“MINHA CASA” É A RECONCILIAÇÃO ENTRE CAPITAL E TRABALHO, AFIRMA LULA

Em um programa de Reforma Urbana, ao contrário, apresentam-se interesses divergentes, evidenciando- se a oposição entre o direito dos trabalhadores à cidade e o ganho rentista do capital, entre o interesse público de planejar cidades habitáveis e a irracionalidade do laissez-faireimobiliário. Em um programa de Reforma Urbana haveria combate à especulação, taxação progressiva e urbanização compulsória de imóveis que não cumprem a função social, requisição pública de imóveis que sonegam impostos, política de estoque de terras, combate aos despejos, investimentos em transportes coletivos em detrimento do individual etc. Mas em um programa focado exclusivamente na construção de casas não há conflitos, pois os interesses do capital e do trabalho parecem milagrosamente convergir.

Foi assim que Lula, na recente abertura do 81º Encontro Nacional da Indústria da Construção (ENIC), no Rio de Janeiro, pôde tratar os empresários como “companheiros” e “meus queridos”. E não era apenas seu velho cacoete, pois Lula fez questão de explicar que “mudou muito” nestes anos para poder “chamá-los (os empresários) de companheiros e não só o trabalhador, pois o Brasil não é só construído pelos que produzem, mas também pelos que têm capital para contratar”. E completou, para surpresa da platéia, afirmando que “em três ou quatro meses (os empresários da construção) irão disputar espaço com os mais importantes artistas brasileiros, porque podem ser melhores do que eles” para o povo brasileiro ao dar uma “contribuição inestimável para a melhoria das suas condições de vida”.

O ENIC reúne anualmente os vários sindicatos patronais da construção e ocorre em clima de evento social. Os mediadores das mesas de “debate” são da Rede Globo. O patrocínio é do próprio governo federal e da Caixa Econômica, além de empresas do setor. Há presença garantida de políticos e do primeiro escalão do governo, favorecendo o lobismo. O encontro termina com jantar de gala no Copacabana Palace, o mais caro e luxuoso hotel do Rio de Janeiro. Bem diferente dos encontros dos movimentos de luta por moradia, posso garantir.

O clima de aliança e reconciliação era dado não apenas pela “mudança” de Lula, mas pelo objetivo comum da “casa própria”, cuja ideologia compensatória é o melhor elo da unidade entra capital e trabalho – pois beneficiaria ambos. Para Lula, “a democratização do acesso à casa própria é um dos pilares da reconciliação entre desenvolvimento econômico e inclusão social”. Na “aliança pela casa própria” não há interesses divergentes: forja-se um consenso inexpugnável entre a necessária lucratividade dos capitais, os ganhos eleitorais dos políticos e o benefício social dos atendidos pelo programa. Heureca!

A reconciliação se estendeu não apenas ao empresariado, mas também ao regime militar, lembrado por Lula como último grande momento do desenvolvimento brasileiro, ao qual ele afirma “dar continuidade” por meio do PAC, do Pré-Sal e do pacote habitacional. Estamos vivendo um “salto do financiamento imobiliário capitaneado pelos bancos públicos como não ocorria há 20 anos, desde o BNH”, disse Lula. A Caixa Econômica Federal atingiu volume recorde de empréstimos em habitação em 2009 e bateu o recorde anterior, do governo Figueiredo, em 1982. A atual injeção de 34 bilhões de reais de recursos públicos na construção civil irá “imprimir velocidade ao motor do desenvolvimento que patinava desde a crise do BNH”.

Ao adotar a primeira pessoa em todo o discurso – “o ‘Minha Casa’ foi um desafio que fiz a mim mesmo” –, Lula deixou claro que a iniciativa do programa foi pessoal, ao invés de se tratar de uma política de Estado. “Eu disse a Dilma e Guido para conversarem com os empresários”, afirmou, desprezando a existência de um Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social – primeira lei de iniciativa popular aprovada desde a Constituição de 1988, com 1,2 milhões de assinaturas –, do próprio Ministério das Cidades, feito de seu primeiro mandato, com seus conselhos e fundos vinculados, além do recém aprovado Plano Nacional de Habitação. Para Lula a conversa é direta, do presidente com o empresariado, e admite poucos intermediários, de preferência que não atrapalhem com “fiscalização, problema ambiental, Ministério Público” etc. É uma forma de concentrar em si o capital político da operação e personalizar uma iniciativa que deveria ser parte de uma política consistente de Estado e duradoura no tempo.

Apresentada a reconciliação e a aliança pela casa própria, Lula passa então a cobrar dos empresários que façam a sua parte: “dinheiro está disponível, temos gente que quer casa, o que é que está faltando?” Segundo ele, o problema dos empresários “não é mais de dinheiro, é que não estavam preparados para comer um prato cheio, só de grão em grão”, ironiza. O presidente operário cobra dos capitalistas que sejam mais capitalistas.

Lula percebe no atraso dos projetos e obras – que totalizam apenas 3,7% da meta até o momento – uma incoerência com o fato de que “o programa foi criado para enfrentar parte da crise internacional” . O que revela, na verdade, como o pacote é inócuo enquanto política anticíclica. A crise serviu, isto sim, como álibi para que o governo privatizasse a política habitacional e injetasse fundos públicos no setor imobiliário e da construção – não por acaso o que mais patrocina campanhas e caixas de políticos –, com vistas à sucessão de 2010.

A maneira como trata em seu discurso o problema da moradia – “desovar” e “construir casa a dar com pau” – é reflexo do entendimento que o pacote e empresários têm da habitação, como uma mercadoria qualquer. Isto é, não se trata de produzir cidades melhores, mais justas e integradas, mas de fazer unidades habitacionais como se monta geladeiras ou automóveis. A moradia entendida por esse viés, no qual se privilegiam quantidades (o que mais interessa a empresários e políticos) ao invés de qualidades, e desconsidera- se o processo complexo de fazer cidades, irá promover desastres urbanos e sociais, como se viu no México, Chile e África do Sul, que adotaram o mesmo modelo recentemente.

Não se ouviu qualquer palavra do presidente a respeito do grande despejo ocorrido dias antes na zona sul de São Paulo, da ocupação Olga Benário, e que fora primeira página dos principais jornais do país. Duas mil famílias foram postas na rua e tiveram seus bens queimados numa reintegração de posse violenta de uma área que estava vazia há décadas e inadimplente em relação aos impostos municipais. Problema de moradia? Sem dúvida, e dos mais eloqüentes. E onde está a sensibilidade social do presidente?

Acontece que a produção de casas como “reconciliação” entre capital e trabalho está muito distante do que poderia ser uma verdadeira política de transformação das cidades brasileiras, para que deixem de ser a expressão mais cabal de uma sociedade desigualitária e espoliadora. A reconciliação pressupõe encobrir a própria existência do conflito e de perdedores – pois, afinal, na promoção da casa própria o interesse de todos aparece como sendo igual, e todos ganham. Deixemos a Reforma Urbana pra lá.

“Desculpe a euforia”, brincou Lula, mas “o país está perdendo o complexo de cidadão de segunda classe”. E antecipou o próximo pacote para beneficiar o setor da construção, para delírio dos empresários: “temos que preparar o projeto de mobilidade urbana para as cidades da Copa do Mundo”. E provoca uma última vez, como líder operário que sabe defender melhor os interesses do capital do que os próprios capitalistas: “vocês também tem que mudar de patamar e não apenas eu”.

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