Tortura durante a ditadura, relato de DILEA FRATE
Dois homens entraram em casa e me sequestraram, juntamente com meu marido, o jornalista Paulo Markun. No DOI-Codi de São Paulo, levei choques nas mãos, nos pés e nas orelhas, alguns tapas e socos, sendo inquirida sobre colegas de universidade e suas supostas ligações com o PCB. Durante o tempo em que isso aconteceu, eu usava um capuz preto que sufocava. Num determinado momento, eles extrapolaram e, rindo, puseram fogo nos meus cabelos, que passavam da cintura. Imediatamente retirei o capuz, apaguei o fogo com ele e encarei meu algoz, um senhor com rosto de pai de família e uns 60 anos de idade. Os torturadores auxiliares perguntaram: ‘E agora, acabamos de vez com ela?’. Tornei a olhar para o mais velho nos olhos e falei: ‘Isso que vocês estão fazendo comigo é um absurdo, sou católica e vou batizar minha filha no domingo’. E perguntei: ‘Você acredita em Deus? Você tem filhos?’. Os mais jovens avançaram sobre mim, e o mais velho disse: ‘Deixa’. Logo depois, fui jogada numa cela com outras mulheres. Lembro-me de uma camponesa que estava com o rosto desfi gurado pela pancadaria. Ela não conhecia ninguém ali, nem sequer sabia o que era comunismo. Foi parar lá porque tinha se relacionado amorosamente com um militante. Ao ver aquilo e ouvir o relato das outras presas, muitas estupradas por vários homens e objetos, como garrafas e pedaços de pau, fi quei ainda mais apavorada. Ninguém se lembrou de mim por um dia inteiro e, na manhã do domingo, o carcereiro me disse: ‘Tire o macacão e vista sua roupa’. E saí de lá ao lado do Paulo. Pensei que seria punida pela minha ousadia de encarar o torturador. Mas não foi o que aconteceu. Os homens do Exército nos levaram direto para a igreja onde aconteceria o batizado. No final, meu pai convidou todos para ir à nossa casa ‘comemorar’. Lá, os homens deixaram as metralhadoras no chão da sala, almoçaram, beberam (muito) whisky e vinho. Paulo contou ao pai dele o que estava acontecendo e listou todos os nomes que estavam marcados. No fi nal da tarde, retornamos ao DOI-Codi, levando cobertores, sabonetes, chocolates e objetos de uso pessoal. Naquele dia teve festa na cadeia.
DILEA FRATE, ex-militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), era estudante de Jornalismo quando foi presa no dia 17 de outubro de 1975, em São Paulo (SP). Hoje, vive no Rio de Janeiro (RJ), onde é jornalista e escritora.