França: deter a marcha do capital para o neofascismo

imagemRémy Herrera

ODIARIO.INFO

Na França o governo Macron e os interesses que representa reagiram à pandemia com escandalosa desumanidade. Foi o país em que mais claramente foi assumida a orientação de deixar morrer uma parte dos contaminados, num sistema de saúde profundamente fragilizado por décadas de desinvestimento. Assumiram a pandemia como oportunidade para ir mais longe na destruição de direitos cívicos e laborais. E preparam o quadro das eleições presidenciais de 2022 de tal forma que os franceses tenham de optar entre a peste e a cólera: entre Macron ou Le Pen.

Surrealista. Os acontecimentos que, a partir de meados de março de 2020, sob o ataque do coronavírus, fizeimagemram naufragar um país inteiro, e outros com ele, têm algo de surreal. Menos pela ocorrência da pandemia do que pelas escolhas de política económico-sanitária que foram feitas. O risco de uma epidemia global era há anos anunciado por muitos cientistas especializados – à imagem da ameaça ligada a eventuais catástrofes naturais (ou nucleares), por exemplo, previstas por outros investigadores … Se a contagem diária de mortes causadas pelo vírus horrorizou, se o afluxo aos hospitais de pacientes infectados angustiou, a “gestão da crise do covid-19″, essa, provocou repulsa. As escolhas feitas no topo da pirâmide de poderes estavam carregadas de consequências, extremamente graves, simplesmente monstruosas. Porque se quis aceitar como normal o fato de que as equipes médicas, despojadas ex ante dos meios para exercer a sua profissão – que consiste em salvar vidas – foram forçadas ex post a fazer a triagem entre os pacientes para os quais tudo seria tentado a fim de sobreviverem e os outros, idosos, vulneráveis, chamados “polipatológicos”, “comórbidos”, ou seja, efetivamente aqueles que, pelo seu próprio estado de saúde, necessitariam de mais cuidados. Essas escolhas revelaram, quão dramaticamente, a imoralidade cortadora das principais autoridades do país, políticas evidentemente mas também, e acima de tudo, económicas – uma vez que a vassalagem dos primeiros em relação aos segundos, do interesse geral aos interesses de uma capelinha de grandes acionistas rapaces e ferozes, além de vergonhosamente antipatrióticos, acaba por colocar em risco uma humanidade: depois de arruinar o mundo, desesperar os nossos jovens, degradar as nossas condições de vida e de trabalho, eis que quereriam abandonar os nossos mais antigos.

Com o espanto e a incredulidade dissipados, largas faixas do povo francês perceberam então que seus dirigentes não lhes prestariam qualquer ajudaria numa situação semelhante – excepcional, certamente, mas onde o indivíduo sente como nunca a necessidade vital de ser protegido. Rapidamente perceberam que é contra eles, e não contra um vírus, que os representantes das classes dominantes foram “para a guerra” e que, de fato, não faziam parte desse “nós” de que E. Macron havia falado no seu discurso de 16 de março. O nosso “nós”, o dos governados, foi reduzido ao limite, forçado a reconhecer que a sociedade em que estamos amuralhados é a do cada um por si, do todos contra todos e do salve-se quem puder. Uma sociedade na qual os governantes e os poderes aos quais são devotados estão em posição de decretar que não há lugar para todos nós – não há lugares que cheguem no “mercado” do trabalho nem no da habitação, não há que chegue para ganhar um salário que lhe permita viver dignamente ou para se expressar democraticamente, nem mais lugares na fila de espera das entregas de máscaras cirúrgicas ou de serviços de reanimação em tempos do coronavírus. Esta sociedade tem um nome. Esse nome é capitalismo.

No final de fevereiro, muito poucas dúvidas subsistiam entre os microbiologistas, antes de mais os virologistas, mas também os epidemiologistas, infectologistas e outras vozes autorizadas: a inevitabilidade da pandemia estava cientificamente estabelecida. Fazia quase um mês que a OMS declara “emergência mundial de saúde pública”; mais de um mês e meio que os investigadores chineses tinham identificado o vírus, descoberto (ultra rapidamente) um teste de despistagem, publicado a sequência genética do novo agente infeccioso. Em 6 de março, “gozando a vida a toda a força”, o presidente francês e sua esposa saíam à noite para aplaudir a representação de uma peça de teatro (que coloca em cena um chefe de Estado recém-eleito, mas doente, dialogando com um psiquiatra [lapso revelador?]). Passeando nos Champs Élysées, sob os flashes crepitantes, os pombinhos novamente ignoravam o perigo em 9 de março. A mensagem endereçada aos franceses neste momento tão singular? Divirtam-se! Cinco dias já desde que o coordenador da primeira missão da OMS a Wuhan, o dr. Bruce Aylward, canadense, insistira no New York Times (4 de março) sobre a extraordinária gravidade da situação.

A 29 de fevereiro, um dia após a transição do país para o “nível 2″ e a recomendação da OMS de mobilizar “todo o governo” para controlar a pandemia, a agenda do Conselho de Ministros “excepcional” dedicado ao coronavírus foi virada do avesso pelo executivo de um outro pequeno coroado que estava visivelmente mais preocupado em respeitar a agenda de demolição das conquistas sociais um pouco menos ditada pelo MEDEF: demolir a bulldozer modelo 49.3 o sistema de pensões, proibir todas as manifestações e, para que o ruído do ariete antidemocrático fosse ouvido, a “gestão à francesa” da pandemia de covid-19 foi catastrófica. De uma ponta a outra. Os desordenadores da França entrarão na história pela porta antes usada por criminosos e traidores. Tinham já confirmado a sentença de execução por garrote do hospital público, proferida pelos seus antecessores, fechando leitos, pagando o pessoal à pedrada, precarizando os estrangeiros, arcaizando as instalações, transformando a saúde num supermercado. Tinham deslocalizado a produção de equipamentos e medicamentos, entregue a investigação à sede de lucro dos laboratórios farmacêuticos privados, passado a verdade científica pela peneira do cálculo dos lucros. Era isto suficiente?

No momento da “crise do Covid-19″, decidiram conscientemente, cinicamente, criminalmente, não proteger a população e não tratar os doentes – coisa absolutamente incrível. “Se tens sintomas de coronavírus, talvez estejas doente. Nesse caso… jingle… fica em casa!” Foi essa foi a alucinante indicação divulgada pelas autoridades de saúde. Que não consideraram útil realizar testes em larga escala, nem de constituir a tempo as indispensáveis reservas de respiradores, entubadores, máscaras, óculos de proteção, batas, luvas, gel hidro-alcoólico. Sem mencionar os tratamentos provocando qualquer, aparentemente favorável, contra o coronavírus – em simultâneo com indigentes polémicas de jornalistas autoproclamados especialistas esquecidos de preencher o espaço “conflitos de interesse”. Os médicos e suas equipes, enviados para a frente de combate por um Chefe dos exércitos brincando com eles como com soldados de chumbo vestidos com sacos de lixo e com máscaras costuradas em casa com trapos, nem sequer tiveram sedativos suficientes para aliviar os moribundos, os infelizes “não reanimáveis” que não tinham obtido um “score de fragilidade” correcto … Em vários lugares, nenhum equipamento de proteção foi atribuído aos serviços de psiquiatria – deliberadamente? Para não falar dos lúgubres EHPAD, onde numerosas direções rapidamente cessaram de enviar as contagens de mortos às instâncias “competentes”. No terreno? Faltava-nos tudo, exceto a coragem. Hurra para os heróis!

Lá embaixo, os confinados. Que só puderam sobreviver graças aos trabalhadores dos sectores essenciais, também eles heroicos: agricultores, operários das indústrias de agroalimentares, caixas dos armazéns, motoristas de entregas, trabalhadores da manutenção, trabalhadores de limpeza, recolha de lixo, agentes dos serviços públicos, tantos outros invisíveis e anônimos … E lá em cima? Os imbecis completos! Por entre confetes estatais espalhados aqui e ali, resíduos dos bacanais e das orgias do neoliberalismo celebrando, a cada dia desde há quase 40 anos, a festa dos multimilionários!

Durante a pandemia, os líderes do grandes patronato francês mostraram-se abaixo de tudo. Não sonharam em mais nada senão em dar-nos cabo da vida, nas suas miniditaduras de patrões-capatazes, não pensavam, assim que o confinamento foi decretado, senão em recolocar a todos sob a palmatória da exploração. Aqueles que quase tinham acabado por convencer a maioria dos gentis organizadores da “esquerda” de que a classe trabalhadora e a nação tinham desaparecido viram-nos ressurgir com mais vigor do que nunca! Aqueles que nos diziam que poderiam por meio de magia passar sem nós para criar riqueza ficaram subitamente em pânico quando sem nós o ciclo do capital, a sua bomba de dinheiro, ficou bloqueado. Aqueles que, para fazer esquecer que a nação, nascida entre nós, é o quadro da luta de classes e um baluarte contra sua globalização selvagem, a lançam de novo como pasto à extrema direita. A Airbus reabriu rapidamente suas fábricas e, assim, privou de máscaras (FFP2) os prestadores de cuidados que as não tinham. Sanofi, priorizando os Estados Unidos, humilhou o Tesouro que, entretanto, lhe havia assinado grossos cheques.

A Renault de depois anunciou os seus milhares de despedidos, encaixando milhares de milhões de dinheiro público. A Peugeot pós-covid preferiu recorrer a “destacamentos” pontuais do que a trabalhadores temporários locais. B. Arnault e Vuitton repetiram o filme de Notre-Dame, fazendo-se um belo golpe publicitário. O Medef, que durante décadas pressionou pela flexibilização e precarização dos contratos, que descomprometeu as empresas do financiamento da Segurança Social e encorajou as deslocalizações, é sem dúvida e imensamente, responsável não apenas pela desindustrialização do país – o que já nem sabe mesmo fabricar um escovilhão (um cotonete flexível!) ou paracetamol – mas também pela dramática penúria que reinou. E que o governo dissimulou.

Agradecemos também aos “heróis da primeira linha”, dispensando-os assim que o confinamento foi levantado. Tínhamos visto patrões arrumar ou quebrar as máquinas das últimas fábricas de máscaras em França; vemos o naufrágio de 300 PMEs do sector que ingenuamente acreditaram na palavra de Macron. Não sabiam elas que a “Kreatur” dos ogros das finanças só diz a verdade apenas aos banqueiros, que, tão desprovidos de escrúpulos como o seu elfo doméstico, não alimentaram a fraude? Nenhuma dúvida sobre isso. Mais cedo ou mais tarde chegará a hora da justiça social em que todos esses grandes accionistas serão julgados por alta traição, condenados, expropriados. Ainda vai demorar algum tempo para que as contas sejam prestadas e os privilégios sejam abolidos, mas o escândalo revolta de tal modo que chegará em breve o momento em que encontraremos forças para os fazer regurgitar o que nos roubam, ensinar boas maneiras aos riquíssimos que não se importam com nada, ensinar aos novos aristocratas bolsistas e à sua má frequência dos paraísos fiscais a comportar-se bem, a viver em sociedade. Educar os detentores da violência dita “legítima” que, na nossa República, não se sufocam as pessoas, não se lhes dá pauladas, não as cegamos, não se arrancam nem as mãos nem os pés nem nada, e também não se diz “bicot”.

Entretanto, os trabalhadores resistiram em toda a França, pelo direito à reforma, o desengate, a apresentação de queixas: nos hospitais públicos (como quando da mobilização de 16 de junho); na indústria, a automóvel e seus subcontratados (Valeo, Faurecia, Burelle), a aeronáutica (Daher, Safran), as infraestruturas ferroviárias (Alstom), os estaleiros navais (Atlântico), a indústria siderúrgica (ArcelorMittal), a embalagem (Allard); nos serviços (Carrefour, Amazon, La Redoute, Deliveroo, Uber Eats, La Poste, etc.). Entre muitos outros. E sempre será necessário resistir, lutar com todas as nossas forças contra a Blitzkrieg hoje desencadeada pelo patronato com o objectivo de varrer o que resta das ruínas do Código do Trabalho, sob o pretexto de “salvar a economia”. Um patronato acompanhado pelas lideranças sindicais mais fracas, colaboradoras de classe e eurólatras (que terá a CGT a ganhar se permanecer entre eles se não se perder?), e apoiado por um executivo com prerrogativas constantemente reforçadas, mas cujo poder os nossos concidadãos já não consentem, enojados com tantas submissões, traições, corrupções, repressões.

Na rampa em que desliza precipitando-a nas glauquíssimas águas das candidaturas à Câmara de Paris, a ex-ministra da Saúde Agnès Buzyn largou que sabia o que estava a acontecer e como os teria informado a todos – disse ter avisado o chefe de Estado desde 11 de janeiro, avisou depois o primeiro-ministro no dia 30 que o pico da epidemia era esperado em França por volta de 15 de março – todos sabiam. Invocar a desenvoltura de Emmanuel Macron, um pouco menos penosa de suportar que a de um D. Trump ou B. Johnson, é importante: recorda que foram os poderes do dinheiro que vampirizam as nossas economias que fizeram passar o elenco de actores da ópera bufa em que a democracia burguesa se tornou. Evocar a incompetência de tal ou tal eleito ou ministro tem também a sua importância, mas não são eles apenas os para-raios que cobrem as operações de seus senhores, os verdadeiros, os accionistas do Leviatã Financeiro e seus impérios econômicos que brincam com o planeta como o globo de plástico do ditador Adenoïd Hynkel, governam as nossas sociedades, maltratam os nossos serviços públicos, escravizam as nossas consciências, controlam todos os aspectos da nossa existência individual. Esses grandes proprietários do capitalismo haviam prometido opulência; condenam-nos à escassez organizada – a que atravessámos durante a pandemia do coronavírus – e à crise sistêmica – a pior depressão económica desde a aproximação da Segunda Guerra Mundial. Glorificaram a liberdade, mas sequestram o trabalhador, mantido em cativeiro desde a infância até a morte na sua máquina de ganhar dinheiro. Sacralizam o indivíduo, mas aniquilaram-no brutalmente para impor seu arrepiante cálculo do “valor econômico” de cada ser humano como critério decisivo na questão de saber, uma vez que prevalece a falta de recursos e o fatalismo, se este poderá viver e aquele terá que morrer. Em cima da falência made in France, o eugenismo generalizado como um projecto do capital!

Não nos enganemos. Os assassinos estão instalados no topo, acima de um Estado cujos fios manipulam para nos lançar uns contra os outros, nos dividir, nos domesticar a ponto de já não reagir à visão de pessoas sem-abrigo deitadas à frente de um prédio desocupado, de migrantes engolidos pelas ondas, de famílias bombardeadas em países distantes por soldados bem da nossa casa. O sistema que eles querem ver eternizar-se – o capitalismo – é o que os fascistas vieram fortalecer em 1936, vociferando “viva a morte!” e “que morra a inteligência!”. Parece que os tiranos que dominam aqueles que hoje nos dirigem estão determinados a marchar para o neofascismo para perdurarem. Que eles tenham mesmo decididos que, depois do vírus, para o povo francês, seria ou a peste ou a cólera: se acontecesse cair uma chuva de tomates sobre o comediante E. Macron, conceder-nos-iam o direito de eleger a benjamim das meninas Le Pen. Frações das classes dominantes já efetivamente o designaram! Estes todo-poderosos possuindo totalmente – e controlando totalitariamente – o aparelho de informação e comunicação, além de um influente espectro de redes sociais, obviamente que ainda apoiam, à distância de um braço, o atual ocupa do 55 rue du Faubourg-Saint-Honoré em Paris. Mas esses patrocinadores financeiros esforçam-se doravante de enclausurar todo o espaço da luta de classes no quadro dos conflitos internos entre as classes dominantes – das quais Marine Le Pen faz parte – a fim de monopolizar o debate político e de situar o seu centro de gravidade entre a direita e a extrema direita. Como nos Estados Unidos, onde “globalistas” (Biden) e “continentalistas” (Trump) se esfarrapam entre si.

Retiram também das suas gaiolas um bando de editorialistas e de debatedores mais reacionários uns que os outros, mostrando as presas, mordendo, sedentos de sangue, transmitindo racismo. Tendo como venadores excitando os cães de caça, odientos censores políticos capazes de fazer empalidecer a ORTF. Os grandes argentários deste regime tinham conseguiu eleger E. Macron em 2017 no final de uma campanha publicitária relâmpago, entre televendas e telerrealidade. Mudam de método com vista à eleição presidencial de 2022. Até ao escrutínio decisivo eles andarão atrás deste povo rebelde, o perseguirão com as bestas imundas do neofascismo como numa caçada corrida, à corneta e ao grito cujo objetivo é capturar por exaustão.

Então, o que fazer nestas condições? Vai ser necessário sermos mais resistentes, muito mais combativos, passar da defensiva à ofensiva, para podermos esperar libertar-nos dessa armadilha dilemática, para que o nosso “mundo do depois” não seja a sua “ordem nova” – da qual nasceu em 1972 o FN – para que o slogan de “união nacional” do LaReM não prefigure o advento do RN, como “revolução nacional”, ressuscitando o pior da história do país. E para vencer, teremos que convencer. Convencer que, se queremos fazer descarrilar a máquina infernal da crise sistêmica e das guerras imperialistas, da destruição dos indivíduos, das sociedades e do meio ambiente, do agravamento das desigualdades, do racismo e do patriarcado, da bestificação cultural, da regressão dos direitos civis e democráticos, teremos que supera de vez o capitalismo e, de fato, empreender uma transição socialista.