As atas do CC que dirigiu a revolução russa
Fundação Dinarco Reis (FDR)
Reproduzimos no link que segue a introdução de Giuseppe Boffa à recompilação das atas do Comitê Central do Partido Bolchevique entre os VI e VII Congressos. Os documentos são mais de 300 páginas de atas das reuniões do Comitê Central do Partido Operário Social-Democrata Russo (bolchevique) realizadas entre 17 de agosto de 1917 e 25 de fevereiro de 1918, os anexos a estas, e ainda as indispensáveis notas.
Segundo os editores do portal odiario.info, de onde obtivemos o material, “o texto de Giuseppe Boffa é não só um indispensável guia de estudo, o que seria suficiente para justificar a sua publicação, como uma preciosa ajuda ao esclarecimento fundamentado de fatos, personagens da revolução e seu papel nos acontecimentos que constituem o que Giuseppe Boffa classifica como a ‘página mais importante de todo o movimento operário e o ponto mais alto até agora alcançado por toda a história humana’ “.
Os Bolcheviques e a Revolução de Outubro
Odiario.info publicará texto para o qual, pela sua importância, chamamos a atenção dos nossos leitores: a Introdução que o historiador comunista italiano Giuseppe Boffa escreveu para as «Atas das reuniões do Comitê Central do Partido Operário Social-Democrata Russo (bolchevique)»* realizadas entre Agosto de 17 e Fevereiro de 1918 (datas do calendário gregoriano).
Passagens desse documento histórico foram citadas por Stalin, pela primeira vez, em 1924. Mas as «Atas» somente foram publicadas na URSS após o XX Congresso do PCUS. Em 1964 François Maspero lançou uma edição francesa e, em 1978, a Siglo XXI mexicana publicou as «Atas» em castelhano sob o título de «Los Bolcheviques y la Revolución de Octubre». Foi um exemplar dessa edição, hoje esgotada, que me chegou às mãos, enviado por um camarada brasileiro.
Li fascinado essas «Atas» – mais de 300 páginas – quase sem interrupções. Com algumas lacunas, elas permitem ao leitor acompanhar os debates dramáticos em que, durante sete meses, menos de três dezenas de revolucionários que formavam então o Comitê Central do Partido Bolchevique (ainda fração do Partido Operário Social Democrata da Rússia, POSDR) tomaram decisões de que iria depender a vitória ou a derrota do projeto comunista.
Estudei uma meia dúzia de Histórias das Revoluções Russas de 1917, de autores soviéticos e ocidentais. Nenhuma é tão esclarecedora da atmosfera dessas reuniões, nenhuma ilumina tão profundamente como as «Atas» as divergências que separavam os dirigentes bolcheviques unidos por um ideal comum.
Naquele tempo não havia gravadores e as «Atas», anotadas à mão em folhas arrancadas de cadernos pela secretária do CC, Elena Stásova, apresentam naturalmente as insuficiências e falhas próprias do ambiente conspirativo posterior às jornadas repressivas de Julho de 17.
Isso não impede que a simples transcrição (mesmo parcial) das intervenções dos principais dirigentes do CC represente uma contribuição para a História muito mais valiosa do que as análises de escritores e acadêmicos que não participaram dessas reuniões secretas.
A Introdução facilita a reflexão sobre uma Documentação densa e valiosa. Boffa lembra que os debates incidiram sobretudo sobre dois temas: a insurreição armada e, depois da tomada do poder pelos bolcheviques, a questão da paz com as Potências Centrais, após o armistício de 15 de Dezembro de 17 que suspendeu a guerra entre a jovem república socialista e o Império Alemão.
Stalin, Sverdlov, Dzerzhinsky, Trotsky, Zinoviev, Kamenev, Bukharin, Preobrazhensky e Aleksandra Kollontay foram alguns dos membros do CC que então discutiram em Petrogrado, por vezes com paixão, as decisões a serem tomadas. Lênin não participou nas primeiras reuniões porque estava na clandestinidade, perseguido pela polícia de Kerenski.
«As batalhas travadas no núcleo de revolucionários que dirigiu a primeira revolução socialista foram autênticas lutas políticas que puseram em jogo elementos essenciais da linha do partido e, por vezes, os fundamentos ideológicos do bolchevismo» – escreve Boffa.
O primeiro grande choque de posições antagônicas ocorreu quando Lênin colocou a necessidade urgente da insurreição armada. Os bolcheviques estavam em minoria do Soviete de Petrogrado e a dualidade de poderes jogava então a favor do governo de Kerenski. Lênin considerava findo o período do desenvolvimento pacífico da revolução porque os mencheviques e os socialistas revolucionários haviam optado por uma aliança tácita com a burguesia reacionária.
Daí o imperativo da insurreição armada orientada para a tomada do poder.
Quando Lênin, em 15 de Setembro, apresentou a proposta tendente à organização «técnica» da insurreição, definindo esta como uma «arte», o debate foi prolongado e tenso.
Dois dirigentes, Kamenev e Zinoviev, opuseram-se frontalmente. É útil recordar que Kamenev, que dirigira com Stalin o Pravda, assumira uma posição crítica quando Lênin, regressado do exílio, expôs «As Teses de Abril» que reformularam toda a estratégia do partido bolchevique. Mas, desta vez, Kamenev e Zinoviev não se limitaram a discordar. Violando a disciplina partidária, publicaram no jornal «Novaya Zhizn», de Máximo Gorki (que então não alinhava com os bolcheviques), um documento em que combatiam e denunciavam a insurreição. Isto às vésperas do assalto ao Palácio de Inverno.
«Traidores e fura greves» foram expressões usadas por Lênin para definir a atitude dos dois dirigentes a que o ligava uma sólida amizade pessoal. Mas, apesar de ter pedido a expulsão de ambos do CC e do partido, a sugestão não obteve maioria e ambos permaneceram em funções. O que confere às «Atas» um interesse especial é a publicação resumida das intervenções dos membros do CC que participaram nessas tempestuosas reuniões. Elas contribuem para desmontar as especulações que correram mundo sobre o que se passou nessas jornadas no Instituto Smolny, quartel-general bolchevique. O próprio John Reed, um amigo da Revolução, apresenta uma versão inexata dos debates no seu livro «Dez dias que abalaram o mundo». A proposta de insurreição foi aprovada com os votos contra de Kamenev e Zinoviev.
As dúvidas de alguns não surpreendem. Esses veteranos bolcheviques não tinham resposta para uma pergunta: era possível uma revolução socialista na Rússia atrasada antes da sua vitória num país desenvolvido do Ocidente? Ou deveria a revolução evoluir como democrática e nacional?
Lênin foi o primeiro a compreender que somente a insurreição armada poderia travar a contrarrevolução em marcha, apoiada pelas potências imperialistas.
O DILEMA DE BREST-LITOVSKY
A outra questão que preencheu as agendas de sucessivas reuniões do CC e ali exaustivamente debatida foi a da atitude a assumir perante a Alemanha imperial após a tomada do poder pelo Partido Bolchevique.
Na Conferência de Abril, em 1917,o Partido tinha decidido opor-se a uma «paz separada» com a Alemanha e «propor a todos os povos uma paz democrática, isto é, sem anexações nem reparações».
O andamento da História tinha tornado utópica essa posição.
A discussão no CC do debate sobre a Paz iniciado após o armistício de 15 de Dezembro é a mais ampla e emocionante das registadas pelas «Atas». Foram dramáticos, veementes, os debates sobre o tema.
As cláusulas de paz apresentadas pelos alemães e austríacos eram indecorosas e humilhantes. Exigiam territórios com um terço da população do país e metade da sua indústria.
O partido estava dividido, com destacados dirigentes a defender posições incompatíveis. A tendência maioritária, invocando decisões tomadas no início da Revolução de Fevereiro, optava pela «guerra revolucionária» como resposta ao imperialismo alemão. Trotsky pretendia que se declarasse finda a guerra e se desmobilizasse o exército, mas sem assinar a paz.
A única posição realista e lúcida, mas minoritária, era a de Lênin. As condições alemãs eram monstruosas. Mas a «guerra revolucionária» era uma ideia romântica. Os soldados desertavam em massa da frente; na prática, já não havia exército. A opção de Trotsky era também inaceitável, porque partia de uma hipótese improvável no momento: a revolução imediata na Alemanha.
Trotsky chefiava a delegação soviética nas conversações com os alemães, os austríacos, os turcos e os búlgaros. A ausência de um consenso levou-o a tomar uma decisão unilateral que mereceu severas críticas de Lênin: retirou-se de Brest declarando finda a guerra, mas não assinou a paz. Na prática impôs a fórmula «nem guerra nem paz!»
A reunião alargada do CC no dia 23 de Fevereiro em que participaram 60 destacados bolcheviques foi angustiante. As «Atas» transmitem a atmosfera emocionante daquela sessão em que se jogava a sorte da Revolução Soviética.
Os alemães tinham denunciado o armistício e, em 21 de fevereiro de 1918, desencadearam uma ofensiva em todas as frentes e, sem encontrar praticamente resistência, estavam quase às portas de Petrogrado.
Na sua intervenção final, Lênin, que ameaçou demitir-se, esboçou um cenário de tragédia: «Se não assinais – disse – estareis subscrevendo a condenação à morte do poder soviético dentro de três semanas». Lênin convenceu. Mas a assinatura no dia 3 de março e a posterior ratificação do Tratado de Brest deixaram sequelas muito dolorosas. Alguns comissários do povo demitiram-se, abrindo feridas no partido.
Resta acrescentar que o Tratado de Brest foi declarado nulo pela Rússia em 13 de novembro, dois dias após a capitulação da Alemanha. Mas, antes de findar a I Guerra Mundial, as potências capitalistas iniciaram o cerco à jovem República Soviética. Os japoneses, em abril, tomaram Vladivostok no Extremo Oriente; os ingleses e os norte-americanos desembarcaram nas terras árticas da Rússia; as esquadras britânica e francesa bloquearam os portos do Mar Negro, enquanto os generais brancos preparavam uma longa guerra civil.
Giuseppe Boffa, sublinhando que a Revolução ganhara por um alto preço a sua primeira batalha defensiva, afirma que os acontecimentos daqueles meses entre o VI e o VII Congressos do Partido Bolchevique ficaram a assinalar «o ponto mais alto de toda a história humana». É minha convicção de que partido algum se aproximou tanto da imagem da democracia ideal como o bolchevique naquelas jornadas.
As «Actas» enfeixadas em «Los Bolcheviques y la Revolucion de Octubre» constituem a mais convincente resposta às campanhas anticomunistas que deturpam e caluniam o centralismo democrático.
Vila Nova de Gaia, 28 de Setembro de 2012
*O texto a que o autor se refere foi publicado no dia 29 de setembro de 2012 e também está disponível na página da Fundação Dinarco Reis em http://pcb.org.br/fdr