Comissão da Verdade (22) – A cassação do vereador
Com o regime militar, os dias tornaram-se realmente sombrios. Hoje seria impossível ou mesmo de difícil compreensão imaginar o que aconteceu naquela época nesta longínqua e perdida província da Amazônia continental. Enquanto no Centro-Sul do País, tinha-se pelo menos a imposição da autoridade usurpadora e golpista via militares de alta patente, generais, almirantes, brigadeiros, entre nós quem dava as ordens eram militares de média patente, quase o guarda da esquina. Claro que assim as expectativas mostravam-se ainda mais desanimadoras, com peculiaridades que se conformavam com as reflexões de Pedro Aleixo, quando dizia que o maior problema na ditadura nem sempre estava na pessoa do ditador, mas na figura do simplório guarda da esquina. Na ponta, o agente rude e despreparado, sempre mais realista do que o rei.
Nos primeiros meses do golpe, distantes e um tanto quanto isolados dos centros de decisão nacional, capitães, majores, coronéis e até sargentos-ajudantes pintaram e bordaram, fizeram e aconteceram. A qualquer momento aqui eram ouvidos e cheirados em tudo e por tudo. De início travaram uma disputa intestina pela conquista do governo do Estado. E aí foi um deus nos acuda, pois travou-se entre eles uma corrida enlouquecida para ver quem prestava maiores serviços à quartelada de abril. Viam fantasmas de subversivos em cada esquina e o número de prisões sem sentido elevava-se a todo instante, numa região que não oferecia o menor risco à estabilidade do regime recém implantado ao Brasil. Mais tarde, um deles teria êxito, o coronel João Valter de Andrade, que, após exercer nos primeiros meses do golpe o cargo de superintendente do Porto de Manaus, terminaria nomeado governador do Amazonas.
No caso da cassação do mandato do vereador Manuel Rodrigues a situação mostrou-se emblemática. Rodrigues era operário da construção civil, líder sindical e foi eleito em Manaus pelo Partido Comunista Brasileiro, embora abrigado na legenda do Partido Trabalhista Brasileiro, uma vez que o velho Partidão não tinha existência legal no País. Homem simples, ao depor em inquérito instaurado na Delegacia de Ordem e Política Social – DOPS, afirmou que “se defender o povo era ser comunista, que ele então se declarava comunista”, fato que lhe custaria a liberdade, o mandato e os direitos políticos. Cópia integral do procedimento policial foi imediatamente encaminhada à Câmara de Vereadores pelo Chefe de Polícia, que requereu fossem adotadas providências urgentes e indicadas para o caso.
Em seguida, com evidente manobra intimidativa, o coronel César Rômulo Silveira Júnior, comandante da Guarnição Federal de Manaus e da 29a. Circunscrição de Recrutamento do Exército, enviou ofício à Câmara Municipal, interpelando-a sobre as ações que teriam sido tomadas em relação ao vereador assumidamente comunista. Os vereadores, mesmo sob intensa pressão militar, ainda tentaram uma saída regimental e informaram ao militar que a questão estava sendo submetida à Comissão de Constituição e Justiça da casa parlamentar, para elaboração de parecer a respeito.
Mas não houve como conter o temperamento radical e a volúpia persecutória do militar, que então convocou a direção da Câmara para reunião em seu gabinete, a fim de obter uma decisão rápida que pusesse fim ao mandato do vereador Manuel Rodrigues, já preso no Quartel do Exército em São Jorge, desde 15 de abril de 1964. Os vereadores ainda ponderaram que a Câmara não tinha competência para cassar mandatos legislativos de seus membros, porquanto não poderia passar por cima das atribuições do chamado Comando Supremo Revolucionário, único com poderes para praticar ato dessa natureza ou de tamanha gravidade, com fundamento no Ato que procurou institucionalizar a “Revolução” de Abril.
Tudo em vão. Dobrados pelo tacão militar, os vereadores foram obrigados a ceder frente aos argumentos oblíquos do coronel César Rômulo, elaborados sob encomenda a qualquer leguleio de plantão. No caso, ocorria exatamente o contrário, segundo o militar, uma vez que o Comando Supremo Revolucionário é que jamais passaria por cima de qualquer deliberação do parlamento municipal, pasmem os leitores. Portanto, competiria à Câmara, e somente a ela, a decisão sobre a cassação do mandato do ‘perigoso subversivo’ Manuel Rodrigues. Era mais do que o sinal verde para a cassação, diante da iminência do vermelho que poderia cair sobre todos da instituição, indistintamente. Para bom entendedor, meia palavra já bastaria, observou um dos parlamentares presentes ao encontro. Enfim, que fossem os anéis, contanto que salvos os dedos, complementou.
A coação foi de tal ordem insuportável que a castração parlamentar consumou-se, mesmo em conflito com as normas regimentais e com parecer prévio da Comissão de Constituição e Justiça. No Amazonas, cassados por suas respectivas casas, apenas o vereador Manuel Rodrigues e o deputado estadual Arlindo Porto.
Manuel Rodrigues exerceu o mandato enquanto durou com seriedade e coerência. Em linhas gerais, modesto por formação e sujeito às suas naturais limitações pessoais, seguia os rumos ou ditames traçados por sua organização partidária, a linha ideológica do Partidão. No dia 10 de junho, como se não bastasse a punição ilegal e injusta da Câmara, teve suspensos os direitos políticos, em companhia de Aldo Morais, secretário de Finanças do segundo governo de Plínio Coelho, do deputado Arlindo Porto e do vice-governador do Estado da Guanabara, João Batista, em ato assinado pelo presidente Castelo Branco, com base no famigerado Ato Institucional.
Somente Manuel Rodrigues e o barbeiro Belarmino Marreiro, todas as vezes quando presos, assumiam a filiação comunista de carteirinha, claro que com uma grande dose de singeleza, sem nenhuma malícia, mas sem dúvida também com muito destemor.
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