questões gerais que se destacam ao se estudar detidamente o projeto. Primeiramente, o caráter socialista do sistema político, econômico e social é reafirmado. Não é suficiente apenas com esse reconhecimento, mas os sinais de identidade desse conceito são visíveis, para os quais foram feitas precisões que de modo algum o desvalorizam.
O papel do Partido Comunista continua sendo o elemento governante da sociedade e do Estado, destacando seu caráter democrático e o vínculo necessário e estreito com o povo. Pretendeu-se, a partir de algumas posições divergentes, opor-se ao papel do Partido na soberania popular e às atribuições que na ordem estatal correspondem a cada um dos órgãos definidos na Constituição.
A primeira coisa a considerar é que o Partido está localizado acima da Constituição, como uma entidade política que é obrigada a respeitá-la e também é o primeiro defensor dela. Da mesma forma, em seu desempenho político-ideológico, de jeito algum deve substituir os órgãos estatais e administrativos, uma vez que estes têm poderes e competências próprias definidas pela Constituição e pelas leis.
O texto também especifica os valores humanistas, a justiça social e o respeito pela dignidade humana que caracterizam a natureza do nosso socialismo. Destaca-se o reconhecimento de Cuba como Estado socialista de direito. Esta declaração não é uma simples declaração de complacência. É a determinação e a vontade de alcançar o estado de direito e o caráter supremo da Constituição, no âmbito de um Estado socialista.
Um conteúdo que causa diferentes opiniões está relacionado à regulação do sistema econômico. Como princípio, mantém-se a propriedade socialista de todo o povo sobre os meios fundamentais de produção, os meios fundamentais e a direção planejada da economia, junto com o reconhecimento do papel do mercado. Cuba não é uma economia de mercado socialista, mas considera isso no âmbito de um sistema de planejamento, que obviamente terá maior flexibilidade daqui para a frente.
O reconhecimento, entre as diferentes formas de propriedade, da propriedade privada, tem atraído a atenção de muitas pessoas. A Constituição não cria essa propriedade, ela existe desde antes. As mudanças introduzidas no desenho econômico, derivadas dos acordos dos 6º e 7º Congressos partidários, possibilitaram a existência dessa forma de propriedade no país, que vai além do que se denominou trabalho autônomo ou independente, ao possibilitar a contratação de mão de obra.
O importante é que ela não distingue nem tem predomínio no modelo. Também é necessário em certas atividades e com os regulamentos e controle necessários. O projeto precisa a proibição da concentração de propriedade nas mãos de entes naturais ou legais não estatais, com o objetivo de preservar «os limites compatíveis com os valores socialistas de equidade e justiça social».
Resultou controversa a variação do conceito de casamento, abandonando a atual concepção de que se estabelece entre um homem e uma mulher e em seu lugar se afirma que é entre duas pessoas, o que dá lugar à possibilidade de casamento de pessoas de mesmo sexo. Decidiu-se manter essa configuração e assumir o desafio do novo conceito, sabendo que sua inclusão poderia gerar discrepâncias baseadas em razões culturais, preconceitos e visões estereotipadas que não mudam de um dia para o outro.
Se a Constituição proclama o amplo reconhecimento do direito à igualdade, por que limitar que as pessoas com diferentes orientações sexuais possam chegar ao casamento? Terá que continuar vigente este conceito ancorado em visões já superadas pelo tempo ou ser modificado e reconhecido como um direito, assim como ocorre gradualmente em nível planetário.
As posições contra este regulamento passam por aqueles que preferem manter o conceito da atual Constituição; aqueles que favorecem a redação do projeto; os que aceitam o reconhecimento civil de casais de fato e não o casamento; outros que concordam, mas limitam o direito à adoção e, finalmente, alguns que defendem o conceito de «duas ou mais pessoas». Em suma, uma diversidade de critérios que devem ser avaliados como outros, com o rigor e a profundidade necessários.
Em nossa opinião, o Direito não pode permanecer sendo um escravo perpétuo do atraso social, ainda que, em certo momento, possa colidir com parte do espectro social. Em sua missão transformadora, também cabe a ele promover o desenvolvimento. Não é a primeira vez que estamos enfrentando esses desafios. Lembre-se na história dos conflitos para reconhecer o direito de voto das mulheres, ou o estabelecimento do divórcio ou, no nosso caso, incorporar a igualdade de direitos entre homens e mulheres e a igual responsabilidade dos cônjuges, de acordo com o nosso Código da Família.
Alguns direitos econômicos e sociais, cuja garantia não pode ser oferecida imediatamente por razões econômicas que excedem a vontade do Estado e que tornariam a Constituição fictícia, são regulados com uma projeção de progressividade, o que também gera algum desentendimento. Tal é o caso do direito à moradia digna, o direito à alimentação, o direito à água, entre outros. A fórmula utilizada impõe ao Estado trabalhar para alcançar a plenitude desses direitos, mas, a nosso ver, não pode ser configurada de maneira estrita pelas limitações objetivas de sua realização.
Os órgãos locais do Poder Popular também recebem a influência das transformações do projeto. Na estrutura provincial as assembleias do Poder Popular são eliminadas e em seu lugar é constituído um Governo integrado por um Governador e um Conselho Provincial. Este, dirigido pelo primeiro, incluiria também os presidentes das assembleias municipais e os prefeitos que são encarregados da direção administrativa no município.
Essa estrutura foi considerada mais funcional e adequada às características das províncias, como entidade de coordenação territorial e com vistas a fortalecer ainda mais os municípios. Uma questão a ser analisada, com base nas propostas feitas até agora, é se o governador deve ser nomeado ou, no seu caso, eleito.
Com certeza, os municípios adquirem maior poder em seu desenvolvimento e são mais independentes. O reconhecimento de sua autonomia é para se adotar uma maior interrelação entre a comunidade e seus representantes.
Um texto que pode ser aperfeiçoado
Precisamos compreender o novo documento pelo que é: um projeto. Ainda não é o texto definitivo. É passível de ser aperfeiçoado com as opiniões do povo e as instituições sociais envolvidas no processo de consultas. Não é o trabalho de uma comissão ou de um grupo. É um trabalho coletivo e a futura Constituição é construída com a contribuição de todas as pessoas.
Sem arrogância nenhuma podemos afirmar que estamos diante de um exercício único de democracia real, participativa, efetiva e de um processo constituinte igualmente paradigmático, no qual o povo é um verdadeiro protagonista. O saldo até a data pode ser considerado muito positivo. Serviu, além de contribuir para a futura Constituição, para elevar a cultura jurídica e política do povo.
Quando o referendo for concluído, cada proposta será avaliada pelo Comitê Editorial, incluindo as dúvidas de nossos cidadãos. Nenhuma opinião será desconsiderada. Isso, é claro, não significa que cada recomendação será inscrita no texto, pois há sugestões diferentes e até mesmo contraditórias.
Depois desta tarefa complexa e árdua, a Comissão apresentará um novo projeto à Assembleia Nacional, do qual emergirá finalmente a nova Constituição da República, que será submetida ao escrutínio popular, no mês de fevereiro de 2019. Como resultado, o texto alcançado por consenso e participação popular teria um alto grau de legitimidade. Todo cubano pode sentir orgulho de sua constituição.
Proclamada a nova Magna Carta, teremos um refinamento do sistema legal do país. Não é suficiente apenas a Constituição: requer uma atualização da ordem jurídica e, para isso, de maior intensidade legislativa.
Estamos apresentando um processo com base na experiência já acumulada, através do qual o povo está contribuindo consciente e diretamente. Experiência que sem dúvida, tem um impacto real na sociedade cubana.
A fórmula é muito clara: mudanças grandes e duráveis, com soluções que possam resultar na melhor das receitas para cada área, setor e para o município. No caso do município, terá uma significativa tarefa, com prerrogativas para redistribuir os lucros obtidos em benefício de localidades menos favorecidas na ordem econômica e social e assim alcançar maior desenvolvimento balanceado.
Para concluir esse importante item da Constituição: temos que continuar trabalhando sem improvisações, sem superficialidade na análise, nem decisões deixadas à espontaneidade, para que o nosso sistema se torne sustentável e irreversível. Tudo o que possa ser aperfeiçoado hoje tem que ser feito com eficiência, com visão estratégica e objetivo definido.
Dados adicionais sobre a Constituição
Os cidadãos concordam que o Estado oriente e promova educação, ciência e cultura em todas as suas manifestações há quase seis décadas. Todas as propostas, sem exceções, serão valorizadas pela comissão parlamentar. Contextualizadas, com abundante inteligência coletiva, sem perguntas pendentes, ocorrem as reuniões sobre o novo projeto de Constituição da República de Cuba.
Todas as propostas, sem exceções, serão avaliadas pela comissão parlamentar, e um projeto novo e atualizado retornará à Assembleia Nacional, onde será discutido novamente e o texto será submetido à ratificação em referendo popular por meio do voto direto e secreto de cada cidadão.
Os debates tornam-se ação democrática, uma tribuna popular onde cada um expõe sua verdade. No entanto, embora existam artigos, como os referentes à cidadania, propriedade, casamento… que provocam muito debate, há outros, como os que emanam do Título 5º: Princípios da Política Educacional, Científica e Cultural, que também ocupam o centro da participação popular, embora com menos intervenções, já que não é segredo para ninguém que, após janeiro de 1959, não houve descanso no fomento e promoção da história da Nação e na formação de valores éticos, morais, cívicos e patrióticos junto aos cidadãos.
Não é por acaso que muitas das propostas apresentadas até agora têm a ver com o Título 5º e seus 13 parágrafos, prova de que a maioria concorda que o Estado norteie, encoraje e promova a educação, as ciências e a cultura em todas as suas manifestações por quase seis décadas.
Quando se refere ao parágrafo 271º (a educação é uma função do Estado, é secular e baseia-se nas contribuições da ciência e dos princípios e valores da nossa sociedade), argumentou-se que a educação, em primeiro lugar, é responsabilidade da família, que deve ser a primeira a desenvolver nos estudantes uma alta formação de valores éticos, morais, cívicos e patrióticos, como aparece no parágrafo seguinte, o 272º.
Sobre essa e outras questões relacionadas à criação artística, houve quem falasse de falta de conteúdo, se entendemos a arte como produto do ser humano, e é isso que realmente se encontra na autêntica decadência nos expoentes de certas manifestações, especialmente em música, onde há autores e grupos que priorizam o conteúdo banal, em benefício do lado econômico e afetando a parte social.
Da mesma forma, houve muitas intervenções nas quais se defendeu que a Constituição reafirme que a criação artística e suas formas de expressão são livres e não seja concedido apoio à censura quando se trata de bons produtos culturais. Sobre o assunto, outras considerações foram que, no documento submetido ao debate, deve-se acrescentar que a criação artística em Cuba, embora livre, respeita os valores éticos e cívicos da sociedade socialista cubana.
Da Constituição de 1976 à consulta popular
A atual Constituição, proclamada em 24 de fevereiro de 1976, vigora durante o período mais longo de validade em nossa história constitucional. Sua elaboração ficou a cargo de uma Comissão Conjunta do Partido e do Estado, aprovada por acordo do Conselho de Ministros em 22 de fevereiro de 1974.
O projeto foi submetido à consulta popular e, uma vez recolhidos os critérios do povo e consultados no 1º Congresso do Partido Comunista de Cuba, o texto foi aprovado em referendo pelo voto livre, direto e secreto da cidadania, com um nível de aprovação de 97,7% dos que exerceram o voto. É um texto que responde às circunstâncias econômicas e sociais do período da construção do socialismo, e que foi alimentado pela experiência constitucional dos países socialistas da Europa Oriental, em particular da URSS.
Esta Carta Magna estabeleceu um procedimento de reforma exclusivamente parlamentar, reconhecendo o seu alcance parcial ou total com fórmulas de voto reforçadas, bem como a intervenção obrigatória do órgão eleitoral antes da modificação de certos conteúdos e não incluía cláusulas de intangibilidade.
O texto sofreu uma reforma importante no ano de 1992, para responder às mudanças que surgiram nacional e internacionalmente, após a queda do socialismo europeu e a desintegração da URSS, e refletem os acordos adotados no 4º Congresso do Partido Comunista de Cuba sobre o aperfeiçoamento dos órgãos do Poder Popular, entre outras questões.
A magnitude das mudanças introduzidas levou à declaração de que se tratava de uma reforma total e, portanto, exigiu sua ratificação em um referendo, uma questão que não ultrapassou a fronteira da academia.
Uma reforma final foi realizada em 2002, uma iniciativa gerada pelas lideranças das organizações de massa, na qual uma mudança no mecanismo de reforma foi introduzida em particular e uma cláusula de intangibilidade foi estabelecida. A mudança em questão consistiu em eliminar a menção do alcance da reforma (não é indicado se é parcial ou total) e definiu a irrevogabilidade do sistema socialista político, social e econômico e a proibição de negociar sob agressão, ameaça ou coerção de um poder estrangeiro. Dessa forma, o caráter socialista do sistema e a impossibilidade de sua destruição foram constitucionalmente protegidos.
Após o desenvolvimento do 6º Congresso do Partido Comunista de Cuba, em abril de 2011, no qual foram introduzidas mudanças no modelo econômico cubano e na Primeira Conferência Nacional do Partido que fez precisões no trabalho da organização partidária, tornou-se evidente a necessidade de realizar uma revisão futura da Constituição.
Em maio de 2013, o Bureau Político aprovou a criação de um Grupo de Trabalho, presidido pelo companheiro Raúl Castro Ruz e composto de 12 outros companheiros, para avaliar os impactos que, na ordem constitucional, derivaram das decisões mencionadas, bem como outras mudanças necessárias no futuro e em consonância com o aperfeiçoamento institucional do país. Esse grupo preparou por um ano as bases do que seria o processo de reforma, que foi aprovado no Bureau Político, em 29 de junho de 2014.
Como parte dos estudos, foi analisado o impacto que os processos de Reforma e Renovação tiveram, respectivamente, na China e no Vietnã, países de cujas características continuam a fazer parte a construção do socialismo.
Foi necessário investigar os processos constituintes mais próximos do ambiente latino-americano, em particular, aqueles que ocorreram na Venezuela, Bolívia, Equador; dos mais significativos dentro do neoconstitucionalismo ibero-americano. Por sua vez, fez-se um amplo estudo de vários textos constitucionais e nossa história constitucional, bem como uma literatura abrangente sobre todas estas questões.
O Grupo de Trabalho realizou mais de uma centena de reuniões de análise em diferentes momentos, nas quais foram abordados os posicionamentos e foram projetadas possíveis soluções. Era necessário não apenas responder à situação econômica, mas também responder aos desafios que nossa sociedade enfrenta no futuro.
Em fevereiro deste ano, durante vários dias, o Bureau Político tomou conmhecimento dos estudos realizados e foram feitas precisões importantes. Um mês depois, o Comitê Central do Partido Comunista de Cuba ficou sabendo dos resultados e formulou diferentes recomendações. O Conselho de Estado, órgão que assume a representação permanente da Assembleia Nacional do Poder Popular, convocou uma sessão extraordinária para avaliar o início do processo de reforma, que ocorreu em 2 de junho. Nela, o Parlamento concordou em criar, dentro de seus membros, uma Comissão para preparar o projeto de Constituição.
A Comissão é presidida pelo próprio general de exército Raúl Castro Ruz e conta com 32 deputados representando diferentes setores: intelectuais, jornalistas, cientistas, historiadores, juristas, educadores e líderes políticos e organizações de massa. Inclui oito colegas do grupo que foi aprovado pelo Bureau Político em 2013. A Comissão trabalhou intensamente, tomando também como referência todo o trabalho anterior, o que contribuiu indubitavelmente para avançar na conformação do projeto.
Finalmente, a Assembleia Nacional o discutiu por dois dias (2 e 3 de julho passado) e, depois de sua análise, na qual diversas opiniões foram expressas, algumas das quais opostas, um projeto foi alcançado. Deve-se notar que os debates foram seguidos com interesse pela população através da televisão e outros meios de divulgação.
Da mesma forma, o Parlamento concordou em submeter o projeto ao povo para consulta, com vistas a enriquecê-lo com a participação direta do povo, que incluía cidadãos cubanos residentes no exterior e nossas missões diplomáticas e colaboradores que prestam serviços em outros países. Um exemplo claro de democracia participativa e efetiva que distingue o processo e o torna diferente. O povo se torna um fator constituinte.
*Primeiro Secretário da Embaixada de Cuba no Brasil.