Irã e Israel: A dupla face da mídia e do Conselho de Segurança da ONU

À semelhança do que aconteceu em relação ao Iraque com as mentiras fabricadas de que Saddam Hussein (1) possuía instalações com armas de destruição maciça; (2) que não queria deixar entrar os inspetores da Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA); (3) de que o ditador teria sido corresponsável pelos ataques às torres gémeas; a imprensa e os círculos de opinião de referência internacionais e portugueses têm vindo a intensificar o enredo de suspensão e de medo em torno das populações ocidentais em relação ao Irão.

Se atentarmos às palavras-chave de Obama proferidas na conferência da AIPAC [1] , a 4 de Março de 2012, notamos que estas aglutinam um padrão de ideias-chave, de discursos que vêm sendo reproduzidos constantemente pela imprensa nacional e internacional, partilhados por círculos de opinião, que têm diabolizado o Irão e legitimado sanções económicas, acusações e ameaças de intervenção militar (dos Estados Unidos e Israel) que têm vindo a aumentar cada vez mais de intensidade: “ameaçam varrer Israel do mapa”; “apoiam grupos terroristas empenhados na destruição de Israel”; “terrorismo”; “programa nuclear do Irão”; “ameaça”; as “armas mais perigosas do mundo”; “armas nucleares”; “Irão não cumpre as suas obrigações”; “regime iraniano”; “caminho que os vai levar a uma série de consequências se eles não cumprirem” [2]

Os círculos de formação de opinião veiculam atualmente o Irão como o perigo número 1 para a ordem mundial, e importa dissecar e compreender o alcance destas expressões alusivas às “ameaças” iranianas:

“Varrer Israel do mapa”

A verdadeira versão do que disse Ahmadinejad – “Este regime que ocupa Jerusalém deve ser eliminado das páginas da história” – aparentemente foi eliminada da face do planeta da imprensa de referência e resta a inquestionada e repetida mentira do que Ahmadinejad nunca disse: que “Israel deve ser varrido do mapa”. A citação verdadeira de Ahmadinejad, já assumida pelo próprio, fez referência à mudança de regime em Israel que das palavras passa às ações de, com os tanques e buldózeres da Caterpillar, apagar do mapa inteiras aldeias de Palestina, de matar e/ou expulsar os seus moradores para construir colonatos. Ainda assim, as práticas de Israel não são dignas de sanções nem da atenção da generalidade dos/as comentadores/as e agências noticiosas.

O pseudo programa nuclear militar do Irão e a vista grossa ao armamento nuclear israelense

Tal como aconteceu com o Iraque a partir de 2001, o Irão é mencionado pela imprensa de referência (incluindo a portuguesa) como um “regime perigoso” para o Ocidente porque as reservas de energia nuclear estão a ser utilizadas para fins militares. O primeiro ministro de Israel, Benjamin Netanyahu continua a pressionar os Estados Unidos para, provavelmente em aliança, atuarem militarmente. É uma das vozes mais acusatórias de que o Irão possui instalações que têm como objetivo a produção de armas nucleares:

“Continua, sem interferência, a obter capacidade de produzir armas nucleares e, portanto, bombas nucleares” e há que colocar uma linha vermelha (red line) no programa nuclear iraniano: “Esperar por quê? Esperar até quando?” [3]

Diz ainda Netanyahu:

“É inaceitável que um país que viola de forma flagrante as resoluções do Conselho de Segurança e da AIEA (…) possa beneficiar dos frutos da energia nuclear” [4]

As diabolizações de Israel e EUA em relação ao Irão no que diz respeito à energia nuclear dividem-se em duas ordens de questões, que não são controversas, e que importa serem esclarecidas: (1) a legitimidade que o Irão tem em produzir energia nuclear e (2) os relatórios da AIAE.

1. O Irão tem toda a legitimidade em produzir energia nuclear para fins pacíficos. Dentro dos termos do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TPN), de acordo com o artigo IV, todos signatários, incluindo o Irão que o assinou em 1969, tal como os Estados Unidos e outros países signatários, têm todo o direito em desenvolver energia nuclear para fins civis, portanto para fins pacíficos. Dentro tratado de não proliferação a energia nuclear é, então, um óbvio direito de qualquer país. Todos os Estados que assinaram o TPN têm o dever de cumprir com o artigo IV.1 que declara:

“Nada neste tratado deve ser interpretado como algo que afete o direito inalienável de todas as Partes do Tratado desenvolverem pesquisa, produção e uso de energia nuclear para fins pacíficos sem discriminação e em conformidade com os artigos I e II deste Tratado.” [5]

Neste contexto, Israel, enquanto país não signatário do TNP, não tem qualquer direito legal a desenvolver energia nuclear sem a supervisão da AIEA. Adicionalmente, ao contrário do que fez o Irão e outros Estados da região, Israel nunca abriu as suas instalações aos inspetores da AIEA. As infrações de Israel neste âmbito, juntamente com o não escrutínio dos principais meios noticiosos, aumentam de gravidade a partir do momento em que existem inequívocas instalações de produção nuclear para fins militares em Dimona (Israel) tal como foram detalhadas pelo ex. técnico nuclear israelense Mordechai Vanunu (em 1986).

Disse Vanuno, em 2005, a Eileen Fleming:

“Nixon parou com as inspeções e concordou em ignorar a situação. Como resultado, Israel aumentou a produção. Em 1986, existiam mais de duzentas bombas. Hoje [2005], pode haver plutónio suficiente para produzir dez bombas por ano” [6]

O sacrifício de Vanuno da sua própria liberdade em nome da verdade foi em vão porque as suas descobertas têm muito pouco retorno da imprensa e dos círculos de opinião ocidentais. O “estatuto” de Israel de produtor de armamento nuclear nem sequer é ambíguo, ou especulativo (como pelos vistos é no caso do Irão). É reconhecido internacionalmente e desde cedo logo após a constituição de Israel enquanto Estado que, por David Ben-Gurion, instituiu um programa de armamento nuclear, em meados da década de 1950, como parte da sua “política ativista de defesa” [7] . Para além de no passado terem vendido clandestinamente armas nucleares a África do Sul, mesmo neste ano de 2012, Israel vendeu mísseis nucleares para a Alemanha para armar submarinos cujos oficiais alemães, como Hans Rühle, chegaram a admitir a dimensão nuclear da transação designada de “Operação Samson”:

“Eu assumi desde o início que os submarinos teriam capacidade nuclear.” [8]

As cerca de 200 bombas nucleares que Israel detinha em 1986, aumentando para um número atual situado entre 300 a 400, não tiveram nem têm o mediatismo, nem mereceram, ou merecem, qualquer sanção do próprio Conselho de Segurança das Nações Unidas. E qual a razão? Simplesmente porque Israel tem o apoio incondicional (militar, político, económico e diplomático) [9] dos Estados Unidos que armam e apoiam a aquisição e produção de armamento israelense que é utilizado, por exemplo, para cometer flagrantes atentados contra os direitos humanos na Palestina com o fim de “conquistar território pela guerra”. Adicionalmente, os Estados Unidos, Israel e aliados passam incólumes a críticas dos seus não cumprimentos da lei internacional e são constantemente representados como vítimas, paladinos dos bons valores e guardiões da segurança global.

Os relatórios da AIEA

2. Ao contrário de Israel, o Irão permitiu que os inspetores da IAEA visitassem as instalações onde não foram encontradas quaisquer provas de desenvolvimento de energia atómica para fins militares. Os próprios serviços de inteligência dos EUA, como a CIA, também não encontraram provas que o Irão produz armamento nuclear. Mas quais são, afinal, os pontos críticos revelados no último relatório da Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) de 31/Agosto/2012?

No que diz respeito às “Atividades relacionadas com o Enriquecimento” o relatório confirma que “o Irão não suspendeu as suas atividades de enriquecimento (…) e todas estas atividades estão sob a supervisão da Agência, assim como todo o material nuclear, instalado em cascata e a alimentação e as estações de retirada/evacuação nessas instalações estão sujeitas à vigilância e confinamento.” [10]

O documento assinala (na alínea 39) que o Irão poderá “eventualmente” continuar com as atividades cessadas em finais de 2003 para o“desenvolvimento de aparelhos nucleares explosivos” [11] . A capacidade de fabricar armamento militar nuclear é aplicável a qualquer país que produza energia nuclear e tenha alguma tecnologia.

Por fim, o relatório afirma, inequivocamente, (na alínea 52.) que a AIEA admite não ter encontrado atividade de material nuclear para fins militares e que, “portanto, conclui que todo o material nuclear do Irão é para atividades pacíficas.” [12]

A associação mediática do Irão ao terrorismo internacional e a vitimização de Israel

A outra grande ameaça veiculada por Obama, Netanyahu e seguidores/as é o apoio do Irão ao “terrorismo” [13] . De acordo com Obama e seguidores/as, o apoio do Irão é bipartido entre Hezbollah e Hamas. O “terrorismo” do Hezbollah é celebrado com um feriado a cada 25 de Maio no Líbano, e exalta a expulsão dos invasores israelenses do território libanês em 2000. Israelenses que, até então, durante 22 anos, havam cometido terror e tortura permanecendo em flagrante violação das ordens do Conselho de Segurança das Nações Unidas e da lei internacional. O agora celebrado Dia de Libertação Libanês, proporcionado pelo Hezbollah, marca assim a expulsão dos ocupadores israelenses e a libertação do Líbano, sendo que os mass media e comentadores/as residentes invertem a realidade caracterizando os israelenses-ocupadores como agredidos, vítimas, e o grupo político/militar do Hezbollah como terrorista.

O outro apoio do Irão ao “terrorismo internacional” é o Hamas – que se tornou numa séria ameaça (terrorista) quando os palestinianos cometeram o crime (em 2006) de votarem neste movimento no que viriam a ser as primeiras eleições a ocorrerem na Palestina. A imprensa de referência refere-se ao Hamas como uma das grandes forças terroristas a nível mundial por lançar de Gaza uns rockets artesanais que atingiram as fronteiras israelenses como reação aos 7,700 rockets disparados (em Junho de 2006) pelas forças militares israelenses contra civis e alvos civis palestinianos [14] . Ainda que o massacre resultante da Operação Chumbo Fundido (2007/2008), levado a cabo por Israel com apoio militar e diplomático dos Estados Unidos, tenha originado a morte de mais 1600 civis palestinianos/as e 13 israelenses (4 mortos pelas próprias forças IDF), a destruição de alvos civis (escolas, hospitais, mesquitas, esquadras de polícia) – este não foi uma época de morte e sofrimento suficientemente digna para que a imprensa internacional de referência designasse Israel, ou os EUA apoiantes, como Estados terroristas que não respeitam a lei internacional e os direitos humanos.

Ao contrário de Israel e Estados Unidos, o Irão não cometeu qualquer ato de terrorismo internacional pelo simples facto de não ameaçar, invadir e/ou atacar um país há mais de duzentos anos. Todavia, os círculos de opinião mencionam que é o Irão que devemos recear apesar de o Iraque ter sido destruído, tal como se determinou por nenhuma das razões anunciadas pelo governo de George Bush. Nem importa que o Irão esteja sob ameaça constante dos Estados Unidos e Israel, que violam o ponto 4. (do art. 2) da Carta das Nações Unidas:

“Os [Estados] membros deverão abster-se nas suas relações internacionais de recorrer à ameaça ou ao uso da força, quer seja contra a integridade territorial ou a independência política de um Estado, quer seja de qualquer outro modo incompatível com os objetivos das Nações Unidas” [15]

Manter as sanções económicas contra o Irão porque este tem tecnologia nuclear é não só hipócrita como também ilegal à luz do direito internacional, logo constitui-se como um crime. Mas estes dois países têm um estatuto especial porque não respondem perante direito internacional, pois os seus crimes não contam como tal.

O estatuto de ameaça do Irão

Apesar do zumbido da propaganda, a ameaça do Irão não é militar. Quando comparada com o resto da região (inclusivamente com Israel) a capacidade militar do Irão é relativamente mais baixa; é praticamente metade do que gasta a Arábia Saudita (cliente dos EUA, o país mais fundamentalista da região do Médio Oriente); e é quase impercetível equivalendo a 2% da capacidade militar dos Estados Unidos [16] .

O Irão chegou a ser aliado das grandes potências ocidentais quando (em 1953) os EUA e Grã-Bretanha derrubaram o governo legitimamente eleito e apoiaram o ditador Shah e os seus programas nucleares. Foi a partir de 1979, quando a população iraniana expulsou o ditador do poder, que os EUA têm vindo a tentar estrangular o Irão: tentaram o golpe militar, apoiaram militarmente Saddam Hussein (1980-88) na invasão ao Irão que matou centenas de milhares de pessoas, e, desde então, o Irão sofreu sanções por não aceitar ser cliente dos EUA e manter o seu “regime” democrático.

A verdadeira ameaça do Irão é o seu peso no Médio Oriente como parceiro comercial de outros países, como a França, a Alemanha, a Itália, a Espanha, a Rússia, a China, o Japão e a Coreia do Sul; a partir da década de 1990 com a Síria, a Índia, Cuba, Venezuela e a África do Sul, e que vem expandindo seus laços comerciais com a Turquia e o Paquistão. Os principais produtos de exportação são o petróleo, gás natural, produtos químicos e petroquímicos, mas também frutas, nozes e tapetes. O estatuto do Irão é representado, pela propaganda ocidental, como desestabilizador para a região; mas quando os Estados Unidos e aliados invadem e bombardeiam os países vizinhos – já são representados como os agentes que pretendem criar “estabilização”.

O regime democrático iraniano é hostilizado pelos EUA simplesmente porque não admitem que os iranianos controlem os seus recursos. Mas quando os governantes ditadores são clientes dos EUA [17] , mesmo que bloqueiem o crescimento do próprio país, que oprimam as próprias populações, ou cometam atrocidades em série – passam geralmente despercebidos perante os media de referência.

O facto de os media comentarem o Irão com tanta intensidade denota a básica assunção que os Estados Unidos, Israel e alguns aliados europeus têm o direito de utilizar as sanções económicas, que estrangulam as exportações iranianas, de ameaçar ou ainda invadir militarmente à revelia da lei internacional.

Em suma, o que está em causa é uma intensa doutrinação mediática que tem vindo a proteger a agenda dos responsáveis imperialistas que prosseguem os seus planos de conquista sem serem responsabilizados por terrorismo e por diversos crimes internacionais pelas entidades competentes, que são reguladas pelos interesses dos que mais importam.

Setembro/2012

[1] American Israel Public Affairs Committee, ou America’s pro-Israel lobby

[2] Na conferência da AIPAC, a 4/Março/2012, “President Obama, Diplomacy still an option in Iran”, CNN, www.youtube.com/watch?v=ex-ie1UUKUg&feature=related

[3] Benjamin Netanyahu, “Those that refuse to set Red lines for Iran; can’t give Israel Red light” (Sept 12, 2012), www.youtube.com/watch?v=BZV-Ul9a5Kc&feature=related

[4] Benjamin Netanyahu, www.tvi24.iol.pt/internacional/nuclear-israel-irao-tvi24/1186238-4073.html

[5] Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares. Versão do documento em inglês, assinado em Washington, Londres e Moscovo a 1 de Julho de 1968. Este documento foi ratificado a 5 de Março de 1970 e proclamado por Richad Nixon a 1970 http://www.fas.org/nuke/control/npt/text/npt2.htm

[6] “Mordechai Vanunu, Whistle Blower on Israel’s Nuclear Weapons Program, Jailed Again” 23 May, 2010, – por Eileen Fleming, Countercurrents.org revolutionaryfrontlines.wordpress.com/…

[7] Cf. The Nuclear Threat Initiative em www.nti.org/country-profiles/israel/nuclear/

[8] Israel’s Deployment of Nuclear Missiles on Subs from Germany, em Der Spiegel , 6/June 2012 www.spiegel.de/…

[9] Por exemplo, isoladamente do resto do mundo, os EUA têm vetado indiscriminadamente as mais de 35 propostas de resolução sobre Israel e Palestina nas sessões anuais da Assembleia Geral das Nações Unidas. Os EUA continuam abertamente a apoiar a militarização, colonização israelense em “território palestiniano ocupado”.

[10] Alinea 10 do documento Implementation of the NPT Safeguards agreement and relevant provision of Security Council resolutions in the Islamic Republic of Iran – Report by the Director General, 30 Agosto 2012 IAEA www.nytimes.com/…

[11] Alinea 39, Idem

[12] Alinea 52, Idem

[13] Dentro de uma conceção imperialista, portanto desconexa da lei internacional, é que este é apenas cometido sempre pelos “outros”, e nunca pelas potências do ocidente.

[14] Cf. Noam Chomsky, “U.S. Savage Imperialism The U.S. Empire, the Mideast, and the world” , part I 2010, www.zcommunications.org/u-s-savage-imperialism-by-noam-chomsky

[15] Carta das Nações Unidas, Capítulo 1, nº 4 do art. 2: www.un.org/spanish/Depts/dpi/portugues/charter/chapter1.htm

[16] List of countries by military expenditures: en.wikipedia.org/wiki/List_of_countries_by_military_expenditures

[17] Só para citar alguns exemplos da longa lista de ditadores apoiados pelos Estados Unidos: Gen. Ibrahim Babangida, Anwar El-Sadat, Hosni Mubaral, Pieter Willem Botha, Mohamed Suarto, Saparmirad Atayevich Niyazov, Syngman Rhee, Anastasio Somosa Garcia, Gen. Jose Efrain Rios Montt, Gen. Manuel Antonio Morena Noriega, Augusto Pinochet, Gerardo Machado Morales, Saddam Hussein, etc. Mais em tinfoilpalace.eamped.com/2011/01/29/dictators-supported-by-the-us/

[*] Investigador, Instituto de Sociologia da FLUP.

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