O Inverno Árabe e os Ilusionistas Revolucionários
Uma questão nos é colocada em face das revoltas árabes: como avaliar tudo isso? A resposta exige uma visão sóbria dos eventos.
Vamos começar com a Síria. Há quase dois anos um movimento de oposição foi formado, sendo então atropelado pela história em um tempo muito curto. Diferentes interesses internos e externos converteram insatisfação social em uma feroz guerra civil.
Não há nenhum sinal de revolução (não mais). Toda a região está no meio de um processo de transformação territorial e econômica. E com a ajuda de uma regressão monárquica, os estados ocidentais estão interferindo na situação em busca de vantagens. Isso é válido também para Túnis, Cairo e Trípoli, onde autocratas mais ou menos orientados secularmente foram removidos para dar a «cartada islâmica» como uma «reserva política». Esta «cartada islâmica» apareceu pela primeira vez na paisagem geopolítica como um parceiro dos Estados Unidos no início dos anos 1980, durante a guerra contra as tropas soviéticas no Afeganistão. Hoje, as diferentes alas políticas da Irmandade Muçulmana representam a expressão de massas mais eficaz desta «cartada islâmica».
A percepção crítica europeia do “Arabellion” tem de ser responsabilizada por conta de dois problemas principais: o menosprezo do fator externo e a subestimação da carência de um programa econômico-social das forças revoltosas. Mas uma coisa é certa: o amplo movimento de oposição descontentou o sistema autocrático, que acabou por intensificar os vários bloqueios sociais e o impacto social da crise econômica mundial na periferia. Este último é, claro, também devido a influências externas.
O potencial logístico e financeiro de atores externos é muitas vezes ignorado quando falamos de mobilização oposicionista ao redor do mundo. Vamos falar sobre as chamadas grandes Organizações Não-Governamentais (ONGs) primeiro: National Endowment for Democracy, National Democratic Institute, Instituto Republicano Internacional, Fundação Konrad Adenauer, Westminster Foundation… A grande maioria desses institutos levam o “N” de ONG injustamente. Desde que Bill Clinton apoiou grupos sérvios locais, tais como “Otpor” (“resistência”) contra os ditadores impopulares, uma verdadeira indústria de interventores da sociedade civil se desenvolveu. Essas O”N”Gs viajam de um ponto a outro enchendo suas contas de dinheiro; identificam o descontentamento local, organizam seminários e recrutam líderes de opinião que sejam simpáticos aos planos de reconstrução dos EUA e UE. Seu objetivo comum é a chamada mudança de regime. Onde os lutadores civis não correspondem à tarefa de conduzir adiante a democracia liberal com uma garantia suficiente para o liberalismo econômico, os meios de intervenção civis são complementados militarmente. Isso aconteceu (e ainda acontece) contra os dois únicos regimes seculares com remanescências socialistas, Líbia e Síria. Isso mostra abertamente a direção política das intervenções externas, quando as forças militares são usadas nos casos da Líbia e da Síria e nem mesmo são levadas em consideração nos casos da Arábia Saudita ou Iêmen.
Uma coisa que qualquer observador do “Arabellion” poderia facilmente constatar, mas contudo é ignorada na maior parte das vezes: a falta de programa sócio-econômico da insurreição. Bashar al-Assad estava certo quando afirmou, no início da Ópera de Damasco, em janeiro de 2013, não ver qualquer “revolução árabe”, pois uma revolução precisa de uma idéia. Essa ideia está realmente faltando.
Agora se pode argumentar formidavelmente sobre o conceito de revolução. Se um levante merece o adjetivo de “revolucionário” não depende de quão ígneo ou caótico ou planejado ele seja, mas uma revolução deve incorporar pelo menos a sua raiz etimológica latina: ela visa a uma transformação social e – como a sociedade é conduzida pela economia – econômica. Revolução deve mudar as circunstâncias sociais e econômicas. Simplesmente reformar alguns elementos políticos não traria tais circunstâncias à baila.
Neste sentido, nós precisamos – excetuando-se pequenos grupos relativamente insignificantes – de idéias revolucionárias na oposição árabe, com objetivo de transformar a sociedade no sentido da justiça social e econômica. Na melhor das hipóteses, um programa cultural pode ser visto, se se compreender o Islã como uma identidade cultural. Em vez de inovações revolucionárias para uma sociedade melhor, mais igualitária, a rebelião é capturada por um único pensamento consensual, que aponta para uma mudança de regime.
Qual é a ideia motriz da virada árabe, que ocorre 20 anos após a transformação da Europa Oriental? Depois de quase dois anos de instabilidade, pode-se ver mais e mais claramente: a Irmandade Muçulmana, com todas as suas nuances e conflitos internos, lidera o projeto de transformação. Forças de esquerda e burguesas-ocidentais podem ter inicialmente participado das revoltas, mas não conseguiram se aproveitar da situação. Os vencedores são grupos ultraconservadores, o que pode alijar as massas por meio da ideologia religiosa em vista de uma vida melhor após a morte. A propósito: não é surpreendente que as famílias líderes da Irmandade Muçulmana, por exemplo, no Egito, disponham de bons meios financeiros.
O verdadeiro papel geopolítico da Irmandade Muçulmana parece comparável ao dos jogadores no banco de reservas, que são usados porque o autocrata foi ferido, digamos, por descrédito social. Eles são apoiados por instituições financeiras internacionais e grupos globais de capital porque estão dispostos a subordinar-se aos planos ocidentais de transformação. Seus próprios interesses econômicos como elites garantem a manutenção ou mesmo a extensão das quatro liberdades do capitalismo, que são: a livre circulação de capitais, mercadorias, serviços e (alguns) trabalhadores. A respeito disso, as rebeliões de Túnis ao Cairo funcionaram: em nenhum lugar estão sendo implementadas novas regulações econômicas, pelo contrário: cada um dos países que nas últimas décadas operaram com propriedades estatais e medidas para proteger os produtores locais da concorrência internacional, podendo ter navegado sob bandeiras socialistas ou nacionalistas, mas que foram de algum modo pervertidos e corrompidos. Após a chamada Primavera Árabe, tiveram que abrir seus mercados radicalmente e atravessam um período de difícil transição em termos de novos proprietários … Portanto – semelhante às mudanças na Europa Oriental – uma aliança do capital operado internacionalmente e da mídia dominante foi formada. Parece ter tido sucesso até mesmo na redefinição de termos tradicionais como “revolução” e “solidariedade” como meios de transformação econômica para os participantes globais.