O Governo Lula e a atenção primária à Saúde
Sobre a continuidade do Previne Brasil
Rômulo Caires
Jornal O MOMENTO – PCB da Bahia
Pouca atenção se tem dado à política do governo Lula em relação à Atenção Primária à Saúde (APS) no Brasil. A saída de cena do ministério bolsonarista, que causou tantos estragos durante a pandemia de covid-19, trouxe a falsa sensação de que haveria mudanças significativas no horizonte. O retorno de programas como o Mais-Médicos foi alvo de ampla divulgação e publicidade pelo governo federal, mas pouco foi dito sobre a nova conjuntura em que tais medidas se inserem.
O que dizer da continuidade do Previne Brasil, política encabeçada pelo então ministro da saúde do governo Bolsonaro Luiz Henrique Mandetta? Ou ainda, como se justifica a manutenção da ADAPS, agência criada para generalizar os processos de privatização da APS?
A tais perguntas, poderia nos responder, por exemplo, a atual gestão da Secretaria de Atenção Básica à Saúde. Porém, como pudemos conferir em falas recentes realizadas no 17º Congresso Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade, Nésio Fernandes, hoje secretário de APS e responsável pela direção desse setor no governo Lula, não parece preocupado em explicar o por quê da continuidade do processo de privatização e sucateamento da APS no Brasil. Seu discurso tem como tônus fundamental a visão messiânica da medicina, na qual o ônus e o bônus do sucesso do setor estariam nos ombros dos médicos brasileiros e estrangeiros convocados pelo Mais-Médicos ou contratados pela ADAPS.
Na mesa sobre saúde da população indígena promovida neste congresso, Nésio questiona como é possível que médicos não aceitem os supersalários pagos pela ADAPS para trabalharem em zonas afastadas dos grandes centros. Seu exemplo é a situação cubana, em que médicos da APS atuariam de segunda a segunda, inclusive aos domingos e feriados, nos locais onde for necessário. A queixa se dá no nível exclusivamente moral: os médicos no Brasil não possuem compromisso com a saúde pública. Nada é dito sobre a ausência de direitos trabalhistas, condições mínimas de trabalho, processos de formação continuada, planos de carreira, etc. Pior ainda, o secretário parece confundir saúde e doença com presença ou ausência de médicos, passando ao largo das propostas de reforma sanitária que questionam a centralidade da medicina na organização do sistema de saúde.
Sabemos como o Previne Brasil modificou o financiamento da APS no Brasil, o que, na prática, acabou com os processos de territorialização operados pelas Unidades de Saúde da Família, assim como dentre outras coisas, encerrou a atuação multiprofissional e dificultou enormemente a contratação de agentes comunitários em saúde.
Em texto anterior, já evidenciamos os limites das políticas de financiamento que precedem o governo Bolsonaro, porém, indicamos o conjunto das perdas potenciais a partir da proposta de Mandetta, principalmente a gravidade de instaurar uma entidade estatal de direito privado para gerir a contratação de trabalhadores para o setor, o que significou uma radicalização dos mecanismos de privatização da saúde no Brasil. Neste texto citado evidenciamos toda a influência de agências como o Banco Mundial na estruturação da Atenção Primária à Saúde no Brasil.
Diz-se que a APS é porta de entrada para os demais setores, frente decisiva de configuração das redes de prevenção e promoção à saúde, espaço de alta resolutividade no qual grande porcentagem dos problemas de saúde podem ser resolvidos. Na prática, porém, a APS no Brasil sempre funcionou como uma espécie de “receita para todas as estações”, na qual governos de direita não se diferenciam significativamente de governos supostamente de esquerda, pois em qualquer cenário verificado nas últimas décadas, o que se estabeleceu como tendência foi uma APS focalizada, subfinanciada e pouco resolutiva, dando origem a expressões como: “a APS no Brasil é saúde pobre para pessoas pobres”.
Ou seja, o sucateamento do setor primário não é obra conjuntural, mas responde a mecanismos mais gerais da relação da saúde com o desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Todavia, devemos desmascarar o suposto progressismo do atual governo. Se houvesse um autêntico interesse em transformar a APS num local robusto de operação das políticas de saúde pública, a proposta de financiamento ditada por Mandetta em 2019 deveria ser completamente revogada, assim como deveria ser extirpada a ADAPS e seus mecanismos privatizantes. Ao invés de uma APS focalizada, o governo Lula poderia avançar em
investimentos maciços para contratação de trabalhadores via concursos públicos, investimentos na estruturação de uma rede pública de serviços diagnósticos, recuperação e estatização de empresas farmacêuticas, melhorias no saneamento básico, medidas para incrementar a soberania alimentar, políticas de moradia, fim das políticas genocidas em segurança pública, enfim, medidas que avancem na compreensão da determinação social do processo saúde-doença.
Todavia, o governo Lula não consegue ocultar os interesses por trás de sua ampla política de conciliação de classe. Aprofundar os mecanismos de privatização da APS e do SUS radicaliza os processos de acumulação de capital no setor saúde no país e agrada os amplos setores capitalistas na saúde. Continuar as propostas indicadas pelo Banco Mundial mantém o Brasil subordinado às políticas capital-imperialistas. Sobra ao secretário de APS, Nésio Fernandes, glorificar o papel dos médicos, já que não pode questionar os fundamentos neoliberais do governo. É fato sabido que uma das ações mais aplaudidas no período em que Nésio Fernandes era secretário estadual de saúde no Espírito Santo, foi a criação de uma entidade chamada iNOVA Capixaba, uma fundação pública com personalidade jurídica de direito privado. Nesse sentido, o secretário de APS já era
bastante íntimo dos processos de terceirização antes de chegar na pasta do governo federal.
Ao colocar como carro-chefe publicitário da atuação do governo na APS, o retorno dos Mais-Médicos, além de manter a ideia de que o índice que qualifica uma boa saúde pública é a quantidade total de médicos, escamoteia o atual processo de precarização da própria categoria médica, que cada vez mais é expropriada de direitos trabalhistas básicos, como férias, 13º, aposentadoria, etc. Além de não dar a devida ênfase para a importância fundamental de outras categorias de trabalho em saúde, não promovendo também investimento para a contratação desses profissionais, as políticas do governo ignoram que saúde pública não é apenas serviço de saúde, mas fundamentalmente é a garantia das condições básicas de existência, que vão desde uma boa alimentação, passando pelo acesso à cultura, moradia e segurança.
Nesse sentido, evidenciamos uma continuidade fundamental do Governo Lula em relação ao governo anterior. Há o aprofundamento dos mecanismos de focalização da Atenção Primária à Saúde, o que responde às demandas de privatização e crescimento do setor privado em saúde no Brasil. Sem revogar o Previne Brasil e acabar com a ADAPS, sem resgatar a necessidade de um SUS 100% público, estatal e controlado pelos trabalhadores, não bastarão discursos demagógicos de
que de agora em diante a saúde pública alcançará os rincões do país. O que vemos em marcha é o aprofundamento do neoliberalismo e o aumento da exploração capitalista no país.