A caminho dos altares*

A indústria cinematográfica hegemónica (ou seja, a dos EUA) há muito participa activamente do esforço de reescrita e de falsificação da história. Agora é a vez da srª Thatcher. O recente filme é um autêntico passo para a beatificação laica da senhora, para a sua condução a imaginários altares. Pelo que parece necessário revisitar a verdade histórica. E vacinarmo-nos assim contra o vírus da selvajaria neoliberal que ele de facto transporta e que pretende, novamente, glorificar.

1. Não recordo, nem isso é que mais importa, quem há dias, falando na TV, com razão ou sem ela nomeou as três figuras da vida pública internacional que mais decisivamente contribuíram para a derrota da URSS. Lá estava, no lugar de honra que sem dúvida merece, João Paulo II, o papa que sucedeu à morte inesperada e sem dúvida providencial de João Paulo I. Uma outra figura do apontado triunvirato seria, se a memória não me engana, o presidente Reagan, esse santo homem que decerto está agora sentado à mão direita de quem lhe terá inspirado as decisões, provavelmente partilhando a mesma nuvem com o pontífice polaco. A terceira personalidade desse triunvirato terá sido Margaret Thatcher. A invocação desta santíssima trindade foi feita a propósito do filme britânico «A Dama de Ferro», agora também nos ecrãs portugueses, muito moderadamente aplaudido pela crítica cinematográfica, que obviamente é quem sabe de tais coisas, mas já candidato pelo menos a um Óscar de Hollywood, o que desde já lhe confere algum estatuto de excepcionalidade e a atenção do público. A partir dele e do seu já conseguido êxito mediático, decorre um movimento de reeditada admiração pela Thatcher e, inevitavelmente, pelo thatcherismo, isto é, pela brutalidade política a que a antiga primeira-ministra se aplicou e de que se tornou símbolo. É, mais uma vez, a utilização do cinema para propagandear junto de larguíssimas massas uma acção político-ideológica verdadeiramente sinistra cujas consequências, quer interna quer externamente, estão longe de se terem dissipado. Só por ingenuidade extrema, tão extrema que pode ser confundida com um grau zero da perspicácia, é que se pode crer que a produção deste filme não teve nada a ver com o objectivo de recuperar um pouco o prestígio do neoliberalismo puro e duro de que o chamado thatcherismo foi afinal um pseudónimo. E é muito claro que a promoção do filme na TV ou fora dele resulta em segundo grau na promoção do capitalismo na forma que a Thatcher lhe conferiu e que tão maus frutos produziu não apenas para a Grã-Bretanha mas também para o mundo inteiro.

2. É sabido por quem o queira saber que a obra da Thatcher teve como suposto título de maior glória a apregoada derrota dos sindicatos britânicos e o reforço drástico do poder do capitalismo britânico. Passados vinte anos, a situação económica e financeira do reino é uma desgraça, embora não uma desgraça que a todos toque por igual, bem longe disso. Os súbditos mais pobres de Sua Graciosa Majestade estão mais pobres que nunca, com destaque nesta infeliz matéria para os milhões de imigrantes de primeira ou seguintes gerações sobretudo originários dos territórios que em tempos integraram o Império, mão-de-obra barata, desprotegida e discriminada, mas sem que a sobreexploração thatcheriana se limite a eles. A dívida externa britânica é enorme e o défice da balança comercial é uma calamidade sem remédio à vista. Em dado momento, aparentemente para criar um factor de diversão que afastasse as atenções da sua gestão iníqua e desastrosa, a criatura, isto é, a Thatcher, decidiu apostar na ressurreição de anacrónicos orgulhos imperiais e provocou a chamada Guerra das Malvinas, uma pequena tragicomédia colonialista de todo imprópria do tempo em que já se vivia. Na verdade, seria útil e muito adequado que, aproveitando esta notoriedade suscitada pelo filme, os media se aplicassem a fazer o arrolamento de todas actividades nefastas praticadas pela Thatcher, e repare-se na delicadeza com que me refiro aos seus crimes. Entretanto, como é de regra ocorrer aos que têm ideias estreitas e poderes largos, Margaret era teimosa e não raramente agressiva, o que lhe valeu o cognome de «dama de ferro», apodo que deliciou os seus apoiantes por sugerir uma qualificação de firmeza, como se a firmeza na prática de maldades pudesse ser uma virtude. O facto é que o seu desgraçado exemplo e a sua ostensiva aliança com o inominável Reagan correram mundo, mascararam-se de mérito e tiveram a ver com a crise que ainda hoje perdura e desgraçou milhões um pouco por todo o planeta. Chega agora o filme como um passo para a beatificação laica da senhora, para a sua condução a imaginários altares. Pelo que parece necessário revisitarmos a verdade histórica. E vacinarmo-nos assim contra o vírus que ele de facto transporta.

*Publicado em Alentejo Popular, 18 de Fevereiro de 2012

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