Na antecâmara da guerra mundial
Oito mísseis de cruzeiro ar-terra, com ogivas nucleares, são carregados num bombardeiro B-52, durante o exercício Prairie Vigilance 22, levado a cabo pelo Comando Estratégico dos EUA e que terminou em Dakota do Norte no dia 23 de setembro de 2022
José Goulão – colunista do portal Abril Abril
Nas mentes de seres alienados por pulsões sociopatas entranhou-se já a ideia de que o uso de bombas nucleares é admissível e terá consequências limitadas e controláveis. O princípio do fim.
A União Europeia, sem qualquer surpresa, deu passos inconscientes e decisivos: a partir de agora não são necessárias previsões nem especulações, a guerra iniciada em 2014 pelo regime nazista da Ucrânia contra as populações da região do Donbass atingiu envergadura mundial. No terreno não se opõem já a OTAN e a Rússia – a Ucrânia é somente o campo de batalha original – porque a União Europeia, enquanto tal, decidiu envolver-se diretamente e também provocar o Irã, estendendo o conflito para o Oriente Médio. O movimento cria um cenário propício a novos ajustamentos e perspectivas por parte de alianças político-militares assumidas ou não assumidas através de toda a Eurásia. Agravam-se antagonismos até agora sublimados e que não pouparão continentes.
Os membros dos atuais governos europeus, quando a história lhes fizer justiça, ficarão anotados como seres transtornados perigosos e sem coluna vertebral que aceitaram jogar com a vida de dezenas de milhões de pessoas, incluindo os seus próprios cidadãos. E o executivo da República Portuguesa fez até questão de não ser discreto nas provocações dirigidas contra inimigos criados artificialmente numa guerra com a qual os portugueses nada têm a ver.
Os governos europeus, na sua ânsia de cumprir as ordens de serviço que lhes são enviadas de Washington e de tentar igualmente salvar o decadente Biden de uma hecatombe eleitoral em 8 de novembro, decidiram impor sanções ao Irã por vender drones à Rússia; e também investir mais umas centenas de milhões de euros para treinar, em solo da União Europeia, pelo menos 15 mil soldados ucranianos. Esta medida, como respondeu de pronto a porta-voz do Ministério russo dos Negócios Estrangeiros, transforma a UE em «parte do conflito», tendo de assumir, por isso, as correspondentes consequências.
As portas escancaram-se à generalização continental da guerra. E como é absolutamente notória e dramática a falta de bom senso nos dois lados do conflito, os cidadãos europeus deverão se conscientizar de que o mundo mudou, não há caminho de regresso às situações existentes no período pré-covid e são ínfimas as possibilidades de passarmos pelo que aí vem de uma maneira benigna.
A guerra como fator de unidade
A União Europeia só é «união» no nome. Sabemos que a famosa «unidade» proclamada por Bruxelas é um mito quando estão em causa as vidas dos mais de 500 milhões de cidadãos dos 27. Não houve unidade quando se tratou de combater a covid, o desconcerto é total para enfrentar o caos energético que as sanções com efeito de boomerang impostas à Rússia estão gerando. A convergência entre os Estados membros quando se trata de frustrar seriamente os ataques ao meio ambiente e combater as alterações climáticas é uma ridícula história da carochinha.
A unidade europeia manifesta-se apenas quando se trata de atacar salários, de impôr uma austeridade cada vez mais institucionalizada e de amputar direitos sociais, políticos e humanos elementares. A guerra, como agora se demonstra, é a plataforma onde é mais fácil congregar as vontades e interesses dos dirigentes europeus – na verdade, dos seus mandantes – transformando-os numa ameaça potencialmente letal para os cidadãos.
A criação e desenvolvimento de um esterco infecto, o tendencialmente totalitário aparelho de propaganda substituindo o espaço da informação e entretenimento, é o complemento de uma estratégia belicista que necessita de uma lavagem cerebral coletiva e da robotização das pessoas para fazer funcionar um sistema perverso contra a natureza humana.
Os espantosos lucros que vêm sendo registrados por grandes empresas e grupos econômicos atuando a montante e jusante da indústria e do exercício da guerra, receitas criminosas essas que sugam os cidadãos e famílias das suas capacidades de sobrevivência decente, explicam muitas das razões motivadoras da generalização do conflito armado, mas não abrangem o panorama completo.
Confronto existencial
Como se tem dito, há um confronto existencial entre duas formas opostas de encarar a ordem internacional – unipolar, a existente, e multipolar, a nascente – que chegou a uma fase de guerra da qual nenhuma das partes admite recuar.
A União Europeia, ao imiscuir-se diretamente no conflito onde tem participado sob o chapéu da OTAN, assumiu sem disfarces a sua vertente colonial/imperial da unipolaridade e tornou-se um alvo declarado, pondo em risco a vida de centenas de milhões de pessoas para que uma ínfima minoria delas possa continuar a se beneficiar da extorsão criminosa do resto do mundo. Em nome da «civilização ocidental», superior a todas as outras por desígnio de um nunca desentranhado espírito de cruzada para universalizar os «valores cristãos».
O inimitável Josep Borrell, «ministro dos negócios estrangeiros» da UE servido por uma alma de criminoso de guerra, expôs em Bruges aos futuros eurocratas, numa simples e inspirada frase, a maneira como as corjas europeias encaram o planeta: a União Europeia «é um jardim, o resto do mundo é uma selva» e existe o risco de «a selva poder invadir o jardim».
Tudo fica explicado. Daí que tornar-se parte ativa de uma guerra para salvar o «jardim» e conter a «selva», generalizando as provocações apesar do risco de ampliar a envergadura do confronto, seja um passo natural que os governos da UE e toda a camada desumanizada da eurocracia acabam de dar.
De que maneira as decisões mais recentes dos governos da União Europeia contribuem para alargar substancialmente a área potencial de conflito?
A disponibilidade para treinar, em solo de Estados da União, pelo menos 15 mil efetivos das forças militares ucranianas transformou a União Europeia «num alvo», declarou a porta-voz do Ministério russo dos Negócios Estrangeiros. Quer isso dizer que o recurso direto ou indireto da Ucrânia a armas e condições operacionais proporcionadas por países da OTAN e/ou União Europeia significam a entrada destes em confronto militar com a Rússia. Sobretudo se o regime nazista de Kiev insistir, como tem feito, com frequência crescente, em atacar territórios russos.
A área real do conflito estende-se assim dos cabos atlânticos da Península Ibérica aos confins orientais de Vladivostok, com o Japão à vista, e o comportamento da União Europeia fica sujeito, para já, a eventuais atitudes russas que agravam ainda mais as consequências econômicas e energéticas de que o Ocidente sofre presentemente. A realidade vem demonstrando que a Europa necessita mais da Rússia do que a Rússia do resto da Europa e a situação está longe de atingir os limites mais dramáticos – a Alemanha já começou a perceber do que se trata.
A hipotética decisão da Rússia de transformar a «operação militar especial» em declaração de guerra à Ucrânia tornará inevitável que todos os países envolvidos no conflito ao lado dos nazistas de Kiev – para além dos mercenários de muitas nacionalidades da OTAN e UE que já combatem integrados nas forças ucranianas – sejam parte da mesma guerra. Sem esquecer que as principais ofensivas conduzidas pelas forças militares ucranianas são comandadas por funcionários da OTAN e guiadas por sistemas tecnológicos de última geração facultados pela aliança e seus ramos privados, como a empresa espacial de Elon Musk.
A situação é válida, infelizmente até por algumas atitudes específicas, para o caso de Portugal. O governo português teve pressa em confirmar que está disponível para integrar a operação de treino dos soldados ucranianos. Mas não é apenas por isso que se destaca na postura hostil em relação à Rússia, que de maneira nenhuma atacou interesses do país e dos cidadãos nacionais. Os 250 milhões de dinheiro dos portugueses oferecidos abusivamente – abuso de confiança – por António Costa ao filonazista Zelensky e os 14 tanques enviados para as suas tropas são passos que marcam um comportamento governamental indigno, que ofende e renega a Constituição da República, a democracia portuguesa e a sua gênese em 25 de Abril de 1974.
A decisão governamental de oferecer à Ucrânia, com objetivos militares, os helicópteros Kamov que Moscou cedera com fins civis e humanitários, os combates aos incêndios, extravasa a perversão ética assumida por Costa e sua equipe (nada de estranhar) e cai na violação dos acordos contratuais com a parte russa.
Lisboa, desafiando heroicamente o urso russo, insiste na decisão. Tem lógica: Portugal não é o país onde o governo viola a Constituição para se envolver em guerras enquanto as entidades de fiscalização da constitucionalidade estão mudas e quietas? O povo sofre, e possivelmente sofrerá ainda muito mais as consequências deste ultraje; mas que os centros nacionais de decisão não querem saber das pessoas para nada, além de as usar e jogar fora, já nós sabemos há muito.
Depois há a decisão da União Europeia de impor ainda mais sanções contra o Irã por ter vendido à Rússia drones para fins militares. Há uma enorme fabulação propagandística em torno desta matéria, mas o mais significativo da situação é o fato de a entidade que pune Teerã por vender armas a Moscou ser a mesma cujos países oferecem, alugam e vendem armas a Kiev.
É oportuno citar novamente o socialista Borrell, inesgotável fonte de esclarecimentos sobre o verdadeiro «espírito europeu». Diz ele que, ao contrário do que alega o senso comum, existem realmente dois pesos e duas medidas na arena internacional: os nossos interesses são para respeitar, os dos outros não. Nada mais do que a diferença entre o «jardim» colonial e imperial e a «selva» onde o colonialismo e o imperialismo se saciam. Pelo que a União Europeia pode abastecer impunemente Kiev para continuar a guerra, mas o Irã não pode vender armas à Rússia. É, como sempre, a «ordem internacional baseada em regras». A imposição de sanções só pode se processar no âmbito de decisões da ONU e por aqui se vê como a União Europeia viola ostensivamente, com todo o despudor, o direito internacional. Ou os «nossos valores partilhados» em ação de maneira exemplar.
A decisão dos governos da União integra de fato o Irã na guerra e vai provocar Israel não só a fornecer ainda mais armamento letal à Ucrânia mas também a aguçar as garras do regime de apartheid de Telavive no sentido do tão desejado ataque atlantista-sionista contra Teerã. A desestabilização «colorida» em território iraniano é permanente; Síria, Líbano, Iraque, Líbia e todas as guerras por resolver no Oriente Médio poderão ter novos e imprevisíveis desenvolvimentos, regurgitando também a miríade de grupos terroristas «islâmicos» subordinados à OTAN, aliás muito bem relacionados com as organizações nazistas que governam Kiev.
A Eurásia em fogo
O Irã é parte do principal núcleo da multipolaridade soberana em construção, a par da Rússia e da China. É improvável que cada um de nós faça ideia das consequências que podem resultar de uma conjuntura tão sensível que envolve agora o Oriente Médio e toda a Eurásia, a «ilha do mundo», onde se cruzam espaços de influência, alianças, organizações transnacionais em atividade ou em construção e zonas de conspiração e interesses geoestratégicos e econômicos alimentados pelas principais potências mundiais.
A situação chegou a um ponto em que cada ação de uma das partes, neste contexto ainda mais generalizado, terá resposta da outra, na Ucrânia e não só, como vamos percebendo, designadamente pelo comportamento insano da União Europeia – que se sujeita a fazer a parte mais suja da missão terrorista dos Estados Unidos. Temos como certo, até agora, que nenhum dos lados está disposto a ceder ou mesmo a estabelecer contatos para reduzir a tensão com o objetivo de travar o caminho para o abismo – a que chamarão «vitória». Enquanto isso, parece cada vez mais desbravada de obstáculos a via para o recurso às armas nucleares. Quando em Washington e Moscou se considera anacrônico e ultrapassado o conceito segundo o qual o uso de tais armas de extermínio provocaria a «destruição mutuamente assegurada», cruzou-se uma fatídica linha vermelha. Nas mentes destes seres alienados por pulsões sociopatas entranhou-se já a ideia de que o uso de bombas nucleares é admissível e terá consequências limitadas e controláveis. O princípio do fim.
Não sabemos o que vem por aí, quando e como vem. Entretanto, uns continuam alegremente consumindo trapaças da propaganda e pílulas de estupidificação; outros nem querem saber, ainda que tenham umas luzes da gravidade da situação. Mas quem não desiste de lutar pela paz e pela sobrevivência da humanidade, que lute.
Mesmo sendo governados por pervertidos que escancaram as portas de mais uma guerra com envergadura mundial. Potencialmente definitiva.
José Goulão, Exclusivo AbrilAbril
Publicado originalmente em: https://www.abrilabril.pt/