“Foi um ano de farsa democrática”, diz Samir Amin sobre o Egito

Para o estudioso egípcio e membro do Partido Comunista, as eleições no país marcadas para outubro podem ser manipuladas tal como foram as de 2011

05/07/2013

O presidente do Egito Mohammed Mursi foi deposto nesta quarta-feira (3) pelas Forças Armadas após forte pressão popular. Em seu lugar, o ex-presidente da Suprema Corte, Adly Mahmud Mansur, foi jurado presidente interino do país.

Em entrevista ao jornal italiano “Il Manifesto”, o estudioso egípcio e membro do Partido Comunista Samir Amin, analisa o processo da eleição que levou Mursi à  presidência e também chama a atenção ao que diz respeito ao futuro político do Egito, que elegerá um novo representante em outubro deste ano.

 

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Amin, que ainda é diretor do Fórum do Terceiro Mundo, observa ainda que os militares que depuseram Morsi são financiados pelos EUA, e que em seu seio há grupos políticos que, inclusive, mantêm contatos com a Irmandade Muçulmana e com fundamentalistas salafitas.

“Se não houver mudanças, as eleições fixadas para o próximo mês de outubro serão realizadas debaixo da repressão, e o voto será manipulado tal como aconteceu em 2011.”

do Il Manifesto

Tradução de Heitor Figueiredo

Confira a entrevista

Il Manifesto – Porque os egípcios insurgiram para pedir as demissões do presidente Morsi?

Samir Amin – A campanha denominada Tamarrod (Rebelião) foi uma iniciativa extraordinária. Foram recolhidas milhões de assinaturas que representavam a reflexão política, um acontecimento de grande envergadura que foi completamente ignorado pela mídia internacional. Pois parece que a maioria eleitoral que se definiu nas últimas eleições desapareceu. A Irmandade Muçulmana gerencia o poder como se 100% dos eleitores tivessem votado neles. Por isso se apoderaram do estado colocando nas direções das instituições todos seus homens. Uma ocupação que dão espaço às oposições e também aos técnicos que estavam empregados desde os tempos de Mubarak.

Tudo isso aconteceu apesar do Egito sofrer com uma aguda crise econômica?

O problema maior não é  somente esta crise econômica. Mas a maneira de como os islâmicos querem resolver a crise introduzindo soluções ultra-liberais. Além de substituir os amigos de Mubarak com uma turma de burgueses capitalistas, na sua maioria comerciantes super-reacionários que querem vender todas as propriedades públicas e por isso todo o mundo os odeia, visto que querem programar as mesmas políticas do antigo regime.”

Foi nesse âmbito que o presidente Morsi assinou o projeto de Zona de Livre Trocas no Sinai, apesar de ser um projeto que favorece unicamente os interesses econômicos de Israel?

Exato. Esse projeto foi uma catástrofe do ponto de vista econômico visto que nessa região não haverá nenhuma industrialização, do momento que a dita zona de livre troca será monopolizada por pequenas máfias que estão gerenciando a fraude fiscal e a venda dos recursos públicos na região. Por isso a Irmandade Muçulmana fecha os olhos e espera o empréstimo do FMI que foi definido, apesar das denúncias de corrupção e outros escândalos”.

Não acha que fizeram pior quando, por exemplo, inventaram as Obrigações Islâmicas Sokuk?

Na realidade foi um autêntico roubo, visto que venderam a preços de banana as propriedades que valem bilhões. Aliás, nem foram privatizações, apenas uma fraude.

Voltamos às eleições. Visto que Morsi ganhou após oito dias de indefinições e, antes de tudo, após o veto para a candidatura do nasserista Sabbahi (líder do partido nacionalista ligado à história de Nasser, ndr.) já no primeiro turno. Acredita que houve manipulações?

Houve, sim, uma fraude eleitoral grande como uma montanha. Hamdin Sabbahi devia participar do segundo turno, mas foi vetado pela embaixada dos EUA. Os observadores da União Europeia aceitaram as motivações dos diplomatas estadunidenses e fecharam os olhos diante da fraude. É preciso explicar que os cinco milhões de votos que Sabbahi recebeu, eram votos de pessoas politicamente motivadas. Contrariamente, ao que aconteceu com os eleitores de Morsi que, na maioria, não tinham um mínimo de consciência política, e por isso venderam seu voto por bônus de leite e de carne.”

O presidente Morsi bateu de frente com o movimento de protestos antes ou em novembro do ano passado, quando assinou um decreto que ampliava seus poderes até o limite da ditadura?

Na realidade, Morsi, logo após sua posse, formulou a promessa de escutar quem contestava sua linha política. Foi mera demagogia. Depois disso, ele mesmo deu a entender que por de trás dele havia a presença das monarquias dos países do Golfo, de que ele, simplesmente, virou o executor.

Então, até o histórico apoio ao povo palestino ficou no esquecimento?

A Irmandade Muçulmana sustenta Israel, tal como fazem as monarquias do Golfo e do Qatar. Oficialmente, sempre manifestam posições anti-sionistas, mas, na realidade, estão alinhadas com Israel. Praticam uma mentira sistemática. Por exemplo, o emir do Qatar diz uma coisa e depois faz o contrário. Isso porque no Qatar não existe opinião pública, foi tudo silenciado. No caso da Síria, o presidente Morsi apoiou o que há de pior nas fileiras da oposição síria, da mesma forma como fazem os ocidentais que com o fornecimento de armas aos rebeldes, na realidade, estão sustentando o que de pior há na oposição síria”.

Mas a ausência de uma lucidez política é consequência do tipo de Constituição que a maioria da Irmandade Muçulmana impôs no governo em dezembro do ano passado?

Eles queriam impor a ditadura da maioria. Porém, pela primeira vez na história do Egito, os juízes contestaram e se negaram em ratificar os resultados do referendo constitucional. De fato, o objetivo do partido da Irmandade Muçulmana “Liberdade e Justiça”, era de construir uma teocracia tal como os ayatollah fizeram no Irã. Muitos políticos islâmicos pretendem criar um Conselho Constitucional dos Ulemas, que deveria semelhar a Al-Azhar – a máxima instituição religiosa sunita – e que deveria controlar o poder executivo, o legislativo e o sistema judiciário.

O que veio a impedir a realização desse projeto?

O lumpemproletariado egípcio, notoriamente usado para manobras políticas, dessa vez, ficou quieto, visto que não recebia nada em troca. Por outro lado, há ainda muita ambiguidade na divisão do poder como as Forças Armadas, que ficam com um pé atrás para, depois, poder intervir diretamente. É bom lembrar que os militares são uma classe corrupta e extremamente fragmentada, que se sustenta com a ajuda financeira dos EUA. No seu seio há muitos grupos políticos e alguns deles mantêm contatos com a Irmandade Muçulmana e até com os fundamentalistas salafitas. Entretanto, se houvesse eleições normais com campanhas que respeitam as liberdades democráticas, o partido da Irmandade Muçulmana seria derrotado. Se não houver mudanças, as eleições fixadas para o próximo mês de outubro serão realizadas de baixo da repressão, e o voto será manipulado tal como aconteceu em 2011.

Foto: Reprodução

Publicado em  Il Manifesto e Brasil de Fato

Tradução de Heitor Figueiredo