O LEGADO DE CHAVEZ NA REVOLUÇAO BOLIVARIANA (1)

Por Miguel Urbano Rodrigues

O sarcófago ergue-se a meio de um pátio, no Quartel de La Montaña.

É de um granito cinza escuro. Em volta, noite e dia, quatro soldados com o uniforme vermelho e os gorros negros do Exército Libertador de Bolivar permanecem imoveis numa guarda de honra que é rendida de duas em duas horas.

Na galeria que rodeia parcialmente o túmulo abre-se uma pequena e estranha capela. Nela não há imagens da Virgem Maria, nem de santos. Sobre o altar destaca-se Jesus numa grande cruz, emoldurada de ambos os lados por fotos de Hugo Chávez.

Naquele dia eramos 200 os visitantes, divididos em quatro grupos. Vínhamos do X Encontro de Intelectuais, Artistas e Lutadores Sociais em Defesa da Humanidade.

Ao longo do último meio seculo conheci muitos mausoléus: o de Lenine em Moscovo, o do búlgaro Dimitrov em Sofia, o do turco Tamerlão em Samarcanda, o do califa árabe Ali em Masar-i-Sharif, no Afeganistão. E outros.

O de Hugo Chávez – intitulado «monumento Flor dos quatro elementos» – não traz à memória qualquer deles. Ao fundo, num nicho da parede, uma escultura de Bolivar em bronze.

A atmosfera ali é a de um santuário. Invisível na urna encerrada no túmulo de mármore, el comandante supremo é venerado como um santo.

Nunca vi algo similar. Não eram apenas os venezuelanos que choravam ao entrar na capela. Pelas faces de muitos, incluindo de estrangeiros ateus, também escorriam lágrimas.

Foi naquele Quartel que Chávez, quando o comandava como tenente-coronel, desembainhou a espada em 1992, desafiando o governo corrupto e vassalo de Carlos Andrés Pérez, inspirado pelo famoso juramento de Bolivar no Monte Aventino, em Roma.

A Paróquia mudou de nome. Atualmente chama-se 23 de Janeiro, data da rebelião, e é um bairro revolucionário.

Na galeria que rodeia o pátio onde foi erguido o túmulo está instalado um museu. Nele se pode seguir a vida de Chávez desde a infância através de fotos, documentos, objetos, decretos, trechos de discursos que marcaram o rumo da Historia.

Nas paredes, em algumas dezenas de metros, aparece condensada, nas etapas de uma vida tempestuosa, a trajetória do soldado que rompeu as cadeias de uma sociedade semi colonial e fez da Venezuela em 14 anos a vanguarda das avançadas revolucionárias da América Latina.

O sol descia já no horizonte quando o nosso grupo atravessou a floresta das 34 bandeiras dos países de Nuestra América – o sonho de Simon Bolivar retomado por Chávez.

Na saudação do comandante do Quartel aos participantes da Rede em Defesa da Humanidade e no discurso da jovem médica miliciana que os acompanhou transparecia uma inquebrantável confiança no futuro da Revolução. Ambos falaram com paixão.

Senti que para se compreender as transformações em curso na Venezuela é preciso não somente estar familiarizado com a cultura caribenha como assimilar uma contradição que choca muitos europeus: a coexistência harmoniosa de duas conceções do mundo na aparência antagónicas: uma materialista outra idealista.

Algo parecido ao que aconteceu em Cuba com o marxismo-martiano ocorre hoje na Venezuela num contexto histórico e social muito diferente.

No pensamento e na acção de Chávez fundem-se em turbilhão uma religiosidade profunda, quase dolorosa, com a consciência lucida de que a rutura dos mecanismos da exploração do homem seria impossível sem o choque frontal com o imperialismo. A opção bolivariana, transcorrido mais de um século e meio da morte do seu herói tutelar, exigia a destruição do capitalismo. E ele percebeu que na luta ciclópica a travar para atingir esse objetivo a única alternativa ao sistema de opressão hegemonizado pelos EUA é o socialismo.

A noite descera já sobre o casario pobre do Bairro 23 de Janeiro quando iniciámos a descida para o centro da cidade. Uma lua muito branca, agressiva, iluminava o cerro escuro que fechava o horizonte.

Havia muita gente nas ruas. Nas paredes sucediam-se murais com slogans revolucionários e palavras de amor ao presidente falecido.

Contei várias capelas improvisadas pelos moradores. Em todas elas o retrato de Chávez e a palavra Santo!

Para milhões de venezuelanos, o homem que restituiu a esperança e a dignidade ao seu povo tornou possível o que parecia impossível. Identificam nele um santo milagreiro.

O GRANDE DESAFIO

A dimensão de Hugo Chávez como revolucionário, herdeiro do projeto bolivariano, exige dos comunistas que o respeitam e o admiram uma reflexão serena sobre o homem e a sua obra.

Na atmosfera efervescente de Caracas debater o tema do chamado «socialismo bolivariano» nestas semanas foi para os intelectuais, artistas e militantes revolucionários estrangeiros que ali foram transmitir solidariedade uma tarefa gratificante mas complexa.

Hugo Chávez tomou consciência a partir do seu segundo mandato que sem um partido revolucionário revolução alguma – como afirmou Lenine – pode atingir os seus objetivos.

E, por assumir essa evidência, tomou a decisão de fundar o Partido Socialista Unido da Venezuela.

Hoje conta com 7 milhões de inscritos. Desse crescimento rapidíssimo e avassalador transparece a fragilidade e não a força da organização. O PSUV foi criado de cima para baixo e a ele aderiu uma elevada percentagem de cidadãos. No chavismo cabem tendências muito diferenciadas, algumas incompatíveis.

Foi no contexto de um intenso debate ideológico que um núcleo de intelectuais latino americanos proclamou que na Venezuela estava a surgir um caminho inovador para o socialismo. Ganhou nome próprio: «Socialismo do século XXI».

No âmbito do programa do X Encontro da Rede em Defesa da Humanidade, a conferência de Garcia Linera, vice-presidente da República da Bolívia, expressou, com maior clareza do que outras intervenções, um olhar sobre a História e o Socialismo que suscitam hoje polemica.

É positivo que um político com a sua responsabilidade – é o mais íntimo colaborador de Evo Morales – manifeste irrestrita solidariedade com a revolução bolivariana.

Falando sobre Chávez e a sua obra, não creio, porém, que – apesar de aplaudido com entusiasmo – tenha contribuído para aprofundar a compreensão do político, do estratego e do seu legado.

Orador de talento, culto, comunicador insinuante, Linera é um académico marxiano, mas não um marxista. Ao afirmar ser leninista confunde em vez de esclarecer, porque a sua conceção do Estado, do Partido, da transição para o socialismo, marcadas por um anti sovietismo transparente, não somente diferem das expostas pelo grande revolucionário russo como são com elas incompatíveis, negando o socialismo científico.

Linera sugere, aliás, que o jovem tenente-coronel Chávez, o revolucionário de 92, ao conquistar a Presidência, já delineara os contornos da opção pelo socialismo no seu projeto bolivariano.

A afirmação distorce a História. Creio que é mérito grande de Chávez ter caminhado para a conclusão de que o confronto com o imperialismo era inseparável de uma opção pelo socialismo através de uma evolução complexa do seu pensamento político e do estudo da praxis do processo. Aprendeu muito nas várias etapas da revolução.

O Hugo Chávez da maturidade, sem abdicar do seu estilo irrepetível, com matizes populistas, foi sujeito e objeto de uma transformação profunda ao longo dos seus mandatos presidenciais.

Censuram-lhe o voluntarismo. Não é uma virtude em política. Mas é muito improvável que, se tivesse renunciado a facetas do seu caracter explosivo, não o recordássemos hoje como um dos homens que mais contribuíram nas últimas décadas para criar história profunda, na aceção de Lucien Fèbvre.

Recordo os primeiros programas do «Alô Presidente»,  o inacreditável diálogo que mantinha, país adentro, com a sua gente. Que distancia a percorrida até ao Chávez da última campanha eleitoral, ferido pela doença que ia abreviar-lhe a vida.

Regresso de Caracas com a certeza de que continuará a ser alvo de uma chuva de insultos e calunias na campanha eleitoral em curso. Mas nem seus piores inimigos ousam negar que Hugo Chávez Frias, desaparecido fisicamente a 5 de março, mudou o rumo da História da Venezuela como ninguém desde Bolívar.

Ele conseguiu estabelecer com os oprimidos do seu povo uma relação maravilhosa, de contornos quase mágicos.

Vila Nova de Gaia, 31 de Março de 2013

 

O LEGADO DE CHÁVEZ NA REVOLUÇÃO BOLIVARIANA – conclusão

Por MIGUEL URBANO RODRIGUES

 

A atmosfera de Caracas em vésperas de eleições era a da capital de um país órfão.

Quando ali desembarquei, dias após o funeral de Chávez, El Comandante, como se vivo estivesse, continuava a polarizar o discurso dos defensores da Revolução e o da oposição.

O elogio e o insulto ao ex-presidente ocupavam o tempo e o espaço na televisão, na rádio, nos jornais.

Mas o forasteiro recém-chegado apercebia-se imediatamente de que Nicolás Maduro será eleito no próximo dia 14, obtendo uma confortável maioria. Ao partir para Cuba em dezembro, a fim de ser submetido a uma nova operação ao tumor canceroso, Hugo Chávez indicou o sucessor que deveria assegurar a continuidade da Revolução. Estava consciente de que a sua esperança de sobreviver a uma cirurgia complexa era escassa. Amando intensamente a vida, pressentia a proximidade da morte. E a mensagem funcionou.

Porquê Maduro e não Elias Jaua? – perguntavam muitos dos estrangeiros que participaram no X Encontro de Intelectuais, Artistas e Lutadores Sociais em Defesa da Humanidade realizado em Caracas a 25 e 26 de março?

Elias,  ministro dos Negócios Estrangeiros desde o inicio do ano, é um intelectual muito culto com uma sólida formação política. Sociólogo,ex -professor da Universidade Central da Venezuela, desenvolveu um trabalho notável como ministro da Agricultura. Mas não é um comunicador; falta-lhe carisma. Nas últimas eleições concorreu ao governo do Estado de Miranda e perdeu. Foi derrotado por Capriles Radonski, o líder da heterogénea coligação de forças da direita que agora se apresenta novamente como candidato à Presidência.

Maduro é um ex-maquinista do Metro que subiu a pulso, um caribenho que de Chávez herdou a imaginação, o sentido do humor, o temperamento fogoso, a capacidade de comunicar com os excluídos e transmitir numa linguagem direta e simples o sonho de Bolívar. Os media reacionários e os senhores da grande burguesia chamam-lhe «o Encarregado» e contestaram desde o início a sua Presidência interina, afirmando que a transferência de poderes era ilegítima, violando a constituição. Não foi esse porém o parecer do Supremo Tribunal.

O povo, sujeito da História, aprovou a decisão de Chávez e a popularidade de Maduro cresceu de semana a semana.

A CONSPIRAÇÃO EM MARCHA

Por si só, a participação de altas personalidades da Administração Obama, incluindo Hillary Clinton, na campanha de calúnias desencadeada nos EUA contra a Revolução Bolivariana traz a certeza de que o imperialismo vai intensificar a sua ofensiva para desestabilizar o país nas próximas semanas.

A famigerada agência de rating Moody’s apressou-se a rebaixar a nota da Venezuela após a desvalorização do bolivar em 31,7%. O The New York Times e o Wall Street Journal esboçam um panorama caótico da situação económica e financeira. Mentem despudoradamente. A medida e outras simultâneas – como a extinção do Sistema de Transações com Títulos em Moeda Estrangeira, SITME – foi uma resposta indispensável aos ataques especulativos dos grandes grupos económicos que visavam a moeda nacional. A fuga de dólares do país assumira proporções alarmantes. E o volume do câmbio negro aumentara muito, coincidindo com o desabastecimento de alguns produtos de primeira necessidade.

O comércio continua a ser dominado por um reduzido número de grupos económicos. No ano passado, de 59 000 milhões de dólares de bens importados, 30 000 milhões foram controlados pelo setor privado.

Os problemas de desabastecimento provocados artificialmente lembram situações ocorridas no Chile durante o governo da Unidade Popular. Sem qualquer justificação, de repente, desaparecem da rede de supermercados artigos essenciais. Depois reaparecem, mas faltam outros.

A Venezuela importa quase 30 % dos  alimentos. Graças aos progressos da Reforma Agrária, é hoje praticamentre autosuficiente em carne e lacticínios Para as carências de géneros de primeira necessidade contribui  enorme aumento do consumo de muitos produtos. Milhões de pessoas que não tinham acesso, antes da Revolução, a determinados bens podem agora adquiri-los graças ao aumento dos salários e a outro padrão de vida.

Lutar vitoriosamente contra a sabotagem da economia é tarefa dificultada pelo controle que a oposição tem dos principais órgãos de comunicação social.

O aumento da inflação é também inseparável da permanente ofensiva das forças contra revolucionárias numa sociedade na qual o modo de produção e as relações de produção continuam a ser capitalistas.

Mas carecem de fundamento as noticias sobre a iminência de uma crise financeira. As reservas em divisas da Venezuela são das maiores do mundo graças ao afluxo de dólares proporcionado pela exportação do petróleo.

DISCÍPULO DE CHAVEZ

Os estrangeiros que participaram no X Encontro de Intelectuais, Artistas e Lutadores Sociais Em Defesa da Humaniade  tiveram a oportunidade de manter com Nicolas Maduro uma conversa que durou horas, iniciativa somente possível, pela atmosfera  existentes num país da América Latina que se propõe a construir o Socialismo.

No grande salão Bicentenário do Hotel Alba foi montada uma mesa triangular rodeada de bancos altos com suportes metálicos para apoio dos pés. Num dos lados sentou se Maduro. Nos outros dois Garcia Linera, vice presidente da Bolívia, o cineasta argentino Tristán Bauer, o jornalista venezuelano Earle Herrera e Elias Jaua, ministro dos Negócios Estrangeiros. Em volta da mesa, em três bancadas, ocuparam lugares uns 60 convidados estrangeiros, entre os quais o norte-americano Ramsey Clark e a colombiana Piedad Cordoba. O cenário fez- me pensar num teatro elisabetiano em dia de estreia de uma peça de Shakespeare.

Não tomei notas. Maduro abriu as intervenções. Falou de improviso, demoradamente. Do Comandante, herói tutelar, da sua grandeza, da sua obra, da sua luta permanente contra o imperialismo e golpistas e contrarrevolucionários de múltiplos figurinos. Evocou episódios reveladores da excecionalidade e do humanismo de Chávez, falou sobretudo do legado do Comandante, do desafio que representa para os companheiros e o seu povo dar continuidade à Revolução rumo ao Socialismo.

Maduro não é marxista e provavelmente não estudou Marx nem Lenine. O seu discurso é coloquial, emotivo, mas a mensagem, a opção revolucionaria, foi assimilada por aquela audiência atípica e algo heterogénea.

Depois falaram os outros quatro membros da Mesa, cada qual deixando transparecer a sua mundividência. Garcia Linera, na apologia de Chávez, expressou mais uma vez uma visão académica não marxista das avançadas revolucionárias em andamento na América Latina.

Maduro comentou essas intervenções, depois respondeu a uma chuva de perguntas.

O ambiente era encantatório. O encontro findou com música, poesia, canções revolucionárias, uma delas de uma jovem moçambicana.

DESAFIOS EM CADEIA

Maduro vai ser eleito no dia 14. Quase certamente com uma vantagem sobre Capriles superior à obtida por Chávez. Isso porque, morto, Chávez será o grande eleitor.

Ele está consciente das enormes dificuldades que terá de superar. É um discípulo, um continuador, um bolivariano, mas não é Hugo Chávez.

Em poucas semanas já marcou um estilo próprio.

A sua presença na Conferência Nacional do Partido Comunista da Venezuela – surpreendeu – é um exemplo- alguns observadores. O facto de o PCV ter proclamado Maduro como seu candidato à Presidência antes do próprio Partido Socialista Unido da Venezuela parece indicar que o futuro chefe do Estado pretende reforçar a cooperação com todas as forças revolucionárias que se batem com firmeza no país pela difícil construção do Socialismo.

Um dos grandes desafios a enfrentar será o das complexas relações com a Colômbia.  Desde a época de Bolívar que o diálogo entre os dois países – unidos por um período brevíssimo – foi sempre difícil. A Colômbia é o seu principal parceiro económico na América Latina. Milhões de imigrantes colombianos trabalham na Venezuela

Durante os governos de Álvaro Uribe a ameaça de uma guerra de baixa intensidade na fronteira ocidental foi muito real. Tropas colombianas e bandos de paramilitares penetraram muitas vezes em território venezuelano perseguindo combatentes das FARC. O precedente criminoso de Sucumbios, quando a Força Aérea colombiana bombardeou o acampamento do comandante Raúl Reyes, não foi então esquecido.

Com Juan Manuel Santos as relações com Bogotá melhoraram muito. Mas o regime colombiano é na prática uma ditadura oligárquica com matizes fascizantes. Oito bases militares dos EUA instaladas no país são prova de que é uma semicolónia.

Um desfecho nas conversações na Mesa de Diálogo de Havana entre as FARC e o governo de Bogotá que trouxesse uma Paz autentica à Colômbia desanuviaria o relacionamento com a Venezuela. Mas é improvável que isso aconteça.

A eleição de Nicolas Maduro – repito – é   quase uma certeza.  Mas seria pouco responsável avançar com previsões sobre o rumo do projeto bolivariano de construção do Socialismo na Venezuela. A Administração Obama tudo fará para o inviabilizar.

De Caracas regresso com a convicção de que a solidariedade internacionalista com o povo de Bolivar e os dirigentes que assumem o legado de Hugo Chávez assume uma grande importância no contexto da atual crise mundial.

Vila Nova de Gaia,2 de Abril