(Neo)Desenvolvimentismo ou luta de classes?
Maria Orlanda Pinassi, em Caros Amigos, sugestão do professor Caio Toledo
Às vésperas de completar 25 anos no Brasil, o neoliberalismo vem sendo o mote de importantes análises e balanços acerca do seu desempenho no país, sobretudo por estudiosos do campo da crítica marxista.
De modo breve, o processo neoliberal é apresentado em dois momentos distintos e complementares ao mesmo tempo. O primeiro marcou os anos do governo de FHC através das privatizações de empresas públicas, da desnacionalização da economia, da desindustrialização, da reprimarização da produção interna (produção e exportação de commodities) e da integração da burguesia brasileira ao imperativo capital transnacionalizado.
O momento seguinte enseja o chamado neodesenvolvimentismo, processo que caracteriza os governos Lula e Dilma. Sem romper com a lógica neoliberal, o “modelo” sugere formas neokeynesianas, de modo a administrar os estragos causados pelo neoliberalismo das gestões anteriores.
Segundo consta, o Estado procuraria, então, recompor sua função (de “alívio”) social –- através da criação de empregos (quase sempre precários e temporários), políticas de recuperação do salário mínimo e redistribuição de renda (Bolsas Família, Escola, Desemprego etc.) –, enquanto a economia se renacionalizaria por meio de financiamentos do BNDES à reindustrialização pautada na substituição de importações.
Argumentos fortemente questionáveis visto que as empresas públicas privatizadas hoje são fortemente controladas por capitais externos (vide Vale), numa lógica em que a economia transnacionalizada do sistema reconduz o Brasil ao papel produtor de bens primários para exportação.
É desse modo subalternizado que, pelas mãos do neoliberalismo, o capitalismo brasileiro vem apresentando alguns dos melhores desempenhos econômicos do sistema. O capital, em processo de crise generalizada, tem pouco a lamentar e muito a comemorar por aqui: veja-se a estratosférica lucratividade bancária e o enorme crescimento da indústria da construção civil. Mais impressionante ainda é o desempenho da mineração, do agronegócio, do setor energético e dos números que apontam para o grande aumento de áreas agricultáveis (1) , de florestas, de rios e outras tantas de proteção ambiental, invadidas e destruídas por pasto, monocultivo de cana, de soja, de celulose, de laranja, por extração mineral, por barragens.
Com razão, é unânime a condenação que se faz da hegemonia do capital financeiro sob o neoliberalismo tendo em vista as consequências sociais nefastas que provoca. Estranhamente, porém, a solução que alguns estudiosos do tema encontram para esse “impasse” vem da Economia Política e não de Marx.
Ressaltam os avanços das políticas sociais dos governos petistas, mas, acometidos de uma espécie de “síndrome de Proudhon”, ouvem o sino tocar sem saber onde ele se encontra. Procuram-no num revival antidialético e romântico do Estado de Bem Estar Social, do predomínio da indústria fordista, com suas formas mais “humanizadas” de extração da mais-valia relativa. Saudades de algo que jamais existiu por aqui.
Para além dessas boas intenções, o neoliberalismo, desde suas primeiras aparições já nos anos de 1990, compõe a processualidade de uma mesma dinâmica de expansão e acumulação de riquezas baseada na superexploração do trabalho. Só que desta vez sem os entraves que as políticas keynesianas originais de controle das crises cíclicas certamente apresentariam à lógica de uma atuação absolutamente intolerante a qualquer limite.
Isso quer dizer que a década de 1990, apesar de ter registrado um desempenho econômico pior do que nos anos 1980, não foi perdida, como pensam, nem de estagnação para o capital. Durante esses anos, o neoliberalismo pôs em prática seu fundamento mais importante, aqui e em todo o mundo capitalista: interrompeu o avanço da classe trabalhadora.
A reestruturação produtiva implantada destruiu empregos e a estabilidade (onde ela existia), criou o desemprego estrutural, disseminou a precarização –- algo bastante familiar ao mundo do trabalho no Brasil — e começou a desmantelar cada um dos direitos trabalhistas conquistados pela classe trabalhadora desde Getúlio. Se o momento FHC criou as condições da miséria, sem, contudo, destruir completamente a classe, o momento seguinte lograria ainda maior sucesso nesta investida, criando e reproduzindo o miserável.
FHC ainda combatia a objetividade da classe trabalhadora, seus sindicatos e os movimentos sociais. Os governos de conciliação de Lula e Dilma mantiveram a política de fragilização da classe trabalhadora e investiram sobre a subjetividade do trabalhador.
Numa obra magistral de engenharia política, não mais o reconhecem como antípoda do capital. Tratam sindicatos e movimentos populares como parceiros e ainda são pródigos na concessão de direitos para as chamadas “minorias”, os direitos de cidadania que vão fortalecer a democracia formal.
Inegável o avanço da Lei Maria da Penha, dos direitos ampliados dos negros, dos índios e dos homossexuais. O problema é a individualização desideologizada do tratamento, devidamente orientado pelo Banco Mundial, de controle social do miserável. (2)
Caminho livre para a lógica da produção destrutiva e nele não há solução jurídica capaz de conter o extermínio de comunidades indígenas, as expropriações sem fim das terras quilombolas, de pequenos produtores e trabalhadores rurais sem terra –- acampados ou assentados –, não há solução possível para as remoções de levas imensas de moradores de comunidades urbanas, muito menos para conter a superexploração de mulheres e crianças ou a disseminação do trabalho escravo no campo e nas cidades. (3)
Para os segmentos atingidos, a criminalização e os rigores da repressão policial. Ou seja, a mais perfeita democracia hoje realizada pelo mundo do capital é a sua absoluta “tolerância” com qualquer forma de extração do sobre-trabalho: pode ser mais valia relativa, pode ser mais valia absoluta.
Vistos dessa ótica, os tempos são inegavelmente difíceis, tornando urgente a tomada de decisão: ou jogamos mais água no moinho satânico ou buscamos caminhos mais autênticos. Ou somos apologetas ou críticos radicais.
Florestan Fernandes foi categórico a respeito: “[…] defendo toda carga possível da saturação-limite dos papéis intelectuais dos sociólogos — não como servos do poder, porém agentes do conhecimento e da transformação do mundo”.
Sem meias palavras, define muito claramente sua opção pela sociologia concreta baseada no “horizonte cultural socialista em sua plenitude revolucionária”. (4)
Não poderia dispor, portanto, de melhor companhia para dizer que não pretendo encontrar soluções para estabilizar o capital; não pretendo dar contribuição para torná-lo mais funcional; nem venho propor algum tipo de pacto social com frações da burguesia supostamente lesadas pelo imperativo capital financeiro.
O ponto de vista que defendo está ideologicamente comprometido com as necessidades mais legítimas dos indivíduos que compõem a classe trabalhadora, cujo desafio maior da atualidade é conseguir transpor as misérias materiais e ideológicas e reassumir, através da luta, a condição diuturnamente vilipendiada de sujeito da história.
Um primeiro passo deveria ser dado por suas organizações –- ou o que sobrou delas –- no sentido de compreenderem, definitivamente, que o agir revolucionário precisa aprender a se “virar” sem o canto de sereia das instituições mediadoras da ordem.
Notas:
1. Há quem diga que, no Brasil, não há mais latifúndios improdutivos, então, para que Reforma Agrária? Não temos espaço suficiente aqui para demostrarmos quão questionável é essa “ideia”.
2. Ver a respeito o Projeto de Lei PPA 2012/2015 (2011) através do qual a gestão da presidenta Dilma Rousseff se propõe a enfrentar e dar visibilidade através dos programas que englobam o Plano Brasil sem Miséria.
3. Ao contrário, tudo tende a se agravar com a revisão do Código Florestal, da Mineração, da demarcação das terras indígenas.
4. Florestan Fernandes. A natureza sociológica da sociologia. São Paulo, Editora Ática, 1980 (p. 32)