O CASO ELOÁ: QUANDO O TRÁGICO TRANSFORMA-SE EM DEGRADAÇÃO HUMANA

O multimidiático julgamento do bárbaro crime contra uma mulher, ainda que menina, a pobre Eloá, mais que um caso de passionalidade ou de torpeza do assassino, reflete imediatamente as formas de consciência alienada da sociedade contemporânea, em especial da especificidade dessa alienação numa socialidade como a brasileira, onde a persistência da “tradição” machista é reforçada pela ignorância do senso comum, pela baixa escolaridade das massas populares e pela manipulação permanente de uma mídia sem compromisso com a sociedade e com o país.

Uma tragédia cotidiana, em que dezenas de Eloás e Lindembergs são envolvidos no turbilhão de uma forma societal dimensionada pelo mesquinho e pela superficialidade da mercantilização e coisificação do ser humano. Uma sociedade mediada pela mercadoria e pela propriedade privada e que por seu ser-precisamente-assim, gera nas relações humanas a concepção de posse privada e coisificada do outro.

São tragédias milenares, é verdade, tão antigas como a propriedade privada, mas agoraredimensionadas  pela concepção capitalista da mercadoria, que as  tornam mais perversas e profundamente desominizadoras. Por ser mercadoria, o trágico já não aparece com a forma do mundo grego arcaico, quando a tragédia constituia-se em um recurso de reflexão catárquica e intuitiva da miséria e dos conflitos  humanos, mas como circo midiático de mercado para venda dos programas de televisão que vivem da exploração de relações humanas degradadas.

Pior, esses programas comandados pelos performers da desgraça alheia, fazem da miséria humana o show dos horrores, construindo uma nova e reacionária forma catárquica que reforça o senso comum acrítico e conservador. Se o trágico do arcaísmo grego contrapunha a ética ao crime ou à violação das regras de coexistência em sociedade, mesmo quando a ação violadora da lei apresentava-se com fundo de inconformismo extremo, como em Medéia, onde Eurípedes recoloca o tema da ética violentada (retomando a temática da fúria de Odisseu/Ulisses contra a violação da virtude da lei – Odisséia), agora essa noção da tragédia torna-se impossível, porque esvaziada dos conteúdos reflexivos e da ética.

Em tempos do que Lukács definiu como capitalismo manipulatório, não cabe mais a noção trágica do humano contraditório, composto pelo “bem e pelo mal” e mediado por uma ética comunitáriaEm seu  lugar coloca-se o princípio irracionalizado do bem contra o mal , mesmo que seja realmente o mal, como no caso da pobre moça. Mas aqui, o mal aparece como pecado bíblico que deve ser punido fundamentalisticamente, com a expiação do pecado , o mal descontextualizado da própria sociabilidade que o determina.

Os performres da miséria humana reforçam assim, a ideologia da expiação e da punição do pecado , não dando a menor chance para que se reflita sobre as “causas do mal”. Combate-se o que é negativo com a negatividade da repressão, como expressam esses arautos do senso comum. Apontam os pobres como os agentes do mal, não a pobreza e a ignorância, filhas ctônicas da exploração e da alienação da sociabilidade capitalista.

A sociabilidade da mercadoria coisifica o humano, retira dele a noção de identidade do indivíduo que seobjetiva no outro, como definia Marx, a única condição da objetivação da  individualidade do ser humano é a realização de si pelo outro, seja no âmbito da individualidade em si, seja no das relações sociais. A fragmentação da praxis humana, a coisificação e a transformação do outro em mercadoria, recoloca alienadamente o homem como centro atomizado de si e da sociedade. Transforma o outro em instrumento, em meio de manipulação obscura de seus desejos, reforça o individualismo e mercantiliza as relações afetivas.

O caminho para uma outra noção de justiça é o mesmo da construção de uma nova sociabilidade que não tenha a mercadoria como centro, quer dizer um longo caminho a percorrer mas que não impede que desde já possamos ir construindo formas alternativas de relações sociais, como uma nova hegemonia , que apontem para a hominização das relaçoes sociais e das formas de reprodução da vida e que tenha como pressuposto a crítica radical da sociabilidade burguesa.

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