O amor à verdade

Envergonhada

de si mesma, a

ditadura escondeu

a sanha com que

punia os que

queriam derrubá-la

Flávio Tavares*

O afago e a solidariedade estão na essência do amor, tais quais _ no lado oposto das coisas _ a mentira e o engano estão no cerne das ditaduras. Nenhum amor prescinde de carinho. E até as ditaduras que se vangloriam do despotismo e da violência se mantêm pela mentira que transforma o medo em aceitação.

Quando o amor triunfa sobre o embuste e varre o medo, tudo se torna diáfano e claro _ a ditadura aparece nua e as profundezas da História vêm à tona, como agora, com a pertinácia de Suzana Keniger Lisboa, uma das fundadoras do Grupo Tortura Nunca Mais.

Quando a TV e a literatura nos empanturram com melosas tramas amorosas de falsidade absoluta, a história real de Suzana repõe o amor em sua dignidade humana. Aos 18 anos, casou-se em Porto Alegre com Luís Eurico TejeraLisboa e aos 21 tornou-se viúva de um “desaparecido político” sem cadáver nem funerais.

Desde então (1972, no terror do governo Médici), passo a passo ela desnudou tudo. Estudante de Economia e combatente contra a ditadura, ele fora enterrado no cemitério paulista de Perus como “marginal sem nome”, após “suicidar-se” com um tiro na cabeça, ao ser preso em São Paulo, segundo a versão (ou mentira) oficial.

Agora, três peritos criminais compararam os seis disparos na ossada de Eurico com a foto oficial do “suicida” que segura na mão um revólver, enquanto outro pende sobre a colcha que o cobre até o pescoço na cama bem arrumada. E a verdade surgiu: ele foi preso e, logo, executado. Na foto, a cama impecável esconde as perfurações e encobre o crime.

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A descoberta do “Herzog gaúcho”, como a imprensa nacional chamou, agora, a farsa do “suicídio” de Ângelo Cardoso da Silva, em abril de 1970 no Presídio Central de Porto Alegre, também é uma história de amorosa persistência. Só assim, a Comissão da Verdade conheceu o minucioso trabalho em que Graziane Righi e Davi Santos, estudantes de Direito da UFRGS (a partir de papéis tirados do lixo do Arquivo do Tribunal de Justiça, em 2011) desvendaram o crime perpetrado pela polícia política gaúcha 43 anos atrás.

Pela mentira oficial, Ângelo (taxista e membro da resistência à ditadura) “enforcou-se” com o lençol na basculante do banheiro da cela, a 1m30cm do chão. Na foto do processo salvo do lixo, os joelhos dobrados tocam o chão. Não há enforcado que se apoie no piso, mas o Tribunal arquivou o caso em 1973, embora um legista alertasse que o lençol solto, sem nós, evidenciava estrangulamento, não suicídio.

Graziane e Davi eram estagiários no Tribunal quando, com amor aos detalhes e juntando cacos, descobriram que até o lixo pode esconder a verdade!

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Em 1969, preso num quartel do Exército no Rio de Janeiro, após longos dias de tortura, aplicaram-me um suplício sádico: à noite, levaram-me à cela de um preso que, pouco antes, “havia se enforcado no banheiro” e me deixaram horas ao lado do cadáver. Olhos esbugalhados, o corpo morno esfriou-se aos poucos, até que o levassem dali e eu ficasse na cela escura com cheiro a morte.

Detalhei o episódio no livro Memórias do Esquecimento, sem jamais entender por que me fizeram testemunha de um crime que a ditadura repetiria anos afora _ simular “suicídio” para encobrir assassinatos.

Envergonhada de si mesma, a ditadura direitista escondeu o terror e a sanha com que punia os que queriam derrubá-la. Mentiu de forma tão ampla, que ainda há quem cultive falsificar a História. Ou que construa teorias para que continuemos espantalhos, meros bonecos de palha, como aqueles no campo, que se fingem de gente para afugentar pássaros, mas são incapazes de um gesto de amor, como os de Suzana Lisboa, Graziane Righi, Davi Santos e tantos mais.

*Jornalista e escritor

http://wp.clicrbs.com.br/opiniaozh/2013/06/09/artigo-o-amor-a-verdade/?topo=13,1,1,,,13