A que vem o presidente eleito do Chile?

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A que vem o presidente eleito do Chile? Gabriel Boric e o discurso de sua eleição

Por Gabriel Lazzari

Na noite desse domingo, 19 de dezembro, foram contabilizados os votos do segundo turno das eleições presidenciais chilenas. A disputa foi entre José Antonio Kast, do Partido Republicano e defensor e legatário do pinochetismo, e Gabriel Boric, da Convergência Social, membro da coligação Apruebo Dignidad, ex-líder estudantil que teve grande expressão política nacional a partir das revoltas de estudantes de 2011. A campanha, realizada com mobilização de diversos setores e grande participação do Partido Comunista do Chile, chegou a seu final com a eleição de Boric por 55,87% dos votos válidos. Boric aparece, assim, como o ponto de chegada de um longo processo de lutas e mobilizações massivas no Chile, iniciado em 2019, que teve como causa a indignação popular com condições de vida e direitos sociais absolutamente precarizados. Essa situação, por sua vez fruto da Constituição de 1980 (realizada pela ditadura encabeçada por Pinochet) e de seu arranjo institucional neoliberal, atingiu patamares de calamidade pública, tendo como exemplos dramáticos os números recordes de suicídio entre idosos, incapazes de sustento pelo regime previdenciário privado, das AFPs.

No entanto, esse processo de lutas, que ainda terá de se concretizar com a promulgação de uma nova Constituição, está longe de apresentar uma alternativa de sociedade para o país, como foi a marca da famosa experiência do governo de Salvador Allende e da Unidad Popular no começo dos anos 1970. Apesar de vários analistas apontarem essas semelhanças, o próprio presidente eleito, Gabriel Boric, não fez referências diretas ao presidente Allende, eleito democraticamente em 1970 e assassinado no ataque ao Palácio La Moneda no dia do golpe militar, 11 de setembro de 1973. A experiência dos anos 1970, com todas os seus erros, acertos e contradições, buscava construir uma “via chilena ao socialismo”. Boric, pelo que disse em seu discurso na noite de domingo, já matematicamente eleito, não aponta para o mesmo objetivo.

Em um discurso breve, de cerca de meia hora, Boric demonstrou pouquíssimo vínculo com as lutas operárias e com o movimento dos trabalhadores propriamente dito. Em vez de abertamente reivindicar para si um governo de apoio à classe trabalhadora, diz que será o “presidente de todos os chilenos e chilenas”. Se essa tentativa de fingir que não há classes na sociedade chilena e que é possível governar conciliando esses interesses já seria estranha – além de uma prova de sua posição social-democrata –, os acenos aos setores da direita pinochetista são os mais preocupantes.

Entre os agradecimentos, em vez de nomear todos os partidos da sua coligação (talvez para não mencionar a presença do Partido Comunista do Chile), fez questão de nomear todos os demais candidatos das eleições – inclusive José Antonio Kast, “Sim, José Antonio Kast” como repetiu empolgado o presidente eleito. Sem citar o legado da ditadura operada por Augusto Pinochet ou repetir a famosa palavra de ordem de “enterrar o legado da ditadura”, Boric afirmou que o “futuro do Chile necessita de todos ao lado do povo e espero que tenhamos a maturidade para contar com suas ideias e propostas para começar meu governo. Sei que, para além das diferenças que temos, em particular, com José Antonio Kast, saberemos construir pontes para que nossos compatriotas possamos viver melhor”. Quais pontes seria possível construir com um representante do que há de pior na política chilena, o filho de imigrantes nazistas que deseja aplicar no Chile a mesma política que Bolsonaro tem aplicado no Brasil, isso Boric não comentou. Afinal, “avanços substantivos, para ser sólidos, vão requerer acordos amplos” e aparentemente excluir Kast desses acordos amplos está fora de cogitação.

Poderia ser que, mesmo confuso em relação ao futuro, Boric estivesse ao menos reconhecendo o passado e o presente como pontos de apoio, analisando experiências de governos “de esquerda” e reivindicando uma continuidade crítica em relação a elas. Ele mesmo afirma que a “história não começa conosco. Me sinto herdeiro, e sinto que nosso projeto é herdeiro, de uma longa trajetória histórica”, o que, para qualquer analista político, só pode significar, no caso chileno, uma recuperação do legado de Allende, de sua batalha contra o golpismo da burguesia chilena e do imperialismo, infelizmente perdida por diversos fatores internos e externos. Mas sobre Allende e a Unidad Popular, nem uma palavra: nem sua eleição, nem seu governo, nem seu assassinato e subsequente golpe que mergulhou o Chile em quase 17 anos de uma sangrenta ditadura (que foi laboratório do neoliberalismo contra o qual Boric se coloca) são mencionados no discurso.

Nem mesmo o presente é modelo para Boric. Não em seu discurso de presidente eleito, mas no passado, suas referências ao socialismo cubano, para citar um exemplo, foram em geral de “denúncia” às “violações dos direitos humanos”. Esse tema, que foi pauta de um debate das prévias entre ele e o pré-candidato do PC Chileno, Daniel Jadue, gerou grande repercussão pela defesa de Boric da linha hegemônica nas mídias burguesas, que acusava o governo cubano de perseguir e violentar os protestos influenciados claramente pelos Estados Unidos. A realidade, bastante diversa, era a de um presidente cubano indo às ruas junto com centenas de milhares de apoiadores da Revolução Cubana.

Já fica difícil demonstrar qual “trajetória histórica” Boric referencia ao calar sobre as principais experiências da esquerda latino-americana. No entanto, a defesa programática (aquela que ele pretende pôr em prática por meio das pontes com Kast) que faz em seu discurso é ainda mais vaga. Defende um “Estado […] eficaz, imparcial e justo” em vez de um Estado claramente comprometido com a classe trabalhadora, parcial em seus métodos e na forma de poder. Defende uma “imprensa livre”, não o controle social e a democratização da mídia e das comunicações. Defende uma “saúde que seja oportuna e não discrimine entre ricos e pobres”, mas não aponta que ela deva ser 100% pública. Defende um “crescimento e distribuição justa da riqueza”, e não uma alteração substancial da estrutura produtiva, com amplo peso do Estado e controle operário e popular das riquezas. Tudo isso para ir “construindo a pátria justa” – nem mesmo uma via chilena para o socialismo, mas apenas para a “justiça” em abstrato. É preciso ir a seu programa eleitoral por escrito para compreender como nem sequer a nacionalização do setor de cobre – uma das primeiras medidas do governo Allende, em 1971 – figura entre suas medidas econômicas. A tentativa de Boric, consciente ou não, é a de traduzir diversas demandas populares legítimas – como a previdência, a saúde, a educação, que ele menciona diretamente – na linguagem da viabilidade institucional, isso é, na possibilidade de um pacto de conciliação de classes que, com maior ou menor pressão popular, opere na lógica do Estado, sem questionar seu caráter de classe.

Boric diz a que veio, nas suas palavras e nas suas omissões. Veio, sem dúvida, para vencer o fascista Kast, colocar uma pedra sobre o legado de Pinochet e aprovar uma nova Constituição certamente melhor nos direitos sociais do que a Constituição fraudulenta da ditadura. O quanto ele será capaz de operacionalizar essas medidas sem se apoiar diretamente na classe trabalhadora e sem um programa de mudança radical do planejamento econômico – e assim, expor as diferenças de classes que existem na sociedade chilena –, o tempo nos dirá. Afinal, Boric acha que “só com coesão social, reencontrando e compartilhando um solo comum” poderá ter sucessos. Mas será possível achar um solo comum entre, de um lado, o clamor das ruas e da classe trabalhadora chilena e, de outro, a burguesia chilena e o imperialismo?

Gabriel Lazzari é Secretário Político Nacional da UJC e membro do CC do PCB