Sobre anões e coelhos
Professor de Direito Internacional da FGV Direito SP
Circula nos meios acadêmicos uma piada em que um coelhinho defende a tese de ser ele, coelho, o animal mais poderoso da floresta. Um após o outro, os tradicionais predadores perdem a vida por duvidar de uma proposição tão esdrúxula. Ao final, descobre-se que por trás da tese e do coelho estava o leão, rei da floresta, que com a pata pesada despedaçava os adversários.
Nas relações internacionais contemporâneas só não se sabe se Israel é o coelho que conseguiu forjar uma sociedade especial com o leão, os Estados Unidos, ou se de algum modo esse leão foi laçado, hipnotizado ou de outro modo submetido, para servir à agenda de poder do coelhinho. Uma mistura dos dois é possível e, como em todos os casamentos, só o sabem ao certo os parceiros.
De todo modo, o alinhamento do leão e da sua corte – os europeus e outros – faz com que Israel se perceba como muito mais do que um gigante no cenário mundial. Israel, a seus próprios olhos, é detentor de todas as verdades. Apenas por serem suas, todas as suas causas são justas. Talvez, em linguagem de Antigo Testamento, se veja com ascendência sobre todas as coisas criadas e, portanto, com a prerrogativa de nomear e classificar todas as coisas.
É por isso que, ao se ver alvo de uma crítica justa – que teria sido mais justa se tivesse sido menos contida – por parte do Brasil, permite-se classificar-nos como anões diplomáticos. Porque discordamos dos israelenses, somos automaticamente jogados no saco dos “irrelevantes”. Perceba-se a arrogância e a suficiência: Israel tem sozinho o poder de decidir quem é relevante na construção de uma solução justa, um trabalho em que ele – e isto é tão trágico quanto cômico – se diz empenhado. Se você discordar da tese, será gentilmente convidado para, atrás da moita, ser devidamente devorado.
Há muito o que dizer sobre a política externa brasileira para o Oriente Médio. E há muito o que criticar nela. Entre as críticas, deve-se sim, dirigir uma à modéstia dessa política e à hesitação com que concebemos e perseguimos a nossa ambição para esse lugar do mundo.
Tenho dito que a política externa brasileira está essencialmente diante de uma escolha entre presença e ausência no Oriente Médio. O nosso discurso, de primazia do direito e da legitimidade internacionais, tem consistência e tem resistido ao tempo. Ele é honesto e nos presta credibilidade. Mas, por muito tempo, o Brasil fez a opção pela ausência por acreditar que o Oriente Médio demandava passos mais largos do que os que podiam dar as nossas pernas.
Ao se ausentar, no entanto, não podia, de fato, pretender estar entre os grandes e, mais grave, não podia participar efetivamente de um dos problemas cruciais das relações internacionais, um problema de profundas implicações morais, a questão da Palestina. A ausência redundava em efetivamente deixar livre curso à agenda israelense de ocupação e de incorporação gradual da Palestina.
Apenas nos últimos anos uma opção mais clara pela presença no Oriente Médio foi feita. Essa opção apresenta desafios que não podem ser contemplados a contento aqui, mas é certo que, também por conta das dificuldades, a opção sofreu com flutuações e hesitações. Está claro também que, dos vários e complexos temas relacionados ao Oriente Médio, só cabe falar agora da questão Palestina.
Em relação a isso, justamente, uma das razões centrais para a flutuação está na tentativa constante de projetar uma imparcialidade, uma eqüidistância, uma igual proximidade com palestinos e israelenses. Isso tudo é talvez factível para quem quer ser amigo de todos, para quem quer oferecer ajuda humanitária aqui e celebrar acordos de comércio e defesa ali. Mas, para quem que abordar a questão central e buscar-lhe uma solução justa, aquilo que é pensado como imparcialidade acaba sendo uma apoio ao mais forte na sua opressão do mais fraco.
Penso que o Brasil tenha uma percepção razoavelmente clara disso, mas é tímido demais em expressar o que sabe ser verdade. E à timidez se soma um estilo, cordial diriam alguns, que permite aos outros a continuada ousadia da arrogância.
Quando, por exemplo, o nosso Ministro das Relações Exteriores, ao reagir à acusação de nanismo, usa um tom de típica bonomia e, diz entre outras coisas que “nós nunca negamos o direito de Israel se defender”, ele não só deixa de responder com a acidez que a arrogância demandava, como transmite uma imagem errônea do que é a imparcialidade.
É verdade que todos têm direito à legítima defesa, e isto é verdade para Israel, e é verdade que o Brasil nunca negou isto, mas colocar assim as coisas agora passa a impressão de que o Brasil concorda com a tese de que os absurdos perpetrados por Israel nestes dias e mesmo nestas décadas mantêm algum parentesco com a legitima defesa.
Está na hora de recusarmos definitivamente a irrelevância, como classificação e como fato, e está na hora de dizer ao coelho que a sua tese é falsa e que, ainda que ele fique de pé sobre os ombros do leão, a sua causa é injusta.