Estoques alimentares, biocombustíveis e fome
Prabhat Patnaik [*]
A tentativa do governo Modi de “explicar” a queda da Índia do 94º para o 101º lugar no índice mundial da fome entre 2020 e 2021 – uma classificação bem abaixo da dos vizinhos Paquistão, Nepal ou Bangladesh – questionando a “metodologia” do índice, é bastante simplória. Mas ainda mais chocante é a sua total incapacidade de ver a razão por trás da fome aguda que grassa no país.
Precisamente quando a Índia desliza no índice da fome, o país tem mais estoques de cereais do que o requerido de acordo com as “normas” oficiais. De fato, em 1º de setembro de 2021, o FCI tinha 50,2 milhões de toneladas de estoques de cereais, a comparar com a “norma” exigida de 26,2 milhões de toneladas. A conclusão óbvia a se retirar deste fato é que é a falta de poder de compra nas mãos do povo que restringe a sua capacidade de comprar alimentos em quantidades adequadas e explica a sua fome aguda. Mas a conclusão que o governo retira deste fato é de que o povo não pode passar fome se houver estoques alimentares excedentes e portanto o índice da fome deve estar mentindo.
Um excedente de estoques de cereais só é “excedente” em relação a um dado nível de preços e de poder de compra (em termos monetários) detido pelo povo. O povo pode estar morrendo de fome apesar da existência de um tal “excedente”. Assim, a solução para isso seria ou uma redução de preços ou um aumento do poder de compra do povo. De fato, numerosos economistas e organizações da sociedade civil, para não mencionar partidos políticos mesmo fora da esquerda, têm instado o governo a aumentar o poder de compra através de transferências para as mãos do povo, e a financiar tais transferências mesmo através de um aumento do déficit orçamentário, se necessário. Tal ação não pode exacerbar a inflação numa situação de “excedentes” de estoques de cereais alimentares e de existência generalizada de capacidade industrial não utilizada. Ao contrário, pois a inflação atualmente verificada na economia deve-se basicamente à tentativa do governo de aumentar as receitas através de aumentos dos impostos indiretos e não devido a qualquer excesso de procura. Assim, a inflação seria reduzida em vez de aumentada pela ampliação do déficit orçamentário e pela recusa dos aumentos dos impostos indiretos.
Mas, tal como um estudante ingênuo que segue obedientemente as instruções do seu mestre, o governo Modi está determinado a agradar ao capital financeiro internacional através da manutenção de déficits orçamentários em níveis que este último considere “aceitáveis”, evitando assim quaisquer transferências para o povo. Em consequência do magro poder de compra nas mãos do povo, temos a combinação de três fenômenos aparentemente incompatíveis: fome aguda, excesso de estoques de cereais alimentares e ainda uma inflação desenfreada. E esta combinação parece impossível para um governo tão destituído de compreensão que sequer pode aceitar a possibilidade da sua ocorrência. Portanto, ele simplesmente nega a existência de fome aguda. Por detrás desta negação não está apenas o típico faz-de-conta do [partido] BJP (“não pode haver fome aguda se o Grande Salvador estiver ao leme”). Há, além disso, num sentido muito real, uma total falta de entendimento da simples teoria econômica.
De fato, ao não reconhecer a prevalência da fome, o governo está fazendo todo o tipo de esforços para reduzir o excesso de estoques de cereais que persistiram durante todos estes anos, apesar das exportações em grande escala. E o mais recente destes esforços é o de encorajar a produção de biocombustíveis [NR]. Por todo o mundo há uma tendência para substituir os combustíveis fósseis por etanol, o qual supostamente é “mais limpo” e uma maior proporção de grãos está sendo desviada para a produção de etanol do que anteriormente. Nos EUA, está se utilizando milho para a produção de etanol; mas isto pouco importa para os EUA, uma vez que não tem de se preocupar com a fome em massa e não figura no índice mundial da fome. Mas o governo Modi, para não ser ultrapassado, também anunciou um plano ambicioso de mudança para o etanol: estaria promovendo uma mistura de gasolina e etanol, sendo a proporção deste último de 20% e para este fim utilizando arroz e cana-de-açúcar.
Um alto funcionário governamental é citado como tendo dito que isto não colocaria problemas para a segurança alimentar da Índia, uma vez que “o governo tem reservas suficientes de cereais em armazéns da Food Corporation of India gerida pelo Estado”. A observação do funcionário traz a mesma ignorância da teoria econômica básica tal como a maior parte das demais declarações do governo. O excesso de estoques de cereais, ao invés de ser visto como o resultado dos preços no mercado e do estado do poder de compra do povo, são alegados como prova de plenitude. Por este raciocínio, mesmo que houvesse uma fome no país, esse fato não seria reconhecido enquanto houvesse abundância de estoques de cereais nos silos da FCI.
Não é apenas o desvio dos cereais para a produção de etanol que deve ser combatido por todos no país que pensam corretamente. Os grãos disponíveis deveriam antes ser distribuídos entre o povo pela colocação de poder de compra nas suas mãos de modo a que a sua fome seja aliviada. Mas, mesmo a utilização da cana-de-açúcar para a produção de etanol, na medida em que leva a um desvio de terras que as afasta dos cereais alimentares, levará a um declínio ainda maior na disponibilidade de cereais per capita do que se verificou até agora.
De facto, mesmo quando há um tal declínio na disponibilidade de cereais per capita, ainda haveria excedentes de cereais na economia. Isto porque o próprio modus operandi de um regime econômico neoliberal é gerar um excedente perpétuo de reservas de cereais, por mais baixa que seja a disponibilidade per capita dos mesmos.
A razão é simples. Sempre que há uma queda nos estoques de cereais abaixo da “norma”, há um temor de inflação. Assim, o capital financeiro, preocupado com a perda através da inflação do valor real dos ativos financeiros, pressiona imediatamente o governo a contrariar essa inflação pelo corte das suas despesas e pela imposição de uma política monetária restritiva. Mas não são feitos tais esforços compensatórios no caso oposto, quando os estoques de cereais alimentares são excessivos. Em suma, as quedas nos estoques alimentares são rapidamente eliminadas, mas não os excessos nos seus estoques alimentares. Devido a esta assimetria existe sempre, em geral, um estado de “excedentes” de estoques alimentares.
A par desta assimetria existe uma segunda assimetria. Há duas maneiras de eliminar qualquer déficit nos estoques de cereais abaixo das “normas” aceitas. Uma é através de um aumento da produção e, consequentemente, da oferta, e a outra através de uma redução da procura, tal como através de cortes na despesa pública e de uma política monetária mais restritiva (a qual basicamente reduz o poder de compra do povo). Das duas, a forma muito mais fácil para o governo é esta última, tanto porque leva menos tempo a mostrar os seus efeitos como também porque, quando as despesas públicas estão sendo cortadas, os investimentos governamentais necessários, para aumentar a produção de cereais alimentares, dificilmente se concretizariam. Assim, a tendência ao longo do tempo é para que o poder de compra do povo continue a ser restringido enquanto a produção per capita de cereais, e consequentemente a disponibilidade per capita dos mesmos, continua a diminuir, o que significa um aumento da magnitude da fome. Isto é exatamente o que tem acontecido na Índia.
Assim, os estoques excedentes existirão mesmo com um declínio secular da produção per capita e da disponibilidade per capita de cereais e um aumento secular da fome. Não só a existência de estoques excedentes não indica a ausência de fome, mas a tendência típica numa economia neoliberal é ter estoques excedentes juntamente com uma fome crescente. Esta tendência só será exacerbada pelo desvio de cereais ou de cana-de-açúcar (para onde as terras cerealíferas serão desviadas) para a produção de etanol. De fato não só exacerbada como também absolutamente assegurada.
Portanto, a decisão do governo Modi de aumentar o desvio de grãos e de cana-de-açúcar para a produção de etanol certamente reduzirá a disponibilidade de cereais per capita e aumentará a magnitude da fome. Isto porque ao primeiro sinal de que os estoques estão abaixo da “norma” haverá um esmagamento do poder de compra da população, “resolvendo” portanto o problema da escassez (como se manifesta no fato de os estoques estarem abaixo da “norma”) através de um novo aumento da magnitude da fome.
Isto tem sérias implicações gerais. Há muito entusiasmo no Ocidente entre os círculos progressistas pela “energia verde” dentro dos quais os biocombustíveis são incluídos. E para a produção acrescida de biocombustíveis é recomendada um desvio da produção de cereais. Independentemente da relevância desta receita no contexto de países avançados, a sua replicação em países terceiros como a Índia terá consequências desastrosas para a magnitude da fome.
24/Outubro/2021
[NR] O autor refere-se aqui a biocombustíveis líquidos, cuja condenação é perfeitamente válida. O mesmo não se passa com os biocombustíveis gasosos (biogás e biometano), cuja produção é virtuosa. Os biocombustíveis gasosos não comprometem a produção alimentar e contribuem para a melhoria do ambiente pois são produzidos a partir de resíduos.
[*] Economista, indiano, ver Wikipedia
O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2021/1024_pd/foodstocks-bio-fuels-and-hunger
Este artigo encontra-se em resistir.info