A “uberização” da segurança pública: a vida não vale nada

imagemPara Jaqueline Muniz, Estado tem se limitado a terceirizar serviços públicos essenciais a grupos criminosos nas favelas José Eduardo Bernardes* Brasil de Fato

Há um mês, o músico Evaldo Rosa dos Santos foi assassinado com 80 tiros por militares do Exército que dispararam contra o carro em que ele estava com a família. O grupo estava a caminho de um chá de bebê quando foi alvejado pelos militares na zona norte do Rio de Janeiro.

O caso de Evaldo e sua família é mais um entre as tantas mortes e violações que ocorrem diariamente no Rio de Janeiro e têm como principal alvo moradores de comunidades pobres.

De acordo com o Instituto de Segurança Pública do estado, o primeiro trimestre de 2019 teve o maior número de mortes cometidas por policiais desde 1998. As mortes por intervenção policial somam 434 casos nos primeiros três meses deste ano. O número corresponde à morte de sete pessoas por dia na capital.

A equipe do Brasil de Fato conversou com a professora Jaqueline Muniz, do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF), sobre a questão. Ela, que já foi diretora da Secretaria de Segurança Pública do Governo do Estado do Rio de Janeiro, afirma que a violência cada vez maior por agentes do Estado faz parte de um sistema em que o objetivo final é fomentar a indústria da insegurança.

A especialista explica que a guerra contra o crime é, na verdade, um “marketing macabro” e cita como exemplo a atitude recente do governador do estado, Wilson Witzel (PSC), que participou pessoalmente de uma operação policial envolvendo atiradores de elite em um helicóptero no último sábado. “Ele ali, agindo como policial está produzindo abuso de poder, uma vez que ele não tem o mandato do uso da força, como os demais policiais”, critica.

Confira trechos da entrevista.

Brasil de Fato: Você poderia comentar sobre o caso recente do governador Witzel, que subiu em um helicóptero para fazer uma inspeção com a polícia civil? Qual sua avaliação sobre isso?

Jaqueline Muniz: O vídeo que foi divulgado pela assessoria do governador Wilson Witzel é, de certa forma um desastre político. Porque rapidamente permitirá consumir todo o capital político que o governador adquiriu nas urnas. E por que digo isso? Isso dá a impressão de que o governador ou ele é ingênuo ou inocente e que está sendo prisioneiro. Porque a função de governante é determinar a política, decidir a estratégia, autorizar as táticas e validar os meios logísticos da ação policial, mas jamais se confundir com a polícia.

Ele não fez concurso para polícia, ele foi eleito governador, então ele não desfruta do poder de polícia e isso faz com que ele se torne refém dos insucessos e acertos da ação policial que se dá cotidianamente. Esse é o primeiro ponto. Ele saiu da dimensão política e foi na dimensão operacional, então a mensagem é equivocada. Quando ele fez isso ele não transmite que está comandando, ele transmite que é comandado.

O segundo ponto é ficar brincando de operações com helicóptero, que é uma ferramenta empregada em ação policial de maneira controversa e ambígua. Nós sabemos todos que o helicóptero tem algumas funções na atividade policial, que são de transporte, deslocamento, observação, resgate, mas jamais como plataforma de tiro. Jamais, porque isso não permite superioridade na ação policial e favorece à acidentes e incidentes de trabalho. Se por um lado, através da mira à laser você tem como corrigir o alcance do alvo para produzir precisão, por outro você não tem como corrigir a trepidação do helicóptero. Ou seja, atirar de helicóptero é pagar para produzir erros, é fabricar terror, mas não para produzir o resultado sequer de controle da ação criminosa, sequer de captura de criminosos praticando crime em andamento. Portanto, trata-se mais um vez de uma expressão de amadorismo.

A terceira coisa mais grave é que o governador improvisando como polícia, qual a mensagem que ele passa? A de despreparo, que qualquer um pode pegar uma arma e brincar de policia e ladrão na esquina. A polícia é uma instituição, ela não pode trabalhar sob a forma do improviso e do amadorismo e é isso que ele transmitiu. Uma incapacidade de governo e a incapacidade da eficiente técnica policial, o que deixa todo mundo inseguro. O eleitor que votou nele, a sociedade que assiste às ações e a própria polícia.

O Rio de Janeiro passa por uma onda de violências e chacinas e abusos policiais absurda. Em 3 meses são mais de 30 mortes causadas por ações policiais. Queria saber de você o que nos leva a esse número tão absurdo.

O Estado aqui tem funcionado como uma agência reguladora do crime e arrendadora de territórios. Então, o tiro porrada e bomba, a síndrome do cabrito, o sobe e desce morro, na verdade funciona como uma lógica publicitária para redistribuição de territórios. Não se teve aqui uma derrota do crime, o que se teve foi uma quarteirização e uma terceirização dos serviços públicos essenciais para grupos criminosos que atuam em rede e de maneira itinerante. Então, foi o que assistimos com o crescimento da milícia, essa reconfiguração dos territórios no Rio de Janeiro.

Como a vida do policial vale tão pouco ou nada, como da população, das comunidades populares, que é da onde os policiais saíram, então não há problema algum que essas pessoas sigam mortas ou matando umas as outras. A ideia de pode tudo também reforça esse ilusionismo do herói para que o policial não branco, pobre, proveniente de comunidades populares, se reconheça para cima ao invés de se identificar para baixo que foi da onde saiu.

O problema é que essas pessoas vão responder individualmente por seus atos. O que nós estamos assistindo é uma precarização das instituições policiais, da institucionalidade da polícia em favor de ações individuais tresloucadas, porque o herói de hoje será o amputado ou morto de amanhã e quando ele tiver amputado na fila para buscar uma prótese, o policial vai lembrar que ele não tem valor nenhum. Uma vez que ele não pode mais matar, não pode estar na rua, prestando esse serviço macabro, ele perde o valor.

Os policiais no RJ estão sendo transformados em zumbis do patrulhamento, a maioria deles tem ação suicida, sérios problemas psicológicos, isso já vem desde 99 com a primeira pesquisa que a gente fez. Portanto esse ciclo é um ciclo que interessa política e economicamente. Então quando a gente observa esse corre todo, o tirar de freios, que não precisa mais garantir legalidade, legitimidade, o que nós temos nas ruas são enfrentamentos de bandos armados, seja bando armado com uniforme da polícia, seja banda armado criminoso. Quem perde com isso? Perde a sociedade, perde a polícia, perde o próprio governo, porque não tem como sustentar.

Queira saber sobre as comunidades que estão sob o cerco da polícia, do exército e dos helicópteros.

O que estamos assistindo no Rio é uma uberização da segurança pública, o que precariza ainda mais a segurança nas comunidades populares. Eu gostaria de lembrar que as favelas no RJ são ricas, pobres são seus moradores, que são extorquidos diariamente. Por que elas são ricas? Porque elas são bitributadas, elas pagam imposto, os moradores pagam imposto ao Estado, pagam imposto para o crime, pagam imposto para milícia, aos circuitos de corrupção.

Então, o que nós estamos assistindo são essas lógicas sobre circo que estão a serviço dessa economia que estamos falando. Qual é a economia milionária? Não é o pó de mármore que as pessoas cheiram achando que é cocaína. É a banda larga ilegal, é o gato net, é a luz ilegal, todos os serviços essenciais que são terceirizados na favela para propósitos criminosos.

As pessoas estão ali coletando impostos informais, extorquindo a população , em uma economia milionária. Enquanto mantiver as pessoas assustadas e destituídas de seus direitos, mais lucro. Ainda mais quando se pode vender proteção, estamos falando de uma economia da proteção, é a fabricação indefinida de ameaça de suspensão, de modo a produzir esses resultados que estamos vendo aí, de que a vida vale pouco, é precarizada e esses sujeitos são sobre extorquidos.

Por isso que fabricar crimes e espetáculos operacionais serve como publicidade, onde se vende muito brinquedos caros e estimula a lógica armamentista, tanto de um lado quanto do outro. Então não se trata de resolver, sob esse aspecto, o que se acontece no Rio de Janeiro tem sido exitoso. O projeto de produzir insegurança e fazer o indivíduo acreditar que é necessário cada vez mais dureza é ao mesmo tempo mostrar como ele está destituído, fragilizado e entregue a si mesmo. Quando mais ele se sentir assim, mais ele vai endossar práticas de exclusão vindas do Estado. Isso é um tripé, fabricação de insegurança, que promove intolerâncias, que maximizam exclusão.

*Colaborou Luciana Console

https://www.brasildefato.com.br/2019/05/08/especialista-aponta-uberizacao-da-seguranca-publica-no-rio-a-vida-e-secundaria/

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