Vinte anos do “Fora Collor” e algumas reflexões atuais
No próximo dia 29 de setembro, completam-se vinte anos do impeachment de Fernando Collor de Melo e, em meio ao processo eleitoral em curso, julgamento de acusados do processo do “Mensalão”, entre outros, penso que podemos destacar deste momento histórico algumas lições que, na verdade, revelam situações contraditórias que demarcam aspectos da atual conjuntura política e de seus agentes e a errática trajetória que foi submetida às principais organizações de classe no Brasil.
Há vinte anos, o país amargava uma profunda recessão econômica, motivada em grande medida pelas crises cíclicas do capitalismo nesse período e também pela aplicação de desastrosas intervenções monetaristas das décadas de 1970 e 1980, que aumentaram o endividamento público submetendo o país a uma profunda estagnação.
Com a aplicação do chamado “Plano Collor” que, sob a pretensa tese de combate à inflação, reduzindo o fluxo financeiro no mercado com o confisco nas contas bancárias, na prática, atolou milhares de pequenas empresas em endividamentos e falências, aumentando, no médio prazo, o quadro de desemprego e retomando a recessão em nível mais elevado.
Mesmo assim, Collor de Melo, literalmente, surfava na “crista da onda” dos meios de comunicação, pois tinha sido eleito com a missão de implantar as políticas do chamado “Consenso de Washigton”, assinado pelas sete maiores economias capitalistas em 1989 e que previa um conjunto de medidas de ajuste fiscal, diminuição de investimentos públicos e a privatização de setores estratégicos para o favorecimento dos grandes grupos empresariais, elegendo o funcionalismo público como o principal mal da máquina pública, causador dos maus serviços e das consecutivas mazelas à população: estava, assim, implantada a era neoliberal no Brasil.
Nesse período, assinou novos acordos com o FMI, tendo até tempo para alimentar a criação da Força Sindical, braço sindical do capital no meio operário para preparar o terreno para investidas ideológicas e dividir espaço com a CUT, hegemônica em diversas categorias e ligada politicamente ao PT, partido que em 1989 disputa o 2º turno das eleições.
Mesmo com esse pretenso “céu de brigadeiro” apoiado pelas elites e propalado pelos meios de comunicação, em março de 1992, após uma série de denúncias de corrupção feitas inicialmente pelo irmão mais velho, Pedro Collor, o cenário começou a mudar.
Inicialmente, a tropa de choque do governo conseguiu anular qualquer debate mais aprofundado no Congresso, apesar da crise institucional que havia entre o Executivo e o Legislativo, pois Fernando Collor pouco se dobrou a negociações com o Parlamento, causando intensas tensões entre os poderes Executivo e Legislativo, não por disputa de projetos de classe, mas pela fatia do bolo e das benesses da máquina pública.
Ironicamente, essa pitoresca situação, alimentada por esquemas de corrupção e lobismo, frente à possibilidade de se alternar o grupo gestor que estava à frente do Palácio do Planalto, foi o condimento final que sacramentou a ruptura do Congresso com o Executivo.
Mas o que, nesse primeiro momento, deve ser destacado foi a súbita e abrangente movimentação de massas, principalmente no meio estudantil, que tomou as ruas e praças de praticamente todas as grandes cidades brasileiras, como se fosse um turbilhão indomável, que crescia e alimentava as pressões sobre o Congresso e sobre toda a estrutura política do país.
Após um ato puxado pela UNE e pela UBES na Avenida Paulista, em São Paulo, que reuniu milhares de ativistas, noticiado por toda a imprensa nacional e internacional, o movimento de contestação deslanchou de vez e o lema “Fora Collor”, que passou a ganhar espaço nos noticiários, nas agendas do movimento sindical e dos partidos políticos em geral e se alastrou como rastilho de pólvora explodindo manifestações por toda a parte.
Curiosamente, a direção nacional da CUT, inicialmente, foi contra a defesa do impeachment, orientando as direções locais a evitarem tal slogan nos pronunciamentos do 1º de Maio daquele ano. Apesar disso, setores da oposição cutista conseguiram realizar um encontro nacional na cidade de Belo Horizonte, com mais de 600 entidades de base, aprovando a participação da Central nos comitês do “Fora Collor”.
O que se discutia nos bastidores era a correlação de forças existente no país para se imprimir um movimento de massas que colocaria nas ruas a questão do impeachment, apenas dois anos após a posse do primeiro presidente eleito, depois de 25 anos sem eleições presidenciais!
Por isso não foram poucas as vozes que preferiram defender um “acordo” com o governo, mantendo o presidente eleito em 1989, desde que fosse barrado o modelo de privatizações em curso e pleiteado uma agenda com os movimentos de oposição na perspectiva de um pacto social que assegurasse a governabilidade até o final do mandato.
Vê-se aqui um dos primeiros sinais de conciliação e adesismo à ordem burguesa, pois esse tipo de mentalidade vicejou justamente em meio a setores do PT e da CUT, que viam na crise política em curso e na exposição do adversário um caminho para pactuar acordos institucionais, em vez de investir na radicalização da crítica ao modelo vigente e à composição de classe do governo.
Por sua vez, houve, nesse momento, aqueles que defendiam um chamado mais radical, em torno do “Fora Todos” e “Eleições Gerais Já!”, pois acreditavam que somente com uma eleição geral seria possível limpar o país da corrupção instalada. Na verdade, esperavam com isso mudar a correlação de forças com a possibilidade de elegerem militantes dos movimentos sociais que se destacavam nos protestos que se multiplicavam em todo o país e avançar o processo de mudanças necessárias.
Enquanto a crise política avançava e agudizava a crise econômica, a UNE, a CUT, a ABI e a OAB entram com um pedido de impeachment do presidente no Congresso e dão início, assim, a um novo patamar nesse processo. A crise assumia ares institucionais e colocava no centro do debate político a legitimidade do governo e a autoridade do Congresso Nacional para apurar as denúncias e tomar providências.
Foram pouco mais de dois meses de CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito), termo que foi imortalizado no vocabulário do povo brasileiro, alimentados pela pressão das massas nas ruas e pela guinada da imprensa que, de afagos, passou a castigar diariamente o governo, divulgando diariamente os esquemas de corrupção e extorsão, que envolviam diretamente o tesoureiro de campanha de Collor, Paulo César Farias.
Em um ato desesperado de Fernando Collor de Melo, no dia 16 de agosto, em vez de um desfile em verde e amarelo, proposto pelo presidente em cadeia de rádio e televisão, apelando para sentimentos patrióticos contra a “ameaça de golpe à democracia”, o que se viu foram atos de insubordinação com manifestantes vestindo preto, em sinal de luto por toda parte.
Verde e amarelo via-se apenas na face de uma juventude ousada, aguerrida e impetuosa, os chamados “caras pintadas”, que foram a mola propulsora daquilo que foi o último grande movimento de massas que este país assistiu e que marcou o batismo da jovem democracia representativa aos padrões da institucionalidade burguesa em seu novo patamar.
Mas o movimento do “Fora Collor”, mais do que tradicionalmente, é tematizado como um importante movimento cívico, guardando em si uma rica contextualização e lições de classe que devemos sempre recordar até para compreender o atual estágio da correlação de forças em que estamos.
Primeiro, é importante se ater, desde aquele momento, na opção política que grande parcela das direções dos movimentos de massas defendeu e que foram marca registrada em suas opções políticas até os nossos dias.
Desde o início do processo, a direção da CUT, na época a maior central sindical da AL, apostou na perspectiva de transição; cogitou-se, à época, a possibilidade de um pacto político que mantivesse o presidente no cargo desde que ele assumisse mudanças na condução de seu governo. Essa postura deixava clara a perspectiva de conciliação e oportunismo, apostando fichas no enfraquecimento do inimigo para negociar, em vez de fortalecer o movimento de massas em curso para elevá-lo a outro patamar.
Segundo, mesmo que a correlação de forças não fosse favorável a uma radicalização do movimento, pois ele era amplo e, num determinado momento, chegou a ter um caráter policlassista e diluído na questão puramente institucional, os pilares da estrutura ideológica e econômica do sistema estavam à mostra e, nesse momento, não se teve o devido compromisso em transformar a crise institucional em um debate sobre a real crise do sistema e todas as condicionantes que estavam em jogo, ou seja, não se travou o debate ideológico a fundo, potencializando as lutas e ao mesmo tempo educando as massas sobre o seu real papel de classe e do real papel que cada ator social encenava naquele instante.
Poucas foram as organizações políticas que trataram a questão sob uma lógica de classe e poucos foram aqueles que trataram a luta contra a corrupção, geralmente cunhada por moralismo pedante, como efeito prático, inerente e necessário da lógica do poder instaurado nas democracias burguesas e no sistema capitalista.
Hoje, passados vinte anos do maior movimento de massas após 1984 com a campanha das “Diretas Já!”, os “inimigos” de ontem viraram os “aliados” de hoje.
Roberto Jeferson e Renan Calheiros, por exemplo, leais escudeiros de Collor de Melo no Congresso e assíduos defensores do governo FHC e suas privatizações, foram recrutados para o time de aliados de Lula em seu primeiro governo, protagonizando as mesmas práticas de corrupção, lobismo e extorsão.
Roberto Jeferson faz companhia a Delúbio Soares (dirigente da CUT em 1992), Zé Dirceu (executiva do PT em 1992), José Genoíno (deputado federal e membro da executiva do PT em 1992) no banco dos réus por práticas que possuem a mesma essência política daquelas que derrubaram Collor em 1992.
Por sua vez, não muito diferente do que acontecia em 1992, a criminalização do funcionalismo público e a prática das privatizações continuam presentes nos governos do PT e receituário para o senso comum como se fosse o elixir para os males da administração pública.
Rebaixamento salarial, precarização do serviço público, estagnação no plano de carreira, privatização no modelo previdenciário, são as formas atuais de se atacar os servidores, apesar das pretensas vagas abertas em concursos públicos.
Promoções de PPP’s (Parcerias Público-Privadas), alienação do patrimônio público com a concessão à iniciativa privada do poder de administração, como foi o caso dos aeroportos, são os novos mecanismos para alimentar o mercado com rentáveis fontes de renda e assegurar vultosas parcelas do orçamento, que deveriam ser investidas em áreas sociais, ao pagamento de juros das “dívidas” ao sistema financeiro, o chamado superavit primário.
Mas o que nos causa maior perplexidade e preocupação é o fato de como grandes entidades, historicamente construídas nas lutas pela emancipação da classe trabalhadora, se corromperam e se deixaram levar pela lógica da conciliação e da “boquinha” das migalhas do Estado burguês.
Nesse contexto, não podemos deixar de ressaltar a degenerescência da UNE (União Nacional dos Estudantes) que, de protagonista principal das jornadas de lutas de 1992, passou a ser sócia minoritária do Ministério dos Esportes em seus esquemas fraudulentos e porta voz oficial do governo para os programas educacionais, defendendo o perdão de dívidas tributárias com os tubarões do ensino, através do Prouni e o expansionismo irresponsável do Reuni!
A UNE, que completou em agosto 75 anos de vida, de vitrina de líderes de massa, combativos e revolucionários, de exemplo de lutas e de vanguarda, hoje é vidraça estilhaçada pelas pedradas da imprensa, com acusações de corrupção, fazendo companhia aos mensaleiros nos corredores do STF; ausente das lutas, cogita-se até em acionar a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos…
Devemos ressaltar que, na busca cega por espaços nas estruturas da democracia burguesa e o privilégio à institucionalidade em detrimento da organização autônoma e combativa dos movimentos sociais, essas organizações, militantes e dirigentes acabam reproduzindo e sustentando a mesma lógica do sistema, talvez com retoques menos elitistas e, não muito raro, acabam sendo induzidos, por sobrevivência política, motivados pelo modus operandi do capitalismo, a reproduzirem também as mesmas condutas que as elites usam no exercício da manutenção do poder político sob a égide da democracia burguesa.
A corrupção é uma das condicionantes dessa ontologia determinada pelo sistema capitalista, ontologia essa que motivou a metamorfose dessas entidades e dirigentes em verdadeiros paladinos da ordem burguesa no meio proletário.
Assim, fica demonstrado de modo incontestável que é impossível dar sequência histórica à luta revolucionária contra a dominação de classe burguesa sem levar às últimas consequências a luta contra a corrupção e, do mesmo modo, é impossível dar sequência à luta contra a corrupção sem transformá-la em luta revolucionária contra o regime de dominação burguesa.
O triste ato dessa peça da história recente no Brasil é a repetição de outras encenações, repetidas nos palcos da luta de classes, onde os atores principais são passados a meros coadjuvantes ou contrarregras de um teatro montado e dirigido por aqueles que disputavam apenas o poder para atender às exigências da Companhia de Entretenimentos Capitalismo S.A., à guisa das aspirações inconscientes de uma plateia cansada de tanto drama….
Deve-se entender que, mesmo em correlações de força desfavoráveis, mesmo quando as condições subjetivas não são favoráveis à intensificação de uma luta mais aguda, cabe àqueles que estão à frente dos movimentos sociais e suas entidades de classe a tarefa de manter a independência ideológica e a postura crítica frente a ordem do capital.
E a pior e mais criminosa das ações que hoje essas entidades promovem em nome do “Pacto Social” é o desarme ideológico dos trabalhadores e estudantes, pois se venderam literalmente ideológica e monetariamente aos recursos suntuosos do FAT, do Imposto Sindical e de Ministérios ligados a Políticas Públicas para a juventude, abandonando aquilo que deveria ser a principal tarefa de qualquer organização de classe dos trabalhadores em uma sociedade capitalista, ou seja, combater a alienação política, escancarar as contradições do sistema e educar as massas na luta contra o poder do capital, de que só há saída para as contradições sociais com a construção revolucionária do socialismo.
A subestimação dessa ordem acaba por iludir, cooptar e contaminar dirigentes sem real compromisso de classe, que acabam se atolando na lógica do sistema político tendo que reproduzir a mesma lógica para se manterem existentes nesse contexto e, ao reproduzir a mesma lógica, acabam mantendo o velho sistema da corrupção, da privatização de classe do Estado, da exploração, da alienação, da submissão e, consecutivamente, da morte.
*Fábio Bezerra é membro do Comitê Central do PCB.