Fascismo: o modelo e as resistências da história

imagempor Marcos A. da Silva

Materialismo Histórico Geográfico

O modelo clássico de fascismo implicava violência e consenso, como demonstrou o livro do italiano Gianni Fresu (Nas trincheiras do Ocidente: lições sobre fascismo e antifascismo. Ponta Grossa: Editora da UEPG, 2017). É certo que a própria ideia de “modelo clássico” deve ser tomada cum grano salis, se lembramos uma crítica de Palmiro Togliatti às interpretações de Trotsky do início dos anos 1930 acerca do desenvolvimento do fascismo alemão — um cuidado, deve-se dizer, que não está ausente no livro de Fresu.

Para o grande dirigente do PCI, que não por acaso intitulava seu artigo Contra as falsas analogias entre a situação alemã e a situação italiana (Sul movimento operaio internazionale. Roma: Riuniti, 1964), o organizador do Exército Vermelho esperava um tanto mecanicamente uma nova marcha sobre Roma — e, tal como a primeira, marcada por forte presença dos setores médios — para definir o governo alemão do início daquela década como fascista. (1)

Eram os anos do governo von Papen, não ainda o de Hitler, é preciso lembrar. Mas Togliatti fazia notar que este era já um governo que realizava “a ditadura fascista com um ritmo acelerado”, pois conduzia a “uma campanha de redução dos salários”, desmobilizava “o sistema de assistência social e contra a desocupação”, e se esforçava “para cobrir esta sua política antioperária brutal com uma máscara de demagogia social que parece ser inspirada naquela de Mussolini e seus hierarcas”.

Como se vê, não é difícil reconhecer elementos de continuidade com o que agora ocorre no Brasil sob Bolsonaro. Mas a despeito desta evidência, é preciso notar que a definição de Togliatti aqui transcrita não aborda a questão da hegemonia, ou seja, do consenso, com o papel que terminaram por desempenhar neste campo os meios de comunicação (rádio, cinema) e o próprio partido fascista, bem como de uma série de direitos para uma parte dos trabalhadores, organizados pelo Estado fascista (recorde-se a Carta del Lavoro).

Este é um processo que se desenvolve na Itália fascista apenas na segunda metade dos anos 1920 — após o assassinato do deputado Giacomo Matteoti, que havia denunciado as fraudes e a violência que envolveram a vitória de Mussolini nas eleições de 1924 — , marcando a diferença entre o que seria o governo e o regime fascista.

E eis onde o governo Bolsonaro parece pretender chegar com as medidas na área da cultura e educação no final de 2019, quando deu inicio a um programa de Olavo de Carvalho na TV pública — o “Brasil Paralelo”, a ser exibido na TV escola, administrada pelo MEC — e agora, com o vídeo do Secretário Nacional de Cultura, Roberto Alvim, plagiando estética, discurso e programa da propaganda nazifascista de Aldolf Hitler, como se sabe comandada pelo ministro da propaganda Joseph Goebbels.

Ou seja, intenções há, e são bem claras. O historiador italiano Angelo D’Orsi, em recente turnê pelo Brasil, assinalou justamente isto para falar dos tempos atuais: há o fascismo histórico, este foi superado; mas há o fascismo como modelo, a inspirar uma cultura reacionária que busca reemergir.

A questão que fica, todavia, é: o modelo poderá triunfar novamente? A julgar pelas reações negativas que a fala do Secretário da Cultura está produzindo, vindas até mesmo de representantes da direita, talvez fosse melhor observar as notas de inspiração hegelianas que Gramsci escreveu ao se debruçar sobre as fases de regressão histórica: “no movimento histórico não se volta nunca atrás”, ou ao menos “não há restauração ‘in toto’”, escreveu o sardo nas notas Notas sobre a política de Maquiavel.

Com efeito, as especificidades que convidam a pensar nas dificuldades de transposição mecânica de modelos não são só geográficas, mas também históricas — isto é, dizem respeito às resistências que lhes impõem a própria evolução, o progresso da história.

E não importa que a gota d’água para a demissão do Secretário da Cultura tenha sido a posição da comunidade judaica brasileira, que Bolsonaro pretende ter como sua base de apoio. A posição da comunidade judaica diante de uma questão como esta é parte do consenso — certamente sob ameaça com o crescimento da cultura de extrema-direita e a investidura de um governo de igual orientação política — de que o que ocorreu na Alemanha da primeira metade do século passado não pode se repetir.

Não obstante, se se trata de recorrer ao sardo que sofreu na própria pele as agruras do fascismo, uma lição é preciso reter ao tratarmos do tempo histórico — que jamais se movimenta sem lutas, como nos recorda uma conhecida frase de Marx. Mais do que agarra-se à certeza binária que nos convida a um comportamento ingenuamente otimista ou então catastroficamente pessimista, trata-se, antes, de pôr em relação dialética estes dois sentimentos, sendo ao mesmo tempo “pessimista com a inteligência, mas otimista com a vontade”.

Não passarão!

Nota:

(1) Togliatti afirma que ao enfatizar os setores médios, Trotsky termina por negligenciar o papel do capital financeiro. Um texto de Trostky escrito no final de 1930 todavia não confirma essa crítica, já que o organizador do Exército Vermelho parece fazer explicita referência ao papel do capital financeiro no fascismo (a “grande burguesia”, escreve). De qualquer modo, do ponto de vista metodológico, permanece válida a advertência de Togliatti quanto às falsas analogias. O texto de Trotsky aqui referido é “O giro da Internacional Comunista e a situação alemã”, e está publicado em Trotsky. L. Como esmagar o fascismo. São Paulo: Autonomia literária, 2018.