A nova estratégia golpista dos EUA na América Latina
O desfecho do golpe nas Honduras chamou a atenção para a nova estratégia golpista dos Estados Unidos na América Latina.
É transparente que Washington, recorrendo a processos diferentes dos tradicionais, conseguiu o que pretendia: afastar um presidente progressista democraticamente eleito e substitui-lo por gente da sua inteira confiança.
Essa vitória do imperialismo não deve ser subestimada porque se integra numa estratégia ambiciosa, que visa a neutralizar, sem pressas, o movimento de contestação dos povos da América Latina à dominação dos EUA.
O sistema de poder imperial identifica como «ameaça» os governos da Venezuela Bolivariana e da Bolívia, que condenam o capitalismo, propondo como alternativa o socialismo. A Casa Branca teme que o Equador siga o mesmo rumo e não esconde a sua inquietação pela eleição no Uruguai, na Nicarágua, em El Salvador e no Paraguai de presidentes com programas anti-neoliberais (embora não os apliquem).
Atolados em guerras perdidas no Iraque e no Afeganistão, alarmados com o caos paquistanês e incapazes, até agora, de impor a sua vontade ao Irão – o único grande pais muçulmano da Ásia que desenvolve uma politica independente – o sistema de poder dos EUA sentiu o perigo da «avançada revolucionária» dos povos da América Latina. O precedente de Cuba assusta.
Nesse contexto, o golpe atípico nas Honduras foi o prólogo de uma estratégia cujo objectivo é o restabelecimento da velha ordem imperial numa Região que durante mais de um século era olhada como «o pátio das traseiras».
Porquê atípico?
Na aparência foi um cuartelazo à moda antiga. O comandante do exército (um general formado na Escola das Américas, com cadastro por ter chefiado uma gang de ladrões de automóveis) mandou prender o presidente. De madrugada, a tropa invadiu o palácio e Manuel Zelaya, ainda em pijama, foi metido num avião e expulso para a Costa Rica. Simultaneamente um político de extrema-direita, proclamou-se Presidente da República.
Mas tudo fora minuciosamente preparado. O primarismo e a brutalidade do golpe suscitaram repulsa universal. A Casa Branca apressou-se a condenar o gorilazo e a pedir o restabelecimento da normalidade constitucional. Tudo foi montado para colocar Obama acima de suspeitas. Mas enquanto os países da União Europeia retiraram os embaixadores de Tegucigalpa, os EUA mantiveram o seu na capital hondurenha e não suspenderam a ajuda económica e militar ao governo fantoche de Micheletti.
Com o correr dos dias a cumplicidade dos EUA tornou-se transparente. O embaixador Hugo Llorens é um cubano de Miami naturalizado norte-americano. Foi na própria embaixada que Micheletti e os generais gorilas montaram o golpe. O comando da força aérea hondurenha está aliás instalado na Base militar estadounidense de Palmerola.
Seguiu-se o folhetim da condenação formal do golpe pela OEA e a mediação do costarricense Oscar Arias, um incondicional de Washington. Era preciso ganhar tempo. O regresso sensacional de Manuel Zelaya e a sua instalação na Embaixada do Brasil criou uma situação não prevista. Mas Hillary Clinton manobrou de maneira a impedir que o presidente legítimo reassumisse o cargo. Aliás recusou sempre definir como «golpe» ocuartelazo que derrubou Zelaya.
A preparação das eleições farsa de Novembro foi montada de acordo com o subsecretário de Estado dos EUA, Thomas Shanon. Enviado por Obama, esse membro do governo garantiu ao então candidato á Presidência, o milionário Porfirio Lobo, seu ex-colega na universidade de Yale, que Washington reconheceria as eleições como legitimas.
Nas semanas seguintes, marcadas por intensa repressão, ocorreram ainda alguns episódios de farsa que não alteraram o desfecho. A abstenção real na eleição fraudulenta, elogiada como democrática nos EUA, terá sido superior a 60 %.
Em Janeiro Porfirio Lobo tomará posse e a Administração Obama reconhecerá como legitimo o seu governo. Tudo indica que os governos da União Europeia, com poucas excepções, também restabelecerão gradualmente relações diplomáticas com as Honduras.
A Casa Branca não esconde a sua satisfação. Considera resolvida a crise hondurenha. Afinal, os EUA idearam e patrocinaram um golpe militar, simularam condenar o derrubamento do presidente constitucional, e, através de uma farsa eleitoral, colocaram em Tegucigalpa um homem da sua inteira confiança. O governo de Lobo será uma ditadura de fachada institucional.
O caso hondurenho reforçou em Washington a autoridade dos defensores da nova estratégia musculada para a América Latina.
Outra vertente desta é a ampliação da presença militar directa dos EUA na Região. O regresso da IV Frota a águas sul-americanas antecipou uma decisão que configura uma ameaça ostensiva aos países que tentam seguir uma politica soberana: a instalação na Colômbia de 7 bases militares norte-americanas.
A iniciativa suscitou uma vaga de protestos de dimensão continental. A divulgação do texto inglês do acordo assinado com o governo de Bogotá confirmou que as Forças Armadas dos Estados Unidos instaladas em território colombiano não somente podem, doravante, participar do combate às guerrilhas das FARC e do ELN como intervir sem limitações onde quer que Washington considere isso necessário.
A indignação dos povos latino-americanos ficou patente na Conferência da UNASUR, realizada em Bariloche, na Argentina. Mas nada saiu desse encontro onde o presidente Lula, conciliador com Uribe, dedicou mais tempo a criticar Chávez, Evo Morales e Rafael Correa do que a denunciar a ameaça para a América Latina das novas bases militares estadounidenses.
Washington, além do apoio incondicional do governo neofascista de Álvaro Uribe, tem um aliado firme no governo do peruano Alan Garcia e confia que no Chile o candidato da extrema-direita, o multimilionário Sebastian Pinera, seja eleito presidente a 17 de Janeiro, na segunda volta.
O apoio dessa troika e as excelentes relações mantidas com o Brasil, a Argentina e o Uruguai permitirão a Obama, no âmbito da nova estratégia, endurecer a sua posição perante os governos de Chávez, Evo e Correa.
A ratificação pelo Congresso do Brasil da adesão da Venezuela ao Mercosul foi, entretanto, um rude golpe para os EUA. Washington não esconde o seu apoio à política económica e financeira do governo Lula, de recorte neoliberal, que no fundamental, como bom administrador do capitalismo, favorece o grande capital e a agro-indústria e não afecta os interesses das transnacionais. Mas Obama não esconde as suas apreensões relativamente a algumas iniciativas tomadas por Brasília no campo da política externa. O projecto de criar o Sucre como moeda que substituiria o dólar nas transacções comerciais entre os membros da ALBA é visto – um exemplo – pela Casa Branca e pelos banqueiros de Wall Street como um desafio intolerável. O aprofundamento das relações da ALBA com a União Europeia é outro motivo de preocupação para a Administração Obama.
A nova estratégia golpista para o Hemisfério foi concebida precisamente para dar uma resposta global ao avanço das forças progressistas no Sul do Continente. O Departamento de Estado e o Pentágono chegaram à conclusão de que era urgente travar esse avanço.
Em Washington exclui-se por ora a intervenção militar directa em países que não se submetem. A repercussão internacional de uma iniciativa desse género seria desastrosa para a imagem dos EUA, tão desgastada pelas suas guerras asiáticas.
Mas seria uma ingenuidade crer que as bases norte-americanas na Colômbia não serão utilizadas para uma escalada de provocações contra a Venezuela e outros países da Região. Independentemente do reforço da intervenção contra as FARC, a heróica guerrilha-partido caluniada pelo imperialismo.
O Departamento de Estado – onde Hillary Clinton desenvolve uma actividade tão negativa como a de Condoleeza Rice na presidência de Bush – confia sobretudo no efeito da sua politica nos países cujos governos define como «inimigos».
Espera, graças a uma nova estratégia, ter êxito naquilo que em meio século de guerra não declarada os EUA não conseguiram em Cuba.
O golpe hondurenho não se pode obviamente repetir em qualquer dos países sul-americanos que defendem uma alternativa ao capitalismo.
Mas Washington soube extrair lições importantes do seu sucesso.
Destruir por dentro o regime venezuelano seria, na opinião dos assessores de Obama, o objectivo principal. Hillary tem aliás multiplicado os ataques ao governo de Caracas, consciente de que a Venezuela bolivariana é hoje – como afirma o economista francês Remy Herrera – «uma das frentes anti-imperialistas mais dinâmicas do mundo»
Mas a Revolução Bolivariana atravessa uma fase difícil. A queda do preço do petróleo privou o governo de recursos financeiros que foram fundamentais na batalha contra o analfabetismo, no fornecimento de alimentos subsidiados às camadas mais pobres da população e para o êxito das misiones que tornaram possível, com a cooperação solidária de mais de 20.000 médicos cubanos, prestar assistência médica a milhões de venezuelanos que a ela não tinham acesso.
A enorme popularidade do presidente junto das massas e a adesão destas à condenação do capitalismo e ao projecto de transição para o socialismo como alternativa à hegemonia do imperialismo resultou sobretudo da humanização das condições de vida da grande maioria da população, afundada na miséria.
Os efeitos da crise mundial do capitalismo, ao manifestarem-se na Venezuela – nomeadamente através das cotações do petróleo e de uma inflação acelerada – afectaram, como era inevitável, toda a estratégia de desenvolvimento.
O Partido Socialista Unido da Venezuela – PSUV – não atingiu o objectivo. A sua fundação respondeu a uma necessidade histórica. Mas o PSUV foi criado à pressa, por decisão do Presidente, e estruturado de cima para baixo, com intervenção mínima das massas populares. Resultado: nasceu infestado de oportunistas. É significativo que o Partido Comunista da Venezuela e o Pátria para Todos, duas organizações revolucionárias que sempre apoiaram (e apoiam) Chávez não se tenham dissolvido e integrado no PSUV.
O chamado Socialismo do Século XXI pretende ser a ideologia que encaminhará a Revolução bolivariana para um socialismo original. Mas aqueles que identificam nele um «modelo» para a América Latina têm contribuído sobretudo para semear a confusão ideológica. Alguns dirigentes e quadros do PSUV mostram-se mais preocupados em criticar o marxismo do que em colaborar com o Presidente na desmontagem das engrenagens do Estado venezuelano que permanecem sob controlo da burguesia.
Contrariamente ao que muitos europeus crêem, a Venezuela continua a ser um país capitalista no qual as antigas elites conservam um grande poder económico que lhes garante a propriedade dos meios de produção (terras, indústrias, comércio, etc.), o controle parcial da actividade bancária e financeira, e dos meios de comunicação social.
É nesse contexto que uma oposição poderosa e cada vez mais arrogante desafia Hugo Chávez, consciente de que a sobrevivência da revolução bolivariana está indissoluvelmente ligada à pessoa do Presidente.
As esperanças dos EUA residem por isso mesmo num agravamento da situação económica do país que altere a correlação de forças existente.
Sondagens recentes revelaram que a popularidade de Chávez tem diminuído.
Não podendo intervir militarmente, Washington apoia nos bastidores todas as iniciativas da oposição que possam destabilizar o país, dividir o chavismo, semear dúvidas nas Forças Armadas e enfraquecer o poder do Presidente.
Não se deve – repito – subestimar o perigo representado pela paciente estratégia golpista da Administração norte-americana no tocante à Venezuela. Washington trata de favorecer ao máximo, e estimular através de provocações externas, o trabalho interno de sabotagem da Revolução bolivariana.
BOLIVIA E EQUADOR
A Bolívia é outro alvo da nova estratégia golpista estadounidense.
Tal como na Venezuela, o êxito do processo revolucionário em curso é inseparável da acção e do prestígio do seu líder. Evo Morales conta com o apoio esmagador das massasaymaras e quechuas, que constituem a maioria da população. Evo é o primeiro indígena que chega à Presidência na América do Sul.
Não somente honrou os compromissos assumidos com o seu povo como foi mais longe numa radicalização progressiva de posições, que o levou a tomar medidas revolucionárias geradoras de confrontação com o imperialismo norte-americano e com transnacionais brasileiras e espanholas. Entretanto, o MAS, que conta agora com mais de dois terços do Congresso, continua a ser mais um Movimento do que propriamente um partido. O «socialismo comunitário», a opção boliviana que encaminharia o país para o socialismo, reflecte as contradições do MAS e a influência de uma exacerbação do indigenismo.
No governo, actuam forças que se esforçam por travar transformações revolucionárias. O próprio vice-presidente da República, Garcia Linera, é um intelectual cuja tese sobre a necessidade de um «capitalismo andino-amazónico» deixa transparecer a sua confusão ideológica, expressa alias na defesa que faz das ideias de Toni Negri.
Washington acompanha com atenção as fragilidades do processo boliviano. A embaixada norte-americana tem-se envolvido em conspirações contra Evo Morales e agentes dos serviços de inteligência, da CIA e da DEA, mantêm relações estreitas com os dirigentes da oligarquia de Santa Cruz, núcleo do movimento separatista.
Sendo a Bolívia pela força da oposição o elo mais vulnerável da troika progressista sul-americana, os EUA não perdem a esperança de criar no país uma situação de caos, propicia a abrir a porta ao restabelecimento da velha ordem
CORREA NA LISTA NEGRA DE WASHINGTON
Rafael Correa é um reformador anti-neoliberal, mas não se propõe encaminhar o Equador para o socialismo. Passou, entretanto, a ser também considerado pelo Pentágono como «inimigo dos EUA» a partir do dia em que declarou que fecharia a Base Militar de Manta quando expirasse o Acordo que tinha permitido a sua instalação.
A maneira como defendeu a soberania do seu pais em situações de conflito com transnacionais petrolíferas e bananeiras que a desrespeitavam e as excelentes relações que desenvolveu com a Venezuela, a Bolívia e Cuba contribuíram para piorar as relações de Washington com o jovem presidente do Equador. E a tensão aumentou quando o governo de Quito apresentou provas de que a Base de Manta tinha colaborado activamente com a força aérea colombiana na preparação do bombardeamento em território do Equador do acampamento do comandante Raul Reyes, das FARC, agressão pirata que provocou então o rompimento de relações com o governo de Uribe.
A dignidade e firmeza de Rafael Correia na defesa da independência nacional conquistaram o respeito do seu povo, mas a agressividade da direita oligárquica, apoiada pelos EUA, aconselha muita prudência nas previsões sobre o futuro próximo. Na prática é muito reduzido o poder real de um presidente patriota e progressista num país que no final do século XX foi forçado pelos EUA a adoptar o dólar como moeda nacional.
XXX
O discurso humanista de Barack Obama não emociona mais a maioria daqueles que acreditaram nas promessas da sua campanha. Os actos do presidente dos EUA desmentem-lhe as palavras. O cidadão distinguido com o Prémio Nobel da Paz aprova e incentiva uma politica que promove o terrorismo, estimula o militarismo e tem contribuído para a intensificação e alastramento das guerras desencadeadas pelo seu país no Médio Oriente e na Ásia Central.
O actual orçamento de defesa dos EUA, de 700.000 milhões de dólares é superior a todos os demais orçamentos militares do mundo somados.
Relativamente à América Latina, o compromisso de uma nova política é negado pela realidade. A nova estratégia intervencionista da Casa Branca para o Sul do Hemisfério é mais intervencionista e perigosa do que de George Bush.
Do Rio Grande à Patagónia os povos começam a tomar consciência dessa ameaça. Os alvos prioritários são a Venezuela bolivariana e a Bolívia. Grandes lutas contra o imperialismo estadounidense esboçam-se no horizonte.