Duas semanas que arrepiaram o mundo
Mulheres enlutadas protestam contra o assassinato do general Qassem Soleimani, em Teerã, Irã, em 4 de Janeiro de 2020
CréditosAtta Kenare / AFP/Getty Images
Por José Goulão
ABRIL ABRIL
O assassinato de Qassem Soleimani confirma a tendência norte-americana para ajustar contas com pessoas, entidades e organizações que combatem o terrorismo oriundo do tronco comum afegão.
Antes que a enxurrada de desinformação produzida pela comunicação social corporativa mistifique a história oficial destes dias de guerra, caos e ilegalidade na cena internacional, é preciso decodificar a cadeia de acontecimentos, para que seja possível distribuir responsabilidades e invalidar mentiras. Se os Estados Unidos da América, como é habitual e natural, sobressaem como os artífices de uma trama que ameaça o planeta, é importante notar que o «nosso mundo civilizado», com a OTAN e a União Europeia à cabeça, não fazem figura de inocentes. Aliás, nem o governo da República Portuguesa se salva.
Já poucos terão presente que esta escalada de guerra dos Estados Unidos contra o Iraque e o Irã – ao que parece agora militarmente amainada – se iniciou em 27 de dezembro com um suposto ataque da organização paramilitar iraquiana xiita Kataeb Hezbollah contra uma base ocupada por tropas norte-americanas no Iraque, provocando a morte de um contratado civil e ferimentos em quatro militares.
E aqui começa a história a ser mal contada.
Em momento algum, até hoje, as fontes oficiais e oficiosas norte-americanos prestaram informações adicionais sobre este incidente, por exemplo divulgando a identidade do falecido, a entidade para a qual trabalhava e os nomes dos feridos.
No dia seguinte veio a «resposta» norte-americana: caças F-15 bombardearam cinco bases do Kataeb Hezbollah no Iraque e na Síria, instalações que foram e continuam a ser fulcrais no combate contra o Isis ou Estado Islâmico e a Al-Qaeda. Desenhava-se aqui uma tendência: punir organizações ou entidades que contribuem para tentar desmantelar o terrorismo que descende diretamente do que foi criado no Afeganistão por Bin Laden e a CIA em coordenação com outros serviços secretos, designadamente os britânicos, sauditas e paquistaneses.
O pormenor mais intrigante da «resposta» militar norte-americana levanta ainda outras fortes suspeitas sobre a versão dos acontecimentos difundida por Washington. As bases do Kataeb Hezbollah atingidas pelos bombardeamentos situam-se a mais de 500 quilômetros das instalações onde supostamente terá morrido o mercenário e foram feridos os quatro soldados. É de admitir, portanto, que o grupo paramilitar iraquiano não seja responsável pela ação, como o próprio garante; e que o suposto «ataque com rockets» não tenha passado de uma provocação que qualquer reminiscência do Isis ainda seja capaz de executar.
A ação terrorista norte-americana gerou reações imediatas e espontâneas sobretudo no Iraque. O Kataeb Hezbollah é uma facção das Unidades de Mobilização Popular (UMP), milícias da Aliança para a Conquista (Aliança Fatah), do segundo maior grupo do Parlamento iraquiano1. Além disso, integra operacionalmente o exército regular do país. Com esta representatividade não espanta que se tenham formado importantes manifestações contestando o bombardeamento norte-americano e tendo como alvo a Embaixada dos Estados Unidos. Em momento algum, porém, houve invasão das instalações diplomáticas, ao contrário do que foi afirmado pelos media corporativos ecoando as mensagens de propaganda emanadas do Departamento de Estado em Washington.
Um ato de guerra
Os protestos, porém, serviram como novo pretexto para alimentar a escalada.
Invocando os focos de violência em torno da embaixada – motivo que depois desapareceu, para ser substituído por uma mentira que continua a ser repetida – os Estados Unidos assassinaram, em 3 de Janeiro, o general Qassem Soleimani, comandante da organização Al-Quds (Jerusalém) da Guarda Revolucionária do Irã. Demonstrando que conhecia ao milímetro os movimentos do general, o Pentágono enviou um drone Reaper contra o conjunto de viaturas que transportava Soleimani do aeroporto internacional de Bagdade para uma reunião com o primeiro-ministro iraquiano, Adel Abdul al-Mahdi.
No ataque morreram também o número dois das UMP do Iraque2 e um destacado dirigente do Hezbollah libanês, organização que integra o governo do Líbano.
Os Estados Unidos tinham acabado de cometer um ato de guerra contra três Estados Soberanos.
O Iraque protestou oficialmente contra o evidente ataque à sua soberania.
E o Irã prometeu reagir.
Logo acudiu a chamada «comunidade internacional», praticamente a uma voz e com uma só palavra de ordem: «contenção» – pedida a todas as partes, agressor e agredidos.
Do «nosso mundo civilizado» não se ouviu qualquer condenação do ato de barbárie.
A OTAN, pela voz do secretário-geral Stoltenberg, garantiu que não estava envolvida mas fora informada e sabia de tudo. E recomendou ao Irão, país vítima de uma agressão primária que rasgou também o direito internacional, o cuidado de «abster-se de violência e provocações».
O primeiro ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, assegurou que se tratava de «um acontecimento americano» no qual o seu país não deveria ser «misturado». E, no entanto, a operação replicou os muitos «assassinatos seletivos» praticados pelo Estado sionista, principalmente na Faixa de Gaza. Netanyahu ameaçou ainda o Irã com uma «resposta retumbante» no caso de atacar alvos israelenses.
O secretário-geral da ONU, António Guterres, falou mais ou menos do sexo dos anjos, na impossibilidade de discorrer, por uma vez, das alterações climáticas: «o caldeirão de tensões conduz cada vez mais países a tomar decisões imprevistas com imprevistas consequências e risco profundo de erros de cálculo», declarou. Concluiu ainda que «as tensões geopolíticas estão ao nível mais elevado deste século», coisa que ainda ninguém tinha percebido.
Não se ouviu, no entanto, qualquer comentário de Guterres quando o Departamento de Estado norte-americano se recusou a emitir um visto ao ministro dos Negócios Estrangeiros iraniano, Javad Zarif, que pretendia deslocar-se à sede das Nações Unidas, em Nova Iorque, para explicar os acontecimentos. Uma recusa que deveria suscitar reações exemplares da ONU, uma vez que viola o tratado celebrado entre esta organização e os Estados Unidos que regula, desde 1947, o funcionamento das Nações Unidas na cidade norte-americana.
A Rússia e a Turquia, em declaração conjunta, admitiram que as atitudes dos Estados Unidos no Médio Oriente são «ilegais».
Guerra para calar negociações
O general Soleimani não era apenas um general admirado no seu país. Ficou conhecido como brilhante estrategista do combate travado internacionalmente contra o – praticamente dizimado – Estado Islâmico e a Al-Qaeda –, em vias de sofrerem uma esmagadora derrota na Síria e em fase de transferência para a Líbia.
O assassinato de Qassem Soleimani confirma, portanto, a tendência norte-americana para ajustar contas com pessoas, entidades e organizações que combatem o terrorismo oriundo do tronco comum afegão. O que não surpreende, porque o Estado Islâmico e a al-Qaeda desempenharam – e desempenham – funções de braços armados dos Estados Unidos e da OTAN em guerras como as do Iraque, da Síria e da Líbia.
O primeiro-ministro do Iraque revelou, entretanto, que o general Soleimani se deslocara a Bagdá para se encontrar com ele próprio e entregar a resposta do governo do Irão a uma iniciativa da Arábia Saudita, na qual o Iraque serviu de mediador, e que tinha o objetivo de reduzir as tensões entre Teerã e Riade. Uma aproximação entre o Irão e a Arábia Saudita é fulcral para qualquer processo de pacificação em todo o Médio Oriente; por outro lado, seria um obstáculo à estratégia de «guerra sem fim» conduzida pelos Estados Unidos na região.
A intenção da administração norte-americana de fazer abortar negociações desenvolvidas entre Teerã e Riade através de Bagdá é muito mais do que uma simples suspeita.
A versão norte-americana sobre a viagem de Soleimani é diferente: o general iria preparar ataques contra alvos militares e interesses norte-americanos. Nem o secretário de Estado Pompeo nem o presidente Trump, em múltiplas intervenções, conseguiram ir além da formulação abstrata desta teoria, apesar de instados a apresentar pormenores. A acusação a Soleimani acaba por revelar-se uma deslavada e repetida mentira.
Vítima de uma agressão norte-americana contra o seu próprio território, o Parlamento iraquiano decidiu, por unanimidade, expulsar as tropas estrangeiras e revogar o pedido de assistência de uma coligação internacional com base na OTAN, fundada com o alegado intuito de combater o Isis ou Estado Islâmico.
A OTAN suspendeu as operações em solo do Iraque. O primeiro-ministro Al-Mahdi recebeu uma carta norte-americana – com versões em inglês e em árabe – manifestando disponibilidade para acatar a decisão. Como os textos têm conteúdos diferentes nas duas línguas, o chefe do governo do Iraque pediu esclarecimentos. Então os Estados Unidos argumentaram que a carta não deveria ainda ter sido enviada, pelo que não existe resposta oficial à posição soberana de Bagdá.
Tanto quanto se sabe, a versão oficial de Donald Trump é a de que não tenciona retirar as tropas do Iraque. O assunto vai dar ainda muito pano para mangas.
A reação iraniana
O Irão não tinha outra opção que não fosse a de reagir ao ato de guerra norte-americano. Por razões de dignidade e soberania, por necessidades internas e por lhe ser facultada pelo direito internacional.
Teerã começou por anunciar que deixa de respeitar os limites de enriquecimento de urânio impostos pelo acordo nuclear internacional 5+1, do qual os Estados Unidos já se tinham retirado.
E o circo da «comunidade internacional» voltou a reagir a preceito, argumentando que, agora sim, o Irão iria avançar para a bomba nuclear – circunstância que passou a valer propagandisticamente como se o regime iraniano já tivesse entrado no «clube atômico», pronto a «varrer Israel do mapa», como se ouviu a circunspectos analistas.
O filme começou, uma vez mais, a ser rodado ao contrário, escondendo que Israel é a única potência nuclear do Médio Oriente em condições de «varrer vizinhos do mapa», atividade em que tem muita e proveitosa experiência.
A OTAN garantiu que «não permitirá que o Irão tenha armas nucleares». Donald Trump assegurou que «o Irã jamais terá armas nucleares». Afinal, apesar dos «distanciamentos», OTAN e Trump, Trump e OTAN atuam a uma só voz.
Na madrugada de 8 de Janeiro, o Irã bombardeou então duas bases iraquianas ocupadas por tropas norte-americanas. Na sua conta twitter, o chefe da diplomacia iraniana, Javad Zafari, explicou que «a resposta foi proporcional» ao ataque sofrido e que o Irã irá se abster de novos ataques.
As narrativas em torno deste ataque, porém, estão longe de serem coincidentes e de estarem concluídas.
Circulam informações, por um lado, de que antes da operação o Irã contatou o Iraque e este país os Estados Unidos a tempo de serem tomadas precauções para evitar baixas. Alguns mísseis, inclusivamente, teriam sido preparados para evitar danos.
Existem, porém, informações completamente diferentes. O Irã teria procedido exatamente como os Estados Unidos na altura do assassinato de Soleimani: informou o Iraque praticamente em cima da execução do ataque.
A versão oficial de Donald Trump é a de que o ataque não causou baixas nas tropas norte-americanas ou iraquianas.
Trump e os seus amigos
O presidente norte-americano fez um balanço oficial dos acontecimentos num «discurso à nação» proferido na manhã (de Washington) de dia 8, quarta-feira. Anunciou novas sanções contra o Irã, além de estar «avaliando outras opções de resposta». De momento, a escalada militar parece entre parêntesis, embora permaneçam todas as circunstâncias que conduziram a esta nova fase da agressão norte-americana.
Trump pediu «maior envolvimento da OTAN», não especificando em que relativamente à situação criada, confirmando assim a «decepção» transmitida por Pompeo perante a reação da aliança ao assassinato de Soleimani. Ficou implícita, através desta abordagem, a obrigatória disponibilização de meios atlantistas para o que quer que se siga na guerra sem fim sustentada pelos Estados Unidos na região do Médio Oriente.
Donald Trump parece estar ainda a avaliar os resultados da situação, como manobra de diversão do impeachment, e as suas repercussões na campanha para as eleições de Novembro deste ano.
Além da pressão do impeachment, que em última análise será travado pela maioria republicana do Senado, Trump está sob pressão do Congresso por não ter comunicado previamente a operação contra Bagdá e por não dispor de qualquer autorização válida para travar uma guerra contra o Irã. Alguns congressistas consideram este fato como a razão de maior peso para um impeachment de um presidente.
Apesar da agressividade, o discurso de Trump soou como recuo: está colocado perante a exigência de retirada das tropas do Iraque, as pressões do Congresso, a multiplicação de manifestações em dezenas de cidades do país contra a guerra, a denúncia das suas mentiras sobre Soleimani na própria comunicação social dominante e também a possibilidade de as versões sobre avultadas baixas militares ganharem terreno se forem, de fato, fundamentadas.
O ataque cerrado a Obama no seu discurso, personificando na circunstância o Partido Democrático, confirma que a agressão contra o Irão integra os planos de Donald Trump para tentar retomar a iniciativa frente ao impeachment e desenvolver a campanha eleitoral.
A campanha «América primeiro» parece ter derivado para as campanhas de guerra como suporte da propaganda político-eleitoral, ao leme das quais, sem horizonte estratégico, vão Pompeo e os seus cristãos sionistas, os fundamentalistas evangélicos de Pence e as manobras sionistas do genro de Trump, Jarred Kushner, em sintonia absoluta com o primeiro-ministro de Israel.
Estando Trump e Netanyahu ambos acossados internamente, tanto em termos políticos como de justiça, a associação de circunstâncias não joga a favor da redução de tensões mas sim da sua exploração ao ritmo das batalhas político-jurídicas que se seguem nos Estados Unidos e em Israel.
O cenário mundial está assim refém das necessidades e interesses próprios dos Estados Unidos e seu satélite israelense – ou vice-versa – em plena guerra intercapitalista. Enquanto a União Europeia prega a «contenção» ao Irã; e o governo português, na velha tradição de bom e respeitador aluno, esteve mudo perante a manobra terrorista que consumou o assassinato do general Soleimani mas já teve voz para condenar o ataque de retaliação conduzido pelo Irã. Comentários dispensam-se.
As duas últimas semanas foram exemplares da situação arrepiante a que a chamada «comunidade internacional» deixou que o mundo fosse conduzido pelas mãos de sociopatas incuráveis.
1. Para compreender a posição da Aliança Fatah no contexto das forças políticas iraquianas, ver a entrada «Council of Representatives of Iraq», na Wikipedia.
2. Importa referir que estas milícias, incorporadas por voluntários muçulmanos (xiitas e sunitas), cristãos e yazidis, constituíam, para os terroristas do Daesh e Al-Qaeda, temíveis adversários, e que participaram, como forças de choque, nas mais importantes batalhas pela libertação do Iraque e da Síria do jugo fundamentalista. Por mais de uma vez, como em Setembro de 2018, as UMP acusaram os EUA de bombardearem as suas bases e destacamentos a meio de ofensivas contra os terroristas tafkiri, objetivanente protegendo estes.