A que heranças o Movimento Comunista Internacional deve renunciar?
Carlos Arthur Newlands Jr. (Boné) – membro do Comitê Central do PCB
Em 23 de fevereiro p.p., o site do LavraPalavra publicou a tradução de um instigante artigo do camarada Kemal Okuyan, Secretário Geral do Partido Comunista da Turquia: “Pensando em voz alta sobre o “movimento comunista internacional”, o qual recomendo vivamente a leitura. O camarada – que dirige um Partido Comunista dos mais lúcidos e influentes do mundo – aponta um balanço histórico bastante crítico do MCI e lança o desafio: “os comunistas precisam priorizar a análise do fator subjetivo, em vez de reclamar das condições objetivas. Precisamos fazer debates ousados. (…) O que precisamos é o seguinte: estabelecer um esclarecimento dos referenciais teóricos e políticos a partir dos quais cada partido comunista atua. Não faz sentido considerar isso como um problema interno de cada partido. A interação é um dos privilégios mais importantes de um movimento universal como o marxismo.”
Neste artigo, procuro modestamente atender ao chamado do camarada Okuyan, listando cinco pontos que, a meu ver, constituem os grandes desvios político–ideológicos que o MCI precisa enfrentar e superar para reconstruir sua unidade num novo patamar, compatível com o gigantesco desafio que a crise sistêmica do capitalismo traz para o conjunto dos comunistas e de todos os revolucionários do planeta. Estes desvios são:
etapismo estratégico;
nacional–chauvinismo;
doutrinarismo e inflexibilidade tática;
LGBTfobia e transfobia;
moralismo quanto às drogas.
Vamos a partir de agora desenvolver a crítica a cada um destes desvios.
Etapismo estratégico
Do ponto de vista das Resoluções congressuais do PCB, este talvez seja o ponto em que nosso Partido tem mais acúmulo de debate e formulação. Está claríssimo em nossas Resoluções, abordando a realidade brasileira, a compreensão de que “O desenvolvimento do sistema capitalista como um todo e, em particular, no caso brasileiro, elimina a possibilidade histórica de qualquer aliança entre uma suposta “burguesia nacional” e a classe trabalhadora, para a realização de uma revolução “nacional libertadora”, ou seja, o enfrentamento, num primeiro momento, do capital estrangeiro presente no país para, numa etapa posterior, realizar-se a revolução socialista” (Declaração Política do XVI Congresso – grifos meus).
Penso que devemos dar especial ênfase à frase “como um todo”. Parece-me ser um consenso em nosso Partido de que, pelo menos com as informações de que dispomos, em nenhum país do mundo hoje existe a possibilidade histórica de qualquer aliança entre uma suposta “burguesia nacional” e a classe trabalhadora, quer seja para um enfrentamento ao imperialismo, quer seja para enfrentar uma fração burguesa “rentista e ultrarreacionária”.
Entretanto, o que constatamos no MCI é uma disseminada compreensão etapista do processo revolucionário.
Parênteses: inicialmente, para deixar claro, não estou me referindo aqui àqueles partidos que de “comunista” hoje só mantêm o nome, mas que sucumbiram à socialdemocratização e não apontam mais nem o leninismo como concepção muito menos a ruptura revolucionária como uma necessidade histórica de construção do socialismo – e que, nestas condições, não participam do EIPCO (Encontro Internacional dos Partidos Comunistas e Operários) nem têm nenhuma relação com os PCs que o integram.
Quando falo de etapismo, refiro–me àqueles Partidos Comunistas (em países da periferia do capitalismo e também em países da Europa) que mantém o vínculo orgânico com a luta direta da classe trabalhadora mas que expressam, na sua política e nas suas Resoluções, a compreensão de que há uma etapa intermediária a ser ultrapassada entre a situação atual e a Revolução Socialista. Esta etapa intermediária tem sido chamada por vários PCs de “democracia avançada” e outras formulações semelhantes.
Minha compreensão é que, na atual configuração do capitalismo mundial sob a clara hegemonia do capital financeiro mundializado, não há nenhuma possibilidade de “etapa nacional-democrática da revolução” em nenhum país do mundo (arriscaria até dizer nem mesmo nos países economicamente mais atrasados da África), pois não enxergo em nenhum país do mundo hoje a existência de uma fração da burguesia “resolutamente democrática” e “com contradições frontais com o imperialismo”. Defendo que cabe ao Partido Comunista Brasileiro – um dos primeiros PCs do mundo a elaborar uma teoria da revolução socialista rompendo com e fazendo autocrítica de seu etapismo estratégico histórico – a grandiosa tarefa de impulsionar este debate no seio do MCI.
Nacional–chauvinismo
O desvio ideológico do nacional-chauvinismo tem muita relação com o etapismo estratégico anteriormente descrito; como veremos a seguir, trata-se ao fim e ao cabo de um aprofundamento do etapismo rumo à franca degeneração ideológica. O nacional-chauvinismo não apenas entende a necessidade de uma “etapa nacional-democrática” anterior à revolução socialista, mas além disso privilegia o elemento nacional do etapismo. Na prática, não apenas propõe uma aliança com a dita burguesia nacional, como além disso (se não explicitamente como resolução, ao menos como consequência prática) coloca a classe trabalhadora “nesta etapa” como coadjuvante perante as ações da fração burguesa com que propõe aliança.
O combate político–ideológico ao nacional–chauvinismo, no meu entendimento, combina a utilização dos mesmos argumentos com que devemos combater o etapismo estratégico, acrescida da compreensão de que há uma diferença fundamental: uma coisa é saber utilizar as contradições interburguesas a favor do avanço da classe trabalhadora e do socialismo (como por exemplo faz magistralmente o PC de Cuba ao abrir a possibilidade de empresários espanhóis explorarem atividades turísticas na ilha); outra coisa qualitativamente diferente é por a classe trabalhadora a reboque de uma fração da burguesia.
Outro elemento central do combate a este desvio é a compreensão de que o nacionalismo burguês é uma ideologia essencialmente reacionária. Mais uma vez contrapomos com o exemplo de Cuba: uma coisa é um nacionalismo democrático-popular anti-imperialismo estadunidense (o qual, além de Cuba, também foi a força motriz da Revolução Nicaraguense nos seus melhores momentos, antes da degeneração ideológica da FSLN); outra coisa é o nacionalismo burguês (por exemplo, o russo) que traz junto elementos de contradição (mesmo que aguda) com o imperialismo estadunidense e fortes elementos de chauvinismo étnico e/ou religioso. Os camaradas do Tudeh iraniano aprenderam na carne, da maneira mais sofrida possível, o quanto uma “burguesia anti-imperialista” pode ser ao mesmo tempo antipopular e anticomunista.
Doutrinarismo e inflexibilidade tática
O outro lado da moeda dos desvios direitistas do etapismo e do nacional–chauvinismo é o desvio esquerdista do doutrinarismo. Os partidos que caem nesse viés têm a característica de não apontarem luta política concreta imediata e geral que acumule forças e contribua para o crescimento do nível de consciência das massas. Esses PCs têm por prática denunciar as mazelas do capitalismo e as ações autoritárias dos governantes, mas sempre apenas apontando que a superação desta situação será no socialismo, com discursos que acabam sempre centrados na afirmativa “a única saída para a classe operária, e a tarefa de nosso tempo, é a luta decidida pelo socialismo-comunismo”, praticamente sem nenhuma mediação tática.
Não estou aqui menosprezando ou desconhecendo o papel importante que tais Partidos desempenham nas lutas da classe trabalhadora e da juventude de seus países. Meu apontamento é que a tendência que constato em tais PCs é o descolamento entre a luta imediata, a política geral e o objetivo estratégico: apoiam as lutas econômicas imediatas e particulares, mas por seu doutrinarismo esquerdista não conseguem elaborar uma mediação tática generalizadora que aponte para uma luta ao mesmo tempo concreta e de caráter global.
Neste quesito, nosso PCB manteve e aprimorou sua melhor tradição de saber combinar lutas específicas e bandeiras gerais, combinar lutas de resistência e propostas de pauta de avanços. Dois exemplos ilustrativos: soubemos combinar a luta contra os ataques ao ensino público com as bandeiras de Escola Popular e Universidade Popular (incluindo a proposta ousada de fim do vestibular); soubemos combinar a luta de resistência contra a contrarreforma liberal trabalhista com a bandeira da redução da jornada de trabalho para toda a classe trabalhadora.
Parêntese: uma proposta tática para PCs europeus
Em uma ousadia adicional, proponho aqui uma bandeira tática política imediata que entendo que deve ser levantada por todos os PCs da Europa, especialmente aqueles cujos países ainda são monarquias: o fim da monarquia e a imediata proclamação da República.
Essa proposta nasce das seguintes considerações:
toda monarquia, por mais parlamentarista que seja, é autocrática e representa um resquício do período de transição do feudalismo para o capitalismo (especialmente porque toda monarquia embute os privilégios da nobreza herdados do período feudal);
a república democrática liberal é a forma política mais avançada sob o capitalismo. Como dizia o camarada Lenin, “os marxistas sabem que a democracia não suprime a opressão de classe, apenas torna a luta de classes mais pura, mais ampla, mais aberta, mais aguda; é disto que nós precisamos. (…) Quanto mais democrático for o regime estatal, mais claro será para os operários que a raiz do mal é o capitalismo, e não a falta de direitos”.
Esta proposta adquire especial relevância nas duas monarquias mais importantes e mais reacionárias da Europa: Espanha e Reino Unido (Grã–Bretanha).
A monarquia espanhola é uma excrescência histórica, um retrocesso resultado da derrubada da República pelo fascismo franquista e pela sobrevivência do franquismo por décadas após o fim da 2ª Guerra Mundial. A Casa Real de Madrid representa ainda a opressão madrilenha sobre as regiões espanholas de relativa autonomia, em especial da Catalunha e do País Basco. Neste sentido, a intervenção do PCPE após o escândalo de corrupção do Rei Juan Carlos, apontando a podridão da monarquia espanhola e reafirmando a necessidade da alternativa republicana, foi um grande acerto tático dos camaradas.
No Reino Unido a situação no fundamental é bastante semelhante: além da Família Real ser “o mais caro e inútil corpo de funcionários públicos do mundo”, o Palácio de Windsor costumeiramente reprime as aspirações de autonomia na Escócia e na Irlanda do Norte. O recente veto do governo central britânico à legislação escocesa mais avançada para a população trans é só mais um capítulo desta opressão nacional.
LGBTfobia e transfobia
A ligação entre este tema e o parágrafo anterior é proposital. Causou espécie e repulsa na militância comunista brasileira a posição transfóbica do Partido Comunista Britânico expressa em seu comunicado acerca do imbróglio legislativo do Parlamento escocês. O CPB literalmente afirmou: “As implicações da autoidentificação como único requisito para o acesso a espaços e instalações para pessoas do mesmo sexo são sérias quando se trata de proteger mulheres e crianças do comportamento predatório e abusivo de homens que podem simplesmente se declarar mulheres. (…) o Partido Comunista rejeita a autoidentificação de gênero como base para direitos baseados no sexo na lei para os direitos, espaços e instalações de sexo único das mulheres. (…) Pedimos que o ‘sexo’ como uma característica protegida pela Lei da Igualdade de 2010 seja definido como ‘sexo biológico.”
Este desvio vem mascarado com um discurso que se apresenta como marxista e materialista, ao afirmar que “gênero como categoria diferente do sexo biológico é idealismo, é antimaterialismo”, pois “a matéria é a definição genético-biológica para a sexualidade”.
Ocorre que este discurso é pseudomarxista, é materialista mas não é dialético: é materialismo mecanicista. Em primeiro lugar, cabe nunca esquecer o alerta de Marx: “as idéias adquirem força material quando penetram nas massas”. Além disso, os mecanismos sociais, psicológicos e até hormonais que influenciam na definição de uma orientação sexual hétero cis, homo ou trans não são mapeáveis, e querer estabelecer qualquer “padrão de normalidade” não passa de preconceito obscurantista. E para finalizar de vez a questão, se homossexualidade e LGBT fossem “criação mental idealista”, não existiria comportamento homossexual/transsexual em outras espécies de animais – e centenas de estudos comprovam exatamente o contrário.
Esta não é uma questão simples para o MCI. Se é verdade que a URSS sob Lenin foi o primeiro país do mundo a legitimar a homossexualidade, é também verdade que tal avanço foi retrocedido no período de Stálin e não foi recuperado posteriormente – e hoje constatamos que a LGBTfobia é fortíssima na Rússia contemporânea.
Mais uma vez, o PC de Cuba está na vanguarda dos comunistas também neste quesito. Vejamos: se em 1976 a Constituição cubana definia o casamento como “união entre homem e mulher” e os homossexuais foram discriminados pela Revolução nos anos 70 e 80, já nos 90 Fidel expressava uma profunda autocrítica do Partido sobre tal postura. Hoje, dois dos maiores apoiadores da comunidade LGBT em Cuba são o Presidente Miguel Diaz Cañel e a filha de Raul Castro, e o PC de Cuba acabou de conseguir aprovar num plebiscito popular o mais avançado Código de Família do mundo reconhecendo todas as formas de família formadas a partir do afeto (com a oposição ferrenha de todas as igrejas cristãs). Outros Partidos Comunistas no mundo, como o PC da Turquia e o PC de Israel, já desenvolvem há tempos trabalho político e de massas nas comunidades LGBT de seus países.
O PCB também avançou muito nesta questão, com a formação de nosso Coletivo LGBT Comunista e agora no XVI Congresso com a criação da Secretaria de Questões LGBT. O PCB tem clareza de que a imensa maioria da população LGBT faz parte da classe trabalhadora, e no Brasil, país que mais mata trans no mundo, o combate à LGBTfobia e à transfobia é uma tarefa revolucionária importantíssima – além do que, no Brasil a LGBTfobia e a transfobia são discursos recorrentes da extrema–direita e de sua base de apoio religiosa fundamentalista.
É tarefa do Partido Comunista Brasileiro trazer o debate franco e aberto da superação da atrasada concepção LGBTfóbica e transfóbica no interior dos Partidos Comunistas do mundo.
Moralismo quanto às drogas
Por último, mas não menos relevante, constatamos em diversos PCs do mundo e também em outras organizações revolucionárias uma concepção em relação à questão das drogas encharcada de moralismo, encoberto com discursos de fraseologia revolucionária na linha “drogas são alienação”.
Localizamos dois graves desvios nesta postura. O primeiro é tratar a questão do uso de drogas (particularmente de drogas ilícitas) numa perspectiva individual (“devemos convencer o camarada a largar o vício”), desconsiderando aspectos fundamentais:
*o fato de o uso recreativo de drogas ilícitas é amplamente disseminado em grande parcela da população, especialmente da juventude, e que o uso recreativo de drogas não está necessariamente vinculado ao vício (especialmente nas drogas mais leves como a maconha);
*o fato de que é uma imensa hipocrisia da sociedade burguesa reprimir o uso de drogas como a maconha e ao mesmo tempo consentir – e muitas vezes até incentivar – o uso de drogas lícitas como o cigarro, o álcool e medicação de tarja preta, sendo que as mortes relacionadas diretamente ao uso de drogas lícitas são muito ais frequentes do que as relacionadas ao uso das drogas proibidas.
O segundo e mais grave é desconhecer ou negligenciar que o discurso da “guerra às drogas” não passa de um biombo “justificador” de uma verdadeira guerra aos pobres. Como dissemos na recente campanha eleitoral, “morre muito mais gente por causa da guerra às drogas do que pelo uso de drogas”.
O PCB tem clareza de que a bandeira da legalização escalonada das drogas e da imediata e total descriminalização do uso de substâncias entorpecentes é uma bandeira importante como defesa da vida da juventude preta pobre favelada e periférica. Consideramos fraseologia oca pseudorrevolucionária o discurso de organizações de esquerda que se colocam contra essa pauta afirmando que “o Estado burguês não deixará de reprimir a classe trabalhadora com a legalização das drogas”: o PCB entende que é fundamental tirar da mão da burguesia o discurso de que está “defendendo a família e o futuro da juventude” ao promover o combate às drogas, tornando-o na verdade um verdadeiro genocídio de Estado contra a juventude trabalhadora preta e pobre.
Entendemos que o Movimento Comunista Internacional necessita fazer uma profunda reflexão acerca deste tema e defender internacionalmente o fim da “guerra às drogas”, a legalização escalonada das drogas e a descriminalização total do uso dessas substâncias.