“Acordo do Século” quer a extinção dos palestinos

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José Goulão

O pacote econômico prevê “resolver” o problema dos refugiados palestinos – cujo direito de retorno é garantido pelo direito internacional – através da aquisição da nacionalidade dos países de acolhimento.

A compra da naturalização dos refugiados palestinos com muito dinheiro oferecido aos países de acolhimento, mirabolantes trocas de parcelas de territórios continentais e insulares, projetos industriais e tecnológicos de encher os olhos e ainda a transferência de populações integram o pacote econômico do chamado “Acordo do Século” através do qual Trump e Netanyahu pretendem “resolver” o problema central do Oriente Médio – a questão palestina. Em termos práticos, trata-se de erradicar a nacionalidade palestina, isto é, os palestinos. Uma forma de “solução final”.

Embora o fracasso do primeiro-ministro israelense em constituir governo e a convocação de novas eleições em Israel tenham perturbado os planos dos dois aliados, tudo indica que a apresentação da parte econômica do “acordo” continue prevista para os próximos dias 25 e 26 de junho em Manamá, Bahrein.

Direitos “inalienáveis”
O “Acordo do Século” nada tem a ver com o resultado de qualquer negociação; tanto quanto se sabe através de fugas de informação que estão sendo geridas pelos próprios autores, trata-se de um conjunto de medidas a impor a todo o povo palestino – dos territórios ocupados e da diáspora – para proceder, de fato, a anexação da Cisjordânia, Jerusalém Leste e Gaza e a “eliminação” do problema dos refugiados. As exigências, que significariam uma rendição total dos palestinos e uma subversão absoluta de todas as normas internacionais aprovadas sobre a questão israelense-palestina, seriam acompanhadas por uma cativante movimentação de muitos milhares de milhões de dólares, além de outros incentivos, designadamente de âmbito territorial.

Todos os grupos palestinos, sobretudo o chamado “governo autônomo” de Ramallah e o executivo do Hamas em Gaza, rejeitaram desde logo a participação na conferência de Manamá. Mahmmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestina, reafirmou que os direitos do povo palestino são juridicamente “inalienáveis”. Outros países árabes – com exceção segura dos da região do Golfo – parecem seguir a mesma posição, uma vez que é inerente à cultura árabe o fato de ser uma desonra trocar direitos por dinheiro.

«o chamado “Acordo do Século” […], em termos práticos, trata-se de erradicar a nacionalidade palestina, isto é, os palestinos. Uma forma de “solução final”»

Trump e Netanyahu apostam nesta mistura “de bastão e cenoura”, imposição de soluções complementada com a oferta de dinheiro, partindo do princípio de que os palestinos serão sensíveis às promessas de uma vida melhor e “em paz” depois de 75 anos instabilidade, repressão e desenraizamento.

No entanto, em Israel não parece acreditar-se muito nisso.

“O problema é que os refugiados palestinos são os símbolos supremos da nacionalidade palestina”, escreve o jornal de referência Haaretz. Por isso, acrescenta, “um acordo norte-americano que confunde descaradamente a compra desse símbolo com dinheiro, mesmo que seja muito dinheiro, não pode ser aceitável para os dirigentes palestinos na Cisjordânia e em Gaza”.

Também a China e a Rússia anunciaram já que não participarão na reunião de Manamá. Moscou fez saber, no fim de maio, que as violações do direito internacional são “inadmissíveis”.

Tese: o dinheiro compra tudo
O pacote econômico do “acordo” a ser apresentado em Manamá prevê “resolver” o problema dos refugiados – cujo direito de retorno lhes está garantido pelo direito internacional – através da aquisição da nacionalidade dos países de acolhimento. Para tal, Trump e Netanyahu preveem recompensar generosamente os países hospedeiros, designadamente Jordânia, Líbano, Síria, Egito e Iraque.

Por outro lado, os territórios palestinos seriam contemplados com investimentos em massa para o respectivo desenvolvimento, controlado por Israel e os Estados Unidos, concretizando-se assim a colonização e consequente anexação. E como Israel não aceita constitucionalmente cidadãos “não judeus”, aos palestinos dos territórios restaria conformar-se em ser cidadãos de segunda ou seguir o caminho do exílio, isto é, da aquisição de uma outra nacionalidade.

O dinheiro para este enorme negócio teria origem, segundo as fugas de informação relacionadas com o “acordo”, nas petromonarquias do Golfo, especialmente Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Qatar, em países europeus, nos Estados Unidos e outros “países ricos”.

Além do dinheiro haveria outros incentivos e também pressões político-econômicas sobre os elos mais fracos, como é o caso do Líbano e do Egito. Atingidos por crises econômicas avassaladoras, só terão parte das dificuldades resolvidas se aceitarem tudo quanto está previsto no “acordo”.

No Líbano, sobrecarregado com uma dívida soberana de 155% do PIB, vivem mais de meio milhão de refugiados palestinos numa população de quatro milhões de pessoas; a sua naturalização, que esbarra na própria Constituição do país, poderia abrir a porta a reivindicações de tratamento semelhante por parte dos cerca de um milhão de refugiados sírios. As ondas de choque sobre o pequeno país seriam insustentáveis; porém, no outro prato da balança estão as exigências norte-americanas e israelenses, cujas consequências os libaneses muito bem conhecem historicamente.

Outros dos incentivos com que Washington e Telavive pretendem jogar serão arranjos territoriais, que podem implicar transferências de populações para viabilizar o “Acordo do Século”.

Duas ilhas por um pouco de deserto
A Jordânia é outro dos países alarmados com a hipotética naturalização de um milhão de refugiados palestinos, mais de 60% da população nacional.

Para concretizar essa operação – que significaria a passagem na prática da recorrente ideia israelense de que a Jordânia, a “Palestina Oriental”, já é o pretendido Estado Palestino – os Estados Unidos oferecem muito dinheiro e uma parcela de território saudita.

Para isso, a monarquia de Riade seria recompensada com as ilhas de Sanafir e Tiran, retiradas ao Egito.

O Cairo não está em posição de oferecer muita resistência, sobretudo devido à profunda crise econômica e à dependência precisamente dos países que estão na base do “acordo”, os do Golfo incluídos.

Por isso, e em troca de 65 mil milhões de dólares para impulsionar a economia, o Egito é ainda convidado a abdicar de um território ao longo da costa do Sinai entre Gaza e El-Arish, onde seria recebida parte ou a totalidade da população de Gaza, assim transferida e, eventualmente, logo naturalizada.

Como os sentimentos, interesses e raízes das pessoas e das comunidades não entraram no “Acordo do Século”, presume-se que a transferência se realize à força.

Como recompensa pela cessão da “Nova Gaza”, o Egito receberia de Israel um território com área semelhante situado na zona ocidental do deserto do Neguev.

O jornal Haaretz explica que, ainda como incentivo à receptividade do “acordo”, está previsto o lançamento de grandes empreendimentos industriais e tecnológicos nos países envolvidos, sobretudo na zona egípcia adjacente à faixa de território destinada à população de Gaza.

Outro dos projetos mirabolantes seria a construção de um túnel entre o Egito e a Arábia Saudita, com autorização de Israel e a ser financiado pelos “países ricos” chamados a dar corpo a esta programada “solução final” do problema palestino.

Depois da aplicação do “Acordo do Século”, dos mais de sete milhões de palestinos atuais restariam menos de um milhão, emparedados entre muros e colonatos avançando pela Cisjordânia. Aos remanescentes restaria, então, ser cidadãos de segunda sob o domínio de Israel ou exilar-se, ou seja, abdicar da sua nacionalidade – que assim se extinguiria.

Como os palestinos não estão de acordo com o “acordo” e o direito internacional também não, qual será o passo seguinte de Netanyahu e Trump, neste caso representado pelo genro e conselheiro, o sionista Jared Kushner?

Milhares de palestinos em protesto contra medidas securitárias impostas pelos israelenses em Al-Aqsa (Jerusalém Oriental ocupada).
Foto de arquivo. Créditos / PressTV

https://www.abrilabril.pt/internacional/acordo-do-seculo-impoe-extincao-dos-palestinianos