De demônios e desaparecidos
Pra mim, uma das palavras mais misteriosas é desaparecimento. A condição do desaparecimento é estar desaparecido. Desaparecidos são os brasileiros que um dia tiveram voz, eram visíveis, amaram, choraram as dores da vida, mas também gemeram sob a tortura daqueles que um dia lançaram o manto de suas trevas sobre o país.
Seus algozes são a pior espécie de demônio. Os demônios das religiões são seres etéreos, necessitam “encarnar” nas almas para expressarem seu ódio, covardia, inveja, perversidade e egoísmo. Os torturadores, não. Os torturadores são demônios completos porque já encarnam esse mal absoluto em corpos próprios. Eles podem vestir uma farda, por exemplo, e proclamarem que querem te aniquilar para salvar a humanidade de uma certa ideologia, garantir a ordem e a segurança.
Esses demônios são humanos, é bom lembrar. Estão por aí, nos parlamentos, na mídia, nas polícias, nos hospitais, nas universidades. Nas ruas, com seus amigos. Nas casas, junto aos seus familiares. Há que aprender a conhecer a cara e ouvir a voz desses seres. Assim como o anjo caído do céu, eles mentem, deturpam, tentam enganar. Alegam, por exemplo, que uma lei pode, ao mesmo tempo, anistiar algozes e vítimas. Afirmam, por exemplo, que nos anos 60 e 70 agiram em defesa da pátria, da democracia, da cristandade, da sociedade.
Não há remorso nem arrependimento nos demônios humanos. Principalmente, não há medo. Eles não são assombrados por terrores noturnos, ao deitarem. Nenhum grito de dor, de misericórdia, nenhum gemido de aniquilação ressoa em sua alma. Não há, pairando sobre suas cabeças, o perigo da ira de Deus pela espada do arcanjo Miguel. Não há porque eles próprios, como os nazistas, consideram-se purificadores, aliados de Deus no extermínio de comunistas e outras “ameaças”.
Os demônios tentam tornar esquecimento o desaparecimento. Os demônios caídos gemem de inveja desse humano dom de matar duas vezes um ser, com um só golpe. É por isso que, de suas bocas fétidas, de suas idéias mortas, todos os dias tentam desaparecer a história, uma vez que aniquilaram dezenas de vidas.
Se tiverem êxito, todos nós seremos esquecidos e desaparecidos.
*Roberto Numeriano é professor universitário, jornalista, escritor e militante do PCB.