Revolução Cubana: 60 anos de resistência
Brasil de Fato
Arte: Gabriela Lucena
Fania Rodrigues Havana (Cuba) e Caracas (Venezuela)
Há 60 anos, o Exército Rebelde cercava a cidade de Santiago de Cuba, na última batalha liderada pelo comandante Fidel Castro, no final de dezembro de 1958. Ao amanhecer do dia 1º de janeiro de 1959, o ditador Fulgencio Batista abandonava a ilha. Com a destituição do ditador alinhado aos Estados Unidos, consolidava-se assim a Revolução Cubana.
Naquele início de ano, seis décadas atrás, bastaram algumas horas para os militares do Quartel de Moncada anunciarem a rendição diante dos guerrilheiros da Sierra Maestra. Essa batalha no oriente do país, também chamada de Operação Santiago, definiu o triunfo da Revolução Cubana. Era o mesmo lugar onde, cinco anos antes, havia começado a luta contra a ditadura de Batista, com o assalto ao Quartel de Moncada, no dia 26 de julho, data que deu origem ao nome do movimento guerrilheiro.
Depois da fuga do ditador Batista, Fidel Castro e sua tropa levaram sete dias para chegar à capital cubana. No dia 8 de janeiro de 1959, mais de mil combatentes rebeldes fizeram uma entrada triunfal em Havana, em cima de tanques e carros blindados do exército de Batista.
Para marcar a data, a reportagem do Brasil de Fato resgatou fatos históricos e conversou com pessoas que participaram da resistência naqueles dias e mantêm viva ainda hoje a memória da luta na ilha caribenha.
Fulgencio Batista
Fulgencio Batista foi presidente de Cuba entre 1940 e 1944. Depois do mandato, foi viver nos Estados Unidos e voltou à ilha para concorrer à presidência em 1952. Foi derrotado e liderou um golpe militar para tomar o poder, onde permaneceu até ser derrubado pelos revolucionários liderados por Fidel Castro.
Logo no início, os Estados Unidos reconheceram oficialmente o regime de Batista, apesar das denúncias de abuso de poder, como o aumento do próprio salário, que passou de 26 mil dólares anuais para 144 mil dólares, um dos maiores do mundo. Na comparação, à época, o salário do presidente dos Estados Unidos, Harry S. Truman, era de 100 mil dólares por ano.
Batista alinhou-se com os latifundiários ricos do país, que possuíam as maiores plantações de açúcar, e conduziu a ilha para um abismo social, com economia estagnada e um aumento cada vez maior da desigualdade social entre cubanos ricos e pobres. Além disso, a corrupção e o autoritarismo eram a tônica da gestão.
Com um governo cada vez mais corrupto, as máfias estadunidenses passaram a ter grande influência no país, controlando a distribuição de drogas, jogos de azar e a prostituição. Simultaneamente, as grandes multinacionais com sede nos Estados Unidos mantinham contratos lucrativos com o governo de Fulgencio Batista.
A insatisfação popular cresceu e ficou ainda mais evidente com o apoio demonstrado pela população às forças rebeldes que, comandadas por Fidel Castro, derrubaram o governo.
Apoio popular
O premiado jornalista cubano Juan Luis Marrero González descreveu em um artigo publicado pelo site Cuba Debate em 2014 o ambiente solene da chegada da Caravana da Vitória.
“As portas das bodegas, restaurante, cafés, lojas, bancos, instituições econômicas, ministérios e outras dependências amanheceram fechadas em Havana naquela quinta-feira, 8 de janeiro de 1959. As principais ruas foram adornadas elegantemente com bandeiras cubanas do Movimento 26 de Julho, penduradas em órgãos do Estado, comércios e casas. Assim foi feito para que todo o povo pudesse dar calorosas boas-vindas a Fidel Castro e aos barbudos da Sierra Maestra”.
No longo caminho percorrido até Havana, cortando o país de ponta a ponta, uma multidão saiu às ruas e estradas de terra para ver e aplaudir os novos heróis. “Fidel qualificou esse momento como um ‘banho de multidões’, ‘um banho de povo’. Todos queriam ver Fidel e os combatentes que haviam dado liberdade a Cuba”, contou González na publicação do Cuba Debate.
“O exército é o povo fardado”, dizia Camilo Cienfuegos, um dos comandantes da guerrilha cubana. Assim foi durante a luta armada, mas também depois da vitória revolucionária nos anos seguintes.
Um momento histórico que entrou para a memória do povo cubano.
Mãe e filho
O militar da reserva das Forças Armadas Revolucionárias (FAR) Arturo Matute Ayala contou ao Brasil de Fato que tinha nove anos de idade quando a Revolução Cubana triunfou e diz se lembrar perfeitamente da chegada dos “barbudos” em Havana.
Hoje com quase 90 anos, Arturo Matute é dirigente do Partido Comunista Cubano (PCC) no município de Marianao, na zona leste da Grande Havana, e conta que sua mãe, na época dona de casa dedicada, foi uma das primeiras voluntárias das unidades de defesa territorial.
“Em 1961, fomos enviados para Santiago de Cuba para ajudar na proteção dessa zona costeira. Eu tinha 12 anos, mas junto com minha mãe já ficava de guarda também, vigilante. Lembro-me da noite da invasão da Baía dos Porcos. A ordem era manter a vigilância em alerta máxima”, recorda.
“Chovia muito naquela noite, e comecei a ficar gripado. Minha mãe, com o fuzil nas mãos, me disse: ‘Filhinho, a mamãe adoraria levar você para casa, fazer um chazinho e cuidar de você. Mas não posso deixar esse fuzil, senão os gringos terminam de invadir e nos matam’”.
Os dois aguentaram firme até a derrota dos mercenários, após quatro dias de batalha intensa, entre 17 e 20 de abril daquele ano. “Os mercenários dos Estados Unidos não puderam com nosso povo”, diz orgulhoso Arturo Matute.
“Os mercenários dos Estados Unidos não puderam com [nosso povo]”, conta Arturo Matute
Guerrilheiro
No combate à invasão estadunidense contra a Baía dos Porcos, episódio conhecido em Cuba como batalha de Girón, em 1961, o ex-guerrilheiro Angel Fernandez Vila resistiu ao lado de Fidel Castro. Em uma foto da época, ele aparece justamente ao lado do comandante quando este redigiu, de próprio punho, uma ordem para a tropa revolucionária e o encarregou de entregar aos combatentes que estavam em outra região da praia.
“Fidel chegou, subiu no tanque de guerra em Helechal [província de Matanzas] e fez um discurso patriótico e valente para as tropas comandadas por ele e que resistiram ao assalto da Praia Girón”, conta Fernandez.
Angel Fernandez
O ex-combatente também fez parte da equipe médica da guerrilha, apesar de ainda ser, naquela época, estudante de medicina. Também foi redator da Rádio Rebelde. Hoje aos 85 anos, o coronel retirado das FAR é médico e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Havana.
Consciente de sua contribuição para a construção de um modelo político que melhorou a vida dos cubanos, o ex-guerrilheiro afirma que o futuro de Cuba continua sendo o socialismo.
Camponês rebelde
Outro ex-guerrilheiro entrevistado pelo Brasil de Fato, Ciro del Río Guerra, lutou lado a lado com Ernesto Che Guevara e guarda na memória aqueles dias de batalha nas montanhas de Cuba.
Del Río era um jovem camponês quando se juntou ao Exército Rebelde em 1957 e esteve sob o comando de Che na Sierra Maestra. Ele foi um dos fundadores da Rádio Rebelde, que teve papel determinante na vitória da guerrilha de Sierra Maestra na luta contra o numeroso exército do ditador Fulgencio Batista.
“Lembro-me de combater ao lado de Che em vários momentos. Ali, na frente de batalha, ele era mais um combatente, nunca houve diferenciação hierárquica. Ele não recuava nunca. Che foi o homem mais valente que já conheci”, conta.
Che
Ernesto Che Guevara comandou a Batalha de Santa Clara, uma das mais difíceis enfrentadas pelo Exército Rebelde, quando, nos últimos dias de dezembro de 1958, apenas 340 guerrilheiros derrotaram um batalhão de 3.900 soldados, fortemente armados e equipados também com 10 tanques de guerra. Depois de sucessivas vitórias, os últimos soldados do governo de Batista se renderam no dia 1º de janeiro de 1959.
A batalha foi também um episódio decisivo para os rebeldes que lutavam contra o regime do general Fulgencio Batista. No mesmo dia, Che recebeu a ordem de Fidel para transladar sua tropa a Havana e ocupar a fortaleza militar La Cabaña. A missão foi cumprida com sucesso no dia 3 de janeiro.
Anos mais tarde, Fidel Castro recordaria o dia em que Che e seus homens protagonizaram a maior proeza da guerrilha cubana.
“Quando, já ao final de dezembro, nossas forças tinham praticamente dominado a província Oriente [antiga província], Che levou a cabo uma de suas últimas proezas em nosso país. Avançou sobre a cidade de Santa Clara com 300 combatentes, enfrentou um trem blindado que estava fora da cidade, interceptou a via entre o trem e a sede das forças armadas: descarrilaram o trem, ocuparam, renderam os militares e confiscaram as armas”, relembrou Fidel em um discurso de 1971, na cidade de Santiago do Chile, durante uma homenagem a Che Guevara.
A revolução, edificada por Fidel Castro, Raul Castro, Ernesto Che Guevara, Camilo Cienfuegos, Tánia, Ciro Redondo e tantos outros guerrilheiros, camponeses, operários e estudantes, irrompeu para além das fronteiras cubanas. Influenciou movimentos políticos na América Latina, como o levante camponês colombiano, com surgimento das Forças Armadas Revolucionários da Colômbia; a Guerrilha do Araguaia, no Brasil; o Movimento dos Montoneros, na Argentina; a guerrilha urbana dos Tupamaros, no Uruguai; o Movimento Sandinista, na Nicarágua, e muitos outros. Além disso, a Revolução Cubana teve influência decisiva na luta armada em países como a África do Sul, na Guerra do Congo, em Angola e Vietnã.
No livro “A Guerra de Guerrilhas”, Che Guevara fala sobre o significado histórico da vitória popular em Cuba. “A vitória armada do povo cubano sobre a ditadura de Batista foi um triunfo épico noticiado por jornais do mundo inteiro, modificou velhos dogmas sobre a conduta das massas populares na América Latina, demonstrando, de forma palpável, a capacidade do povo de se libertar de um governo tortuoso”, escreve Che logo no primeiro parágrafo do livro.
Foi a escolha de Cuba por outro modelo político e econômico, mais igualitário, que despertou a ira dos Estados Unidos, argumenta Che. “‘Mau exemplo’ o cubano, ‘muito mau exemplo’. Aqueles que controlam os monopólios não conseguirão dormir tranquilos enquanto esse ‘mau exemplo’ permanecer de pé, avançando em direção ao futuro”, explicou o guerrilheiro em 1961, quando os ataques dos EUA contra Cuba se intensificaram.
Na obra, Che fala sobre as mudanças radicais que aconteceram logo nos primeiros anos após a derrubada de Batista pelos rebeldes.
“A Revolução Cubana liquidou os latifúndios, limitou o lucro dos monopólios estrangeiros e dos intermediários estrangeiros de capital parasitário que se dedicam ao comércio de importações. Também rompeu o monopólio de dois gigantes do setor mineiro. Cuba lançou uma política nova na América”, destaca.
Para o argentino, a construção desse novo modelo socialista cubano mostrou que era possível superar as desigualdades sociais, a corrupção e o burocratismo. A força ideológica da revolução foi o que possibilitou que se superassem todas as notícias contrárias divulgadas pelos grandes meios de comunicação.
“A Revolução Cubana rompeu todas as barreiras impostas pelas empresas de notícias e difundiu sua verdade, que se espalhou como uma carreira de pólvora entre as massas americanas ansiosas por uma vida melhor. Cuba é um símbolo de nova nacionalidade e Fidel Castro, símbolo de liberação”, afirma Che.
Vitória moral
O triunfo dos guerrilheiros foi militar, mas também moral. Essa questão aparece em várias análises e registros históricos ao longo desses 60 anos.
Uma anedota retrata como o líder da revolução era visto pela população. Em 1979, antes de viajar para a Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York, um jornalista questionou Fidel Castro acerca de um rumor de que ele “sempre andava protegido por uma roupa”.
“Qual roupa?”, respondeu Castro, tirando da boca o charuto cubano, para desabotoar a camisa.
“Todo mundo diz que o senhor tem um colete à prova de balas”, insiste o jornalista.
“Não”, responde Castro, sorrindo enquanto mostra o peito descoberto. “Vou desembarcar assim em Nova York. Tenho um colete moral, que é mais forte. Esse é o que me protege sempre”.
Fidel Castro acreditava profundamente na dignidade do povo cubano e na moral da Revolução Cubana como fortalezas que impediram os Estados Unidos de lançarem uma guerra contra Cuba.
Em uma entrevista concedida em 1995 à jornalista María Elvira Salazar, do canal estadunidense Telemundo, o líder cubano sintetizou a força em que acreditava. “Meu pior inimigo? Eu acredito que não tenho inimigo pior, porque creio que todos os inimigos podem ser vencidos”.
FICHA TÉCNICA
Reportagem: Fania Rodrigues
Edição: Aline Scátola
Fotos: Fania Rodrigues, arquivo e cortesia
Artes gráficas: Gabriela Lucena