França: entre as mandíbulas da extrema-direita
por Rémy Herrera
Rede policial de confinamento. Ao ouvir os representantes dos sindicatos de policiais quando saíam do Ministério do Interior na noite de 19 de dezembro, pareceria que “as negociações foram difíceis, muito difíceis”. Contudo, bastaram algumas horas para que eles obtivessem “os mais fortes avanços salariais” da profissão desde há cerca de 20 anos. Dois dias depois do “Ato V dos coletes amarelos”, dia 17, várias organizações sindicais da polícia nacional haviam anunciado sua intenção de efetuar uma jornada de “comissariados fechados” na quarta-feira 19 – sendo-lhes proibido o direito de greve. Christophe Castaner teve de fazer concessões: as remunerações dos policiais são aumentadas em 120 euros para os jovens em começo de carreira e 150 para os antigos; isto é mais do que conseguiram os seus colegas da função pública – ou seja, absolutamente nada (nas negociações de 20 de dezembro) – ou os coletes amarelos – quase nada (dez dias antes).
Para aqueles que não sabem quem é Christophe Castaner, recordamos que é o atual ministro do Interior do governo reconfigurado em outubro último pelo presidente da República na sequência da renúncia repentina de seu antecessor. Antes disso, ele foi sucessivamente secretário de Estado encarregado das relações com o Parlamento e porta-voz do governo de Édouard Philippe. E antes? Foi chefe do partido presidencialista, La République en marche (a partir de novembro/2017), porta-voz de Emmanuel Macron durante a sua campanha presidencial (em 2017) e… membro do Partido Socialista (a partir de 1986). E antes ainda? Na sua juventude, Christophe Castaner foi um jogador de pôquer em salas de jogos clandestinas e protegido de um dos padrinhos da máfia de Marselha, alcunhado como “Grand Blond”, chefe de um bando de assaltantes abatido com balas de 9 milímetros num acerto de contas em 2008… Basta ir à “Wikipedia”, e se necessário “Google translation”, para confirmar. Tudo isso com o único objetivo de conferir corretamente em que nível se situam hoje os nossos governantes.
É verdade que há anos que os policiais se queixam das suas más condições de trabalho e de remuneração. Sem sequer falar das 24 milhões de horas suplementares que o Estado não lhes paga, ou das despesas que a caixa de acidentes de trabalhado da Seguridade Social demora em reembolsar quando acontece serem feridos… O moinho neoliberal afeta igualmente as forças da ordem. Em múltiplas ocasiões, na televisão ou na internet, policiais anônimos têm denunciado sua exaustão, mesmo o seu mal-estar face às ordens dos seus superiores (políticos) a exigirem deles um endurecimento da repressão dirigida contra os coletes amarelos ou, anteriormente, contra estudantes mobilizados, ocupantes da ” Zones à défendre” (ZAD), militantes ecologistas ou manifestantes que contestam leis de flexibilização do mercado de trabalho. As línguas se desatam: “São nossos amigos, nossos irmãos, pais, filhos que nos mandaram reprimir”, ouve-se da boca de policiais…
O ponto de inflexão é claramente identificável: é o estado de emergência decretado em todo o território, em novembro de 2015, após os atentados terroristas que atingiram o país, os quais desencadearam uma terrível espiral repressiva. E é sob as pressões e ameaças desta extrema-direita que é o espectro político que vai da al-Qaeda até ao Daesh que [o estado de emergência] foi imposto ao povo francês. E renovado cinco vezes seguidas. Primeira mandíbula da morsa. O estado de emergência foi suspenso no final de 2017, mas o fato é que o essencial das disposições excepcionais nele previstas têm agora força de lei: buscas, prisões preventivas, perímetros de proteção, designações individuais de residência; controles fronteiriços agora são permitidos no quadro da “lei de reforço da segurança interna e da luta contra o terrorismo” de 30 de outubro de 2017. Com isso, estabelece-se um arsenal jurídico de exceção para fazer recuar as liberdades públicas na França. Até ao ponto em que hoje estão ameaçados os direitos de manifestação ou de exprimir opiniões.
Todos aqueles e aquelas que recentemente participaram em manifestações no país sabem aquilo que desde há meses as organizações de defesa dos direitos humanos e mesmo policiais denunciam: muitas das intervenções das forças da ordem são desproporcionais, excessivamente violentas. Tiros disparados de flashballs à altura de um homem, utilização frequente de granadas ensurdecedoras ou de rompimento de cerco, utilização sistemática de gás lacrimogêneo e canhões de água contra manifestantes pacíficos, prática da rede de confinamento impedindo a união com outros manifestantes, interpelações arbitrárias, confisco de material médico dos “street medics” (voluntários que seguem os protestos para cuidar dos feridos), intimidações, provocações gratuitas, por vezes insultos, manutenção de menores em custódia… Tantos fatos que chocam e inquietam os franceses. Mas de fato é precisamente isto que se procura. Para que cesse a sua revolta.
Logo nos primeiros dias da mobilização dos coletes amarelos circulava o rumor de que eram manipulados pelo Rassemblement National , que se tratava de um “golpe de força” teleguiado pelo partido da extrema-direita de Marine Le Pen – a segunda mandíbula da morsa. Esta é efetivamente a linha de argumentação do discurso do ministro do Interior. “Provas”? Algumas propostas xenófobas verificadas aqui ou ali entre os manifestantes. Entre várias centenas de milhares de coletes amarelos, seria um milagre que não se encontrasse um punhado de racistas embrutecidos. Daí a extrapolar, há um passo que é dado alegremente pelo sr. Castaner. Isto é ardiloso. Ele tenta assim 1) descredibilizar o conjunto dos coletes amarelos; 2) manter fora da rebelião atual os jovens das periferias, onde as populações saídas da imigração são importantes e 3) conferir a Emmanuel Macron uma imagem fictícia de baluarte contra o “fascismo”.
A extrema-direita até o momento fracassou em recuperar a liderança da mobilização – e isto pela razão fundamental de que o povo francês não é racista, na sua imensa maioria. Ora, o que entretanto se desenha, discretamente, é um deslizamento do poder para a extrema-direita. Sondagens indicam que mais da metade dos policiais e militares teriam simpatias ou votariam pelo Rassemblement National. A extrema-direita está no próprio cerne do aparelho repressivo do Estado. Ela se revelou igualmente há alguns dias numa carta aberta anti-imigrados assinada por um ex-ministro da Defesa e uma dúzia de oficiais superiores do exército, denunciando não só o “pacto mundial para as migrações” adotado sob a égide da ONU na cimeira de Marrakesch, como também “o Islã como ameaça para a França”…
Os cadernos de queixas dos coletes amarelos reclamam explicitamente que “os solicitantes de asilo sejam bem tratados (…) nós lhes devemos o alojamento, a segurança, a alimentação, assim como a educação para os menores”). Portanto, sejamos bem claros. Não são os coletes amarelos que são xenófobos e racistas, mas componentes cada vez mais vastos das elites francesas. As ditas elites não hesitarão nem um instante, quando chegar o pós-Macron, em confiar o poder à extrema-direita se isso se verificar necessário. Ou seja, se a sua ordem capitalista odiosamente iníqua fosse realmente ameaçada; se o povo francês, sedento de justiça, com o coração cheio de esperanças reencontradas, a gritar sua alegria por recuperar sua dignidade, reunido na revolta e consciente da sua força, chegasse a se por de pé, em se tornar mestre de um futuro coletivo solidário e progressista.
Inclinado servilmente aos pés dos milhardários, o presidente Macron optou por não responder às expectativas profundas dos franceses e mesmo por afundar cada vez mais no caminho da repressão. Esta “estratégia do apodrecimento” faz o jogo do Rassemblement National. Pois, apesar das suas diferenças teatralizadas pelos meios de comunicação – que são diferenças de grau, não de natureza –, na realidade não há descontinuidade entre a direita da alta finança, a que serve Emmanuel Macron, e a extrema-direita da burguesia reacionária de Marine Le Pen; um terrível e dramático continuum político os une para defender um capitalismo agonizante. Um afirma-se neoliberal-globalizado, o outro obscurantista-nacionalista, mas ambos se querem. Para além dos ódios pessoais recíprocos, interesses comuns de classe saberão em breve aproximá-los para que se esforcem por salvar o seu sistema. Custe o que custar. O povo deverá encontrar em si a energia para ampliar suas lutas a fim de se livrar das tenazes mortíferas que encerram as mandíbulas do monstro de duas cabeças da extrema-direita moderna: o islã político terrorista e retrógrado de um lado, o chauvinismo burguês egoísta e racista do outro. O perigo permanece.
Enquanto isso, sábado, 22 de dezembro, para o “Ato VI” de sua mobilização, os coletes amarelos testaram a eficácia dos serviços de inteligência. Supervisionados de perto pelos olhos do Ministério do Interior, suas redes sociais pediam um encontro – tão simbólico – diante dos portões do Palácio de Versalhes. O prefeito apressou-se a ordenar o seu encerramento e imediatamente enviou a CRS para guardar a área circundante e proteger as lojas. Mas foi um chamariz! Um pequeno número de coletes amarelos, cerca de 20, não mais, estavam presentes naqueles locais na manhã do dia 22, para rir da anedota e zombar das forças da ordem que compareceram em massa…
Ao mesmo tempo, em Paris, a maior parte dos seus camaradas vestidos de amarelo, avisados no último minuto a fim de manter o efeito de surpresa, estavam reunidos em torno da Place de l’Etoile ou em torno da Basílica do Sagrado Coração no alto das encostas da colina de Montmartre, nomeadamente. E como os dispositivos de segurança parisienses se gabavam de ser “extremamente móveis” nas semanas anteriores, os grupos de coletes amarelos brincaram de gato e rato com eles, fazendo-os correr o dia inteiro nas ruas da capital, bloqueando aqui e ali, na aleatoriedade de suas marchas, os eixos de circulação, sob os concertos de buzinas de motoristas solidários e os aplausos de turistas divertidos. Feliz Natal para todos na França!
Os jornais televisados consideraram bom apresentar em par os “dois grandes eventos do dia 22”. Um vídeo feito nos Champs-Élysées mostrando três policiais de moto assaltados por uma multidão furiosa que os atacava a golpes de… patinetes (percebe-se bem nas imagens)! Como se isso tivesse qualquer semelhança com as ações efetuadas neste dia pelas dezenas de milhares de coletes amarelos no país! E observações antissemitas de duas pessoas entrevistadas por um jornalista no metrô! Como se isso pudesse sintetizar uma opinião representativa dos coletes amarelos! Felizmente o ridículo não mata; caso contrário, desde há muito tempo não haveria mais mídia na Macronia!
Neste 22 de dezembro, a polícia contudo não perdeu completamente o seu tempo. Ela conseguiu prender, em diferentes pontos do território, várias “figuras” particularmente ativas dos coletes amarelos. É o caso de Éric Drouet, interpelado em meio a jornada no bairro de la Madeleine em Paris e colocado em detenção por “organização de maneira ilícita de uma manifestação, participação num agrupamento constituído tendo em vista violência ou degradações e porte de arma proibida”. A arma em causa seria um pedaço de pau que o seu proprietário, motorista rodoviário profissional, mantém sempre consigo como meio de defesa, segundo a opinião do seu advogado. De resto, e como Éric Drouet era conhecido nacionalmente por ter apelado para “entrar no Eliseu”, ninguém se pergunta por que razões o ministro da Ecologia, François de Rugy, o havia recebido oficialmente, porque o primeiro-ministro Édouard Philippe havia desejado conversar com ele… e o próprio presidente Macron havia lançado em pleno “caso Benalla”, no fim de julho último, sem que ninguém percebesse exatamente a quem se dirigia houvesse dito: “Se querem um responsável, ele está diante de vós! Que venham procurá-lo! E este responsável responde ao povo francês, ao povo soberano”. Imediatamente após a interpelação de Éric Drouet, centenas de coletes amarelos surgiram deste povo soberano e autoproclamaram-se todos “líderes do movimento”, reivindicando sua libertação… ou então a sua própria prisão”!
23/Dezembro/2018
Ver também:
On the demonstrations in France
https://www.resistir.info/franca/remy_24dez18.html